• Nenhum resultado encontrado

P roblemas éticos envolvidos, seus conflitos

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 111-114)

A medicina, desde tempos imemoriais, sempre exigiu um debate permanente sobre as questões éticas que envolvem sua prática e o desen- volvimento de novos conhecimentos.

O marco inicial, sem dúvida, foi fixa- do quando Hipócrates, em 460 A.C., estabeleceu os primeiros postulados éticos da medicina – que atravessa- ram séculos, chegando ao terceiro milênio como uma referência indelé- vel que tem norteado a medicina até os dias atuais.

A curiosidade científica e a bus- ca incansável de novas descobertas nas ciências da saúde sempre preo- cupou a humanidade. Daí, a neces- sidade de estabelecer limites precisos no desenvolvimento da ciência biomédica. O conhecimento biomé- dico, acumulado ao longo do tempo, buscou essencialmente o benefício da espécie humana. No entanto, em nome desse desenvolvimento, regras básicas de comportamento ético foram desres- peitadas. Cabe à sociedade, portanto, controlar a ciência, evitando desvios.

O desenvolvimento do conheci- mento baseou-se durante séculos no empirismo e na observação pura e sim- ples das manifestações naturais e bioló- gicas. Não havia, à época, conhecimen- tos suficientes que dessem suporte cien- tífico para sua comprovação. Da mes- ma forma, não existia uma reflexão so- bre as questões éticas desse desenvolvi- mento empírico. A partir do momento em que o desenvolvimento científico retirou a ciência do empirismo, a humanidade passou a refletir com mais profundidade sobre as questões éticas que envolvem seu desenvolvimento e sua aplicabilidade sobre os seres humanos.

Mesmo nos tempos atuais, onde a sociedade exerce um papel controlador mais efetivo, o desenvol- vimento científico muitas vezes enco- bre violações de princípios éticos, e não raro humanitários, em nome da

114

high-tech na ciência biomédica. No

entanto, cada vez mais cresce a dis- cussão sobre a questão e a Bioética – a qual busca estabelecer com a socie- dade, em todo o mundo, um diálogo conseqüente – propicia uma vigilância mais efetiva do rápido e contundente avanço científico e tecnológico.

Desde sua gênese, a humanida- de sempre demonstrou grande preo- cupação com a fecundidade. Envolven- do aspectos religiosos, morais, éticos e culturais a humanidade debateu-se durante séculos sobre o problema. Prin- cipalmente por encerrar questões deli- cadas como a sexualidade, o matrimô- nio e a reprodução esse tema ainda hoje permanece, e com maior ênfase, como um dos dilemas éticos mais atu- ais da humanidade. A primordial dis- cussão sobre a sacralidade do início da vida e da concepção sempre colo- cou em permanente debate a questão da reprodução humana.

Desde as mais remotas épocas sempre coube à mulher a responsabi- lidade pela concepção – inclusive pela anticoncepção. A ela caberia receber a semente do homem e procriar. A infertilidade feminina era vista como uma grave deformidade biológica – e também considerada uma repreensão divina, já que a mulher não era mere- cedora da benção da procriação.

Durante séculos, não admitiu-se a esterilidade masculina. A esterilida- de ou a infertilidade sempre colocou a mulher em uma condição de inferiori- dade, submetendo-a a forte discrimi- nação. Ao contrário, a fertilidade e a chegada de um filho sempre foi feste- jada e abençoada. A união entre um homem e uma mulher sempre enseja uma pergunta: quando chega o bebê?

É a pressão da sociedade sobre o ca- sal e principalmente sobre a mulher, a respeito da função reprodutiva. A es- terilidade ou infertilidade, vista como um “defeito” biológico, leva à discri- minação que alimenta o sentimento de inferioridade e de culpa na mulher.

A família, como tradicionalmen- te conceituada, constitui-se da união de um homem e de uma mulher e de sua prole. A ausência de filhos fragiliza a estrutura familiar e influi na relação entre os cônjuges. É comum as sepa- rações de casais que não podem con- ceber. E cada um dos participantes procura acreditar que o “defeito” é do outro, em uma busca desesperada para livrar-se da maldição da esterilidade.

Segundo Cabau e Senarclens, é grande o número de fatores subcons- cientes que determina o desejo por um filho. O filho sempre existiu, de uma forma ou de outra, nas fantasias do homem e da mulher. Por isso mesmo torna-se insignificante determinar se a infertilidade é causada pelo homem ou pela mulher; a descoberta atinge a ambos e afeta o equilíbrio do casal. Ainda segundo os autores: “Este é o primeiro sentimento expresso numa sociedade onde a anticoncepção é ampla, a fertilidade é aceita como cer- ta e o único problema é controlá-la. Para aqueles que têm o hábito de ven- cer todos os obstáculos, essa situação, na qual a sua vontade está impedida, pode parecer intolerável”. E esta intolerabilidade, segundo estudos rea- lizados pelos cientistas com base nas pesquisas de Menning, se manifesta em progressiva ascensão que passa por seis fases consecutivas: recusa, raiva, sensação de isolamento, culpa, obsessão, angústia e depressão.

115

Sem dúvida, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida trouxe uma possibilidade real aos ca- sais com problemas de infertilidade, auxiliando-os a realizar um dos mais primitivos desejos humanos: a repro- dução. A partir do conhecimento ad- quirido com a experimentação animal e a evolução do conhecimento cientí- fico na área reprodutiva humana, evo- luiu-se da inseminação artificial (IA) às atuais técnicas de fertilização in

vitro com transferência de embrião

(FIV). No entanto, ao lado dos benefí- cios trazidos com o desenvolvimento dessas técnicas, surgiram preocupa- ções e questionamentos de ordem téc- nica, moral, religiosa, jurídica e, prin- cipalmente, de natureza ética.

Uma das questões amplamente discutidas e que encerra um forte com- ponente social diz respeito ao direito de um casal investir importantes recur- sos financeiros e submeter-se a riscos, à sua própria vida e à de sua descen- dência, para ter um filho. À sua volta, legiões de crianças abandonadas ou vivendo em miséria absoluta. Não se- ria mais ética e socialmente mais jus- ta a adoção? A adoção seria mais jus- ta do ponto de vista social, principal- mente em um país como o Brasil. A convivência com uma criança, mesmo que não contenha a carga genética de um ou de ambos os cônjuges, quando integrada ao convívio familiar, desen- volve rapidamente a afetividade.

No entanto, a autodeterminação de cada indivíduo deve ser respeita- da, pois cada um tem o direito de ver satisfeitas as suas aspirações interio- res. E se a ciência dispõe dos meios que permitam essa satisfação, qual o impedimento de coloca-lá à disposição

daqueles que a necessitam? Ou seria um egoísmo exacerbado, por parte da mulher ou do casal, a procura de um filho que contenha seus componentes genéticos? Ou o desejo de vivenciar a fantástica experiência da gravidez e do parto? Não acreditamos que seja esse o sentimento envolvido. O sentimento, único que envolve essa procura por um filho é sem dúvida o amor, de tal inten- sidade que o casal renuncia à intimi- dade da concepção e à sua privacida- de quando admite a participação de um terceiro, nos casos de fertilização heteróloga.

No mundo inteiro, os países que dominam as técnicas de reprodução assistida têm procurado criar protoco- los e normas que impeçam desvios e distorções no desenvolvimento dessa nova tecnologia. A velocidade da evo- lução do conhecimento na área da re- produção humana tem exigido das so- ciedades e dos governos envolvidos uma permanente vigilância a respeito da questão.

Após o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, em 1978, na Inglaterra, o mundo, perple- xo, viu-se diante de um dilema ético até então só existente na ficção cientí- fica. A realidade, inesperada, provo- cou uma reação imediata dos países desenvolvidos. Os Estados Unidos cri- aram as Comissões Nacionais Gover- namentais. A Inglaterra constituiu a Comissão Warnock. A Suécia criou comissões especializadas sobre o as- sunto. A França, o Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde. Na Itália, o Comitê Nacional de Bioética, em dezembro de 1994, excluiu das possibilidades de utilização das técnicas de reprodução

116

assistida a doação de óvulos e espermatozóides em mulheres fora da idade reprodutiva, em casais do mes- mo sexo, em mulher solteira, após morte de um dos cônjuges e em casais que não proporcionem garantias adequa- das de estabilidade afetiva para criar e educar uma criança.

No mesmo sentido, o Colégio Mé- dico Italiano interviu ampliando a proi- bição de todas as formas de gravidez de substituição, em mulheres em menopau- sa não-precoce, sob inspiração racial ou socioeconômica e a exploração comer- cial, publicitária ou industrial de gametas, embriões ou tecidos embrionários. En- fim, os países industrializados procura- ram intervir sobre o problema. Não para impedir o desenvolvimento e o progres- so científico dessa nova tecnologia reprodutiva, mas para estabelecer limi- tes éticos e morais para sua utilização.

Na América Latina e nos países em desenvolvimento, praticamente não há regulamentação ou legislação sobre o assunto. Porém, com a cres- cente preocupação mundial a respeito dessa nova tecnologia, que desenvol- ve-se numa velocidade espantosa, a tendência de todos os países que já dominam as técnicas de RA é regula- mentar e controlar suas aplicações so- bre o ser humano. Regulamentação essa que tem como objetivo estabele- cer os limites de sua utilização e nun- ca obstaculizar ou impedir seu desen- volvimento científico. Da mesma for- ma, busca delimitar seu campo de apli- cação para não cair no terreno peri- goso da técnica pela técnica, desumanizando e artificializando o processo da reprodução humana.

No Brasil, o domínio das técni- cas de FIV teve início em 1984, quan-

do nasceu a primeira criança através de fertilização in vitro com transferên- cia embrionária. Até o momento, não há nenhuma regulamentação legislativa sobre o assunto. Trami- ta no Congresso Nacional o Proje- to de Lei n° 3.638, de 1993, de autoria do deputado Luiz Moreira, que regulamenta a utilização das técnicas de RA.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), antecipando-se a qualquer ini- ciativa governamental ou legislativa, regulamentou, com uma visão mais atual e liberal, em 1992, a utilização das técnicas de RA através da Resolu- ção CFM n° 1.358/92, a qual estabele- ce os critérios técnicos e éticos a se- rem seguidos por todos os médicos brasileiros que utilizam o procedi- mento. É importante registrar dois fatos. Primeiro, o projeto de lei ora em tramitação no Congresso Nacio- nal contempla, em sua íntegra, a Resolução CFM n° 1.358/92. Segun- do, preocupado com sua atualização, após cinco anos da edição, o CFM promoveu a sua revisão. Não foi ne- cessária nenhuma alteração, visto manter-se atualizada, cientifica e eti- camente, com o desenvolvimento al- cançado pelas referidas técnicas.

Principais conflitos éticos

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 111-114)