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A LÓGICA CULTURAL DA TELEVISÃO (INSTÂNCIA DE RECEPÇÃO)

Ao inserirmos a atuação da instância de recepção no processo comunicacional e o entendimento sobre os níveis de mediação que se estabelecerão, reconhecemos também a crescente necessidade dos agentes integrantes desta instância de ver seus momentos socioculturais e suas reivindicações contempladas pela instância de produção, sobretudo da televisão no que se refere a uma construção social da realidade.

É fundamental considerar a perspectiva de Martin-Barbero (2003) quanto à mudança de papel e de funções das massas no processo de enculturação e suas relações com as instâncias produtoras de sentido, em plena operação nos sistemas midiáticos. Este seria o berço do cenário atual da recepção sobre o qual estamos tratando.

O longo processo de enculturação das classes populares no capitalismo sofre desde meados do século XIX uma ruptura mediante a qual obtém sua continuidade: o deslocamento da legitimidade burguesa „de cima para dentro‟, isto é, a passagem dos dispositivos de submissão aos de consenso. Este „salto‟ contém uma pluralidade de movimentos entre os quais os de mais longo alcance serão a dissolução do sistema tradicional de diferenças sociais, a constituição das massas em classe o surgimento de uma nova cultura, de massa (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 179).

Martin-Barbero evoca Habbermas afirmando que há uma dialética de estatização progressiva da sociedade, paralela a uma socialização do Estado, que começa paulatinamente a destruir as bases da publicidade burguesa: a separação entre Estado e sociedade. Entre ambas, e, por assim dizer, de ambas, surge uma esfera social repolitizada que confunde a diferença entre o público e o privado (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 180).

A crise que a dissolução do público produz na legitimidade burguesa não conduz à revolução social e sim a uma recomposição de hegemonia. Segundo o autor, é “a partir desse momento que a cultura é redefinida e modificada em sua função” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 180). O vazio aberto pela desintegração do público será ocupado pela integração que produz o massivo, a cultura de massa, uma cultura que, em vez de ser o lugar onde as diferenças sociais são definidas, passa a ser o lugar onde tais diferenças são encobertas e negadas e, portanto, reconhecidas. A alteração desse pressuposto reflete diretamente na dinâmica das mídias e suas operações.

Ir além da definição conceitual das diferenças sociais, para uma atuação de negação e sublimação cultural, geradas pela produção simbólica do sistema midiático, em especial do meio televisivo, mostra-nos o atendimento às ideologias oriundas de pressões externas à engrenagem de produção da TV. Segundo o autor, “isto não ocorre por um estratagema dos dominadores, e sim como elemento constitutivo do novo modo de funcionamento da hegemonia burguesa: como parte integrante da ideologia dominante e da consciência popular” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 180).

Na perspectiva de Martin-Barbero, o poder de dominação passa a incorporar as estratégias dos operadores dos sistemas de comunicação. Com o tempo, mediante ao avanço tecnológico, a materialidade técnica vai gradualmente se transformando em potencialidade comunicativa. Quem controla os meios induz processos de mediação (MARTIN-BARBERO, 2003).

Estamos situando os meios no âmbito das mediações, isto é, num processo de transformação cultural que não se inicia nem surge através deles, mas no qual eles passarão a desempenhar um papel importante a partir de um certo momento. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 203)

Alcançamos, então, a formatação da cultura de mediação de massa, como sendo forjada entre as tensões oriundas de interesses econômicos, da falência do Estado e de uma sociedade civil fortalecida que resguarda os limites de sua liberdade. É neste cenário que se instala o paradigma hegemônico do sistema midiático.

Por outro lado, o paradigma hegemônico está sustentado numa fragmentação do processo, que é, por sua vez, convertida em garantia de rigor e critério de verdade. Essa fragmentação equipara o processo de comunicação ao de transmissão de uma informação ou, melhor dizendo, reduz aquele a este. Daí se converter em verdade metodológica a separação entre a análise da mensagem – seja uma análise de conteúdo ou de expressão, de estruturas textuais ou operações discursivas – e a análise da recepção concebida simples ou sofisticadamente como indagação acerca dos efeitos ou da reação. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 293)

Esta abordagem nos remete ao ambiente de produção de sentido dos sistemas da televisão que envolve mecanismos de negociações internas (produção) e externas (recepção). Um movimento que deslocaria a perspectiva de mediacentricismo para uma intersecção com os sistemas econômico, cultural e político (MARTIN-BARBERO, 2003) que implicaria em processos de mediação.

Nessa lógica observaríamos de três lugares de mediação midiática: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. Rompe-se assim com o conceito de que a televisão seria corruptora das tradições familiares e passa-se a considerar que a mediação da cotidianidade familiar, na configuração da televisão, não se limita ao que pode ser examinado no âmbito da recepção, pois inscreve suas marcas no próprio discurso televisivo (MARTIN-BARBERO, 2003).

A TV, então, forjaria dispositivos fundamentais, simulando contratos e a retórica do direito, em atendimento à necessidade social de intermediários que facilitem o trânsito entre a realidade cotidiana e o espetáculo ficcional produzidos em suas narrativas.

No cinema, a função comunicativa central é a poética, e isto, ao menos como intenção, até nos filmes mais baratos, quer dizer a transfiguração arquetípica da realidade. Já na televisão, o personagem e o “animador ou apresentador” fazem a ligação entre a ficção e a realidade, conferindo à narrativa o “clima coloquial exigido” para atuação como interlocutores em plena simulação de diálogos familiares.

Diante desse espaço, fascinante e, portanto, distanciador (do cinema), o espaço da televisão é dominado pela magia do ver: por uma proximidade construída mediante uma montagem que não é expressiva, e sim funcional, sustentada na base da „gravação ao vivo‟, real ou simulada. Na televisão, a visão predominante é aquela que produz a sensação de imediatez, que é um dos traços que dão forma ao cotidiano. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 307)

Sendo assim, na televisão, instala-se um processo de construção discursiva pautado na ideia de “familiarização total”, aproximando ao máximo a instância de produção da instância de recepção. Os rostos da TV devem ser próximos, amigáveis. O

discurso se constrói no ideal de transparência e na simplificação da organização das imagens com clareza e economia narrativa.

Nessa perspectiva, o autor compreende a televisão como uma instância de repetição temporal fragmentada e insere a programação e a vinculação de gêneros na atuação da TV como um paradigma de mediação.

E a matriz cultural do tempo organizado pela televisão não seria justamente esta, a da repetição e do fragmento? E não seria ao se inserir no tempo do ritual e da rotina que a televisão inscreve a cotidianidade no mercado? O tempo com que organiza sua programação contém a forma da rentabilidade e do palimpsesto, um emaranhado de gêneros. Cada programa, ou melhor, cada texto televisivo remete seu sentido ao cruzamento de gêneros e tempos. Como gênero, pertence a uma família de textos que se replicam e reenviam uns aos outros nos diferentes horários do dia e da semana. Como tempo „ocupado‟, cada texto remete à sequencia horária daquilo que o antecede e daquilo que o segue, ou àquilo que aparece no palimpsesto nos outros dias, no mesmo horário. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 308)

Também vamos considerar o conceito de serialidade da televisão, em dinâmica cultural por meio dos gêneros que opera. A partir desses gêneros, a televisão ativa a competência cultural e, a seu modo, dá conta das diferenças sociais que a atravessam. Os gêneros que articulam narrativamente as serialidades constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do sistema de produção e as do sistema de consumo, entre as do formato e a dos modos de ler, dos usos.

Para que a entrada na lógica, isto é, na estrutura da dinâmica da produção televisiva, de onde viemos, não signifique a recaída numa generalidade vazia, devemos nos ater a um critério: o que importa é o que configura as condições específicas de produção, o que da estrutura produtiva deixa vestígios no formato, e os modos com que o sistema produtivo – a indústria televisiva – semantiza e recicla as demandas oriundas dos „públicos‟ e seus diferentes usos. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 311)

A partir desse entendimento, Martin-Barbero faz distinções que precisam ser consideradas quanto à proposta de análise “dos usos” que propõe e a proposta “dos usos e gratificações”. O autor nos remete a um reposicionamento do estudo da instância da recepção em que a problemática se situe no campo da cultura e dos conflitos que esta articula.

Essa nova problemática instalada nos remeterá a uma atuação da televisão cada vez mais articulada e respaldada nas bases culturais estabelecidas nas sociedades. “Entre a lógica do sistema produtivo e as lógicas dos usos, medeiam os gêneros. São

suas regras que configuram basicamente os formatos, e nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 313).

Considerando as estratégias de interação da mídia em constante operação, isto é, os modos reconhecíveis, temos que, segundo o autor, considerar que a lógica da própria televisão organiza a competência comunicativa, os emissores e os destinatários e, sobretudo, reposiciona os gêneros dentro da própria concepção que se teve de comunicação. Assim, operando cultural e socialmente a partir dos gêneros, a televisão se consolida como fundamental na manutenção de certo equilíbrio nas relações com os demais campos e sistemas.

Momentos de uma negociação, os gêneros não são abordáveis em termos de semântica ou sintaxe: exigem a construção de uma pragmática, que pode dar conta de como opera seu reconhecimento numa comunidade cultural. Assim mesmo, o texto do gênero num estoque de sentido que apresenta uma organização mais complexa do que molecular, e que, portanto, não é analisável seguindo uma lista de presenças, mas buscando-se a arquitetura que vincula os diferentes conteúdos semânticos das diversas matérias significantes (MARTIN- BARBERO, 2003, p. 314).

Nessa dimensão pragmática de Martin-Barbero, que acompanha a escola italiana, os gêneros televisivos são, antes de qualquer coisa, uma estratégia de comunicabilidade que leva em conta as matrizes culturais que os operam. Ou seja, a competência textual e narrativa deve ser encontrada tanto na condição de emissão quanto de recepção. “Falantes do idioma dos gêneros, os telespectadores, como nativos de uma cultura textualizada, desconhecem sua gramática, mas são capazes de falá-lo” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 314). O mundo dos gêneros “não tem valências fixas”, especialmente no caso a televisão onde se definiria não apenas sua arquitetura interna, mas também por seu lugar na grade de programação – incluindo-se sua articulação no palimpsesto televisivo. O que geraria uma necessidade de construir um sistema de gêneros que corresponda configuração cultural, jurídica e de desenvolvimento da indústria televisiva de cada País (MARTIN-BARBERO, 2003).

Dito de outra forma, a pertinência metodológica para compreender as operações no ambiente dos sistemas televisivos não pode prescindir da perspectiva comunicacional que contempla os processos de interação entre emissores e receptores que mobilizam meios, textos e competências comunicativas. Uma perspectiva que relativiza bastante, mas não anula totalmente, o pressuposto de centralidade e manipulação de Bourdieu.

O que vai nos importar, para nosso percurso, é a ideia de gênero como negociação entre as instâncias de produção e recepção, numa perspectiva pragmática, que vai ser designada como interface por François Jost (2004).

Ao analisar os mundos da televisão, Jost considera que todo o gênero é fundado sobre a relação com um mundo cujo grau de existência condiciona a adesão ou a participação do telespectador, indo além do modelo de contrato nesse meio que o próprio autor define: “Em televisão, pode-se definir a noção de contrato como um acordo graças ao qual o emissor e o receptor reconhecem que se comunicam e o fazem por razões compartilhadas” (JOST, 2004, p. 9).

Jost nos apresenta o conceito de promessa como estratégia das emissoras para recorrer aos gêneros como meio de negociação entre as instâncias de produção e recepção no processo comunicacional adotado pela televisão. O semioticista francês sugere que a relação de controle desta mídia passa a um novo estágio, formatado a partir das informações emitidas gratuitamente pela audiência (recepção), conduzidas precisamente pelas emissoras no modelo de promessa.

Ora, precisamente o que caracteriza a comunicação televisual na era da publicidade são as estratégias de imposição de sentido dos produtos. Longe de circular sozinho como na época pré-televisual vem hoje acompanhado de uma multiplicidade de entrevistas com autores e atores, de comunicados feitos pela imprensa, etc. Em razão de todos esses peritextos, esses paratextos, esses epitextos são também promessas sobre o benefício do prazer simbólico que o telespectador vai usufruir. (JOST, 2004, p. 27)

A estratégia da promessa recorreria a uma planejada ação das emissoras para construir junto ao telespectador competência de recepção e posterior engajamento numa operação na qual o gênero operaria como interface, como mediação.

4 TELEVISÃO: HISTÓRIA E TECNOLOGIA

Neste capítulo partiremos do sonho pré-midiático20 que vislumbrou o

nascedouro da televisão e suas relações na sociedade humana. Apresentaremos uma relação paradoxal de evolução marcada pela abordagem dos conceitos de paleoTV e neoTV (ECO,1983), que implicaram diretamente a formatação e dinâmica dos processos de que dá conta a televisão.

Mais adiante veremos uma abordagem histórica de instalação da televisão no Brasil. Um breve panorama das relações de poder que essa mídia, se não criou, impulsionou desde que foi inaugurada no País. Em solo brasileiro, as relações que a própria televisão desenvolveu ao longo do tempo com os outros sistemas (social, político, econômico, etc.) trouxeram e continuarão a trazer, de forma latente, impactos diretos sobre a sua própria lógica de funcionamento.

Também apresentaremos um conflito de eras entre a pós-modernidade e a hipermodernidade, que se configurarão, conforme depreendemos, estruturantes para compreendermos o cenário do objeto de análise dessa pesquisa: a instalação de TVs Corporativas no Brasil.

Por fim, apresentaremos uma breve análise das relações entre a tecnologia e os avanços da mídia televisão, até alcançarmos o conceito de “palimpsesto” do canal televisivo, que nos servirá de parâmetro comparativo para sugerir uma definição para TV Corporativa.