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A lógica e funcionamento do processo de formação legislativa

2.1 Elementos do processo Legislativo e o processo de formação das leis

2.1.3 A lógica e funcionamento do processo de formação legislativa

Todo processo pressupõe a ideia de contraditório. Não é exagero afirmar- se isso. É a própria Constituição quem positiva tal garantia em seu art. 5º, inciso LV, como um imperativo a ser seguido, tanto nos processos judiciais, quanto nos processos administrativos.98

O contraditório, portanto, é uma característica do processo. Não há falar em validade dos procedimentos sem que se respeite essa garantia constitucional.99

Essa atividade encontra-se presente, inclusive, no processo de formação das leis. Como se viu, o objetivo do processo legislativo é justamente a elaboração da lei. Os diversos procedimentos concatenados que levam à estruturação do processo legislativo só existem para se chegar à lei em seu sentido maior.

Dessa forma, os procedimentos devem ser munidos da garantia constitucional do contraditório, sob pena de o processo de formação da norma tornar-se viciado ou não corresponder aos anseios sociais.

Adiante, será estudada a composição das casas legislativas e como os partidos políticos interagem entre si dentro do Parlamento. Não se deixará de mencionar que essa estrutura plural do Parlamento é fundamental para o processo de formação legislativa.

98 A propósito, o Supremo Tribunal Federal ratificou esse entendimento ao editar a Súmula Vinculante 3, publicada em 6/6/2007, com relação, especificamente, ao Tribunal de Contas da União, a saber: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”.

99 CARNELUTTI, Francesco. Como se Faz um Processo. 3. ed.. Sorocaba: Editora Líder, 2005. p. 91. De acordo com o autor, “O contraditório se desenvolve nos moldes de um diálogo, para cuja eficácia se necessita de uma certa preparação técnica e de um certo domínio de si”.

Isso porque, em uma democracia, a tendência é que os Parlamentos sejam compostos de representantes das mais diversas classes sociais, de banqueiros a bancários, de grandes latifundiários a representantes de movimentos sociais que militam a favor da reforma agrária, de grandes empresários a sindicalistas que lutam em prol dos direitos dos trabalhadores.

Enfim, a democracia bem construída pressupõe a participação efetiva de tantas classes e interesses quanto existirem. Bovero ressalta essa tendência ao afirmar que:

Os eleitos para o parlamento “representam” os cidadãos eleitores de forma democrática não apenas porque são por eles designados a substituí-los nas fases conclusivas do processo decisório, mas na medida em que o parlamento, em seu todo, e em suas várias partes componentes, espelha as diversas tendências e orientações políticas presentes no país globalmente considerado, sem exclusões, e nas respectivas proporções.100

A questão também é lembrada por Canotilho:

A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples delegação da vontade do povo. A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos seus actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além das suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo desses actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material. Existe, pois, na representação democrática, um movimento referencial substantivo, um momento normativo que, de forma tendencial, se pode reconduzir às três idéias seguintes: (1) representação como actuação (cuidado) no interesse de outros e, concretamente, dos cidadãos portugueses; (2) representação como disposição para responder (responsiveness, na terminologia norte-americana), ou seja, sensibilização e capacidade de percepção dos representantes para decidir em congruência com os desejos e necessidades dos representados, afectados e vinculados pelos actos dos representantes; (3) Representação como processo dialético entre representantes e representados no sentido de uma realização actualizante dos momentos ou interesses universalizáveis do povo e existentes no povo.101

Nesse sentido, poder-se-ia a afirmar que, quanto mais solidificada for a democracia, mais complexo é o processo de deliberação e deflagração da formação das leis.

100 BOVERO, Michelangelo. Contra o Governo dos Piores: uma gramática da democracia. Trad. Daniela Beccaria. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p. 61.

101 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed.. Portugal: Almedina, 1998. p. 283.

Evidente, pois o pluralismo ideológico que tende a prevalecer na representação parlamentar traz à tona mais e mais ideias que se contrapõem, dificultando a elaboração do consenso.

Mas o consenso não necessariamente é o que deve ser buscado no processo de formação das leis. Mais uma vez de acordo com a obra de José Afonso da Silva:

Nesses momentos históricos de mudança profunda, o processo contraditório estabelece-se, em resumo, da seguinte forma: de um lado a tese apresentada pela ideologia postuladora das transformações estruturais da sociedade; de outro a antítese contida na ideologia, que resiste à pretensão de mudanças, para conservar o status quo vigente; a síntese, solução do processo contraditório, chegar-se-á por via legislativa, não havendo os empecilhos apontados acima; na falta dessa solução, acabar-se-á chegando à síntese por via revolucionária.102

Eis o que se deve levar em conta no processo de formação das leis: a teoria da dialética ou, como mais conhecida, a dialética hegeliana. A busca da síntese pode até ser a busca do consenso, mas não necessariamente o é.

Até porque, como bem se sabe, o processo legislativo pressupõe a votação, e nem sempre a vitória é o consenso. Muitas vezes, vence um lado, mas dificilmente assim o é sem que este lado tenha feito as necessárias concessões para se chegar ao resultado.

É que o Parlamento, conforme já afirmado, não é uma instituição com dois lados apenas. Ao contrário. Em uma democracia moderna, ele é a soma de diversos interesses próximos ou antagônicos, que se chocam numa dialética constante que é o processo de formação das leis.

Não há uma bipolaridade, mas sim uma multipolaridade de interesses que se sobrepõem quando determinada matéria é deliberada. E essa é a lógica do processo constitucional de formação das leis.

Essa mesma lógica deve prevalecer no processo legislativo orçamentário, ainda que as leis nesta seara sejam de iniciativa do Executivo.

Quando se falou anteriormente sobre o conceito e princípios que compõem o processo legislativo, afirmou-se que o seu resultado é sempre a elaboração da lei. Reafirmou-se a importância do respeito a alguns pressupostos e condições a fim de se resguardar a higidez do processo legislativo.

A lógica do processo dialético nada mais faz do que dar substrato à noção de lei e ao seu processo de formação, pois viabiliza a síntese de vários pensamentos que se contrapõem.

Fábio Alexandre Coelho ressalta o aspecto sociológico que interfere no processo legislativo. Segundo o autor, trata-se da influência exercida pela mídia, opinião pública, grupos organizados, grupos de pressão ou corporações sobre o processo legislativo.103

Enumera dois exemplos emblemáticos que, de alguma forma, demonstram a força das questões sociais sobre a elaboração da lei. O primeiro deles seria a inserção do seqüestro como crime hediondo, decisão que resultou do episódio do sequestro do empresário Abílio Diniz, ocorrido em 1990.

O outro exemplo seria a também inserção do crime de assassinato, em algumas hipóteses, como hediondo após o assassinato da atriz Daniela Perez.

Nelson de Sousa Sampaio, ao conceituar o termo processo legislativo, também faz uma divisão entre o sentido sociológico e o sentido jurídico. O primeiro agruparia todos os elementos que influenciam a atuação parlamentar. O autor cita os grupos de pressão, acordos partidários e entre os próprios legisladores que interferem na

conduta ou comportamento do legislativo.

Já o segundo seria a inserção do processo legislativo como gênero do direito processual. Há, portanto, um balizamento teórico e principiológico para conceituar a série de procedimentos que compõem o processo legislativo.104

Não há dúvidas de que os fatos sociais, aliado ao grande clamor popular influenciaram significativamente o processo de formação das leis.

Essa é uma questão evidente e que, sem dúvida, interfere no processo de elaboração legislativa. A influência dos grupos de pressão e o papel exercido por eles com a atividade de lobby certamente acirram o processo dialético de formação das leis.

E a pressão não é exercida apenas por aqueles que financiam campanhas de parlamentares ou por grupos econômicos, mas também por militantes de movimentos sociais e outras causas fundamentais.

O grande problema que envolve esse tema diz respeito ao fato das questões de comoção nacional poderem vir a dominar a agenda legislativa moderna.

Não obstante os exemplos citados, recentemente, assistiu-se a uma grande movimentação, no Senado Federal, para a aprovação de projetos na área de segurança pública e de combate à criminalidade a partir de fevereiro de 2007.

Foi reativada a Subcomissão Permanente de Segurança Pública do Senado Federal, vinculada à Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa, que acabou por deliberar sobre uma série de medidas. A maioria delas aumentava o tempo de pena para determinados crimes, além de tipificar novas condutas como criminais.

Significativa também foi a aprovação, pela CCJ da Casa Federativa, da Proposta de Emenda à Constituição 20/1999, de autoria do então Senador José Roberto Arruda, que altera o artigo 228 da Constituição Federal e reduz para 16 (dezesseis) anos a idade para imputabilidade penal.

Se for analisada a tramitação da matéria, constata-se que os últimos andamentos a ela relacionados ocorreram no ano de 2004. Após isso, a matéria chegou a ser encaminhada ao Plenário do Senado para que, em assim decidindo aquele órgão, fosse arquivada em virtude da mudança da legislatura e de o Senador Arruda não mais ser membro da Casa.

Surpreendentemente, a matéria voltou a tramitar, com muita força, na CCJ do Senado em fevereiro de 2007.

A partir de então, a PEC teve uma célere tramitação na Comissão, foi aprovada por aquele órgão em abril do mesmo ano e foi encaminhado ao Plenário da Casa logo em seguida, onde se encontra para discussão desde 23/10/2007.105

Esse fato comprova a força da opinião pública na estipulação da ordem do dia das Casas legislativas.

Não se está, aqui, emitindo qualquer juízo de valor acerca do mérito de se aprovar ou não a referida PEC. Apenas coloca-se que não é possível ignorar que os aspectos sociais e, consequentemente, os sociológicos interferem e muito no processo de formação das leis.

A grande questão introduzida é: até que ponto é racional o Congresso pautar-se pelos interesses da opinião pública e pelo que a mídia coloca como prioridade em suas matérias?

Até que ponto é representativo deliberar sobre esses assuntos que mexem com a comoção nacional no momento específico da crise, quando os próprios parlamentares encontram-se influenciados por seus valores particulares, sem que, com isso, consigam ouvir o que a sociedade realmente quer?

Essas questões demonstram a força da sociedade de massa sobre os representantes escolhidos pelo povo.

105 Informações obtidas no sítio eletrônico do Senado Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=837>. Acesso em: 28 out. 2008.

Em um Congresso plural, a atividade de pressão pode ser exercida, inclusive, por grupos sobre candidatos cuja plataforma de campanha tenha se baseado em movimentos ou questões sociais.

É frequente a pressão feita pela base de um parlamentar sobre a sua atuação, o que gera conflitos cada vez maiores no processo de elaboração legislativa.

Saber diferenciar o que são interesses corporativos daqueles que podem ser considerados interesses sociais é o grande desafio no processo de formação das leis.

Para isso, talvez seja necessário sempre recorrer ao conceito e princípios do processo legislativo para que essa atividade não se perca nos diversos procedimentos que levam à formação da lei.

Por fim, cumpre ressaltar que, além do aspecto sociológico, que interfere significativamente no processo legislativo, o aspecto jurídico também é importante na lógica de construção das leis pelo Parlamento.

Fábio Alexandre Coelho afirma que, dentro de um sistema positivista bem estruturado, é a própria Constituição que serve como fonte das normas que regulamentam o processo legislativo.106

No Brasil, isso não é diferente. Todo o processo legislativo está devidamente positivado em nossa Carta Maior, mais especificamente nos artigos 59 a 69, quando o texto constitucional, primeiramente, classifica o que se pode considerar processo legislativo, trata das emendas à Constituição, as hipóteses em que ocorrerão e as hipóteses de impossibilidade, trata das leis, sua hierarquia, bem como da iniciativa privativa ou concorrente.

Além disso, a questão também encontra-se positivada em dispositivos infraconstitucionais, tais como a Lei Complementar 95/98, como também nos regimentos internos das Casas, fato esse que demonstra que a sistematização do processo legislativo brasileiro encontra-se exaustivamente positivada.

É importante argumentar, a essa altura, que tudo o que se tem dito sobre o processo deveria valer, em tese, para o processo orçamentário, pois este nada mais é do que uma forma de expressão do processo legislativo na elaboração das leis orçamentárias.

Contudo, no capítulo quarto, pretende-se demonstrar como toda essa lógica de funcionamento e os princípios aplicáveis ao processo legislativo nem sempre são respeitados no processo orçamentário.