• Nenhum resultado encontrado

O modelo de parlamento Norte Americano: O Senado e suas funções

2.2 O Poder Legislativo na história

2.2.3 O modelo de parlamento Norte Americano: O Senado e suas funções

Ao contrário do que ocorrera com a Revolução Francesa, na Revolução que eclodiu em 1787 na América, não se buscava a todo custo a igualdade de condições. A sociedade norte-americana desconhecia as divisões em classes, estamentos ou mesmo as guerras religiosas que se travaram nos países revolucionários europeus do mesmo período.

Uma das grandes ideias revolucionárias residia na abolição da escravatura, o que poderia ser considerada a maior desigualdade promovida pela colônia pré-independente. Mas, evidentemente, não se tratava apenas disso.

Havia, nas Colônias, um nítido sentimento de exploração pela Inglaterra, especificamente, após a vitória dela sobre a França na Guerra dos Sete Anos.126

Embora vitoriosa, a guerra custou muito caro à Coroa Inglesa e o seu custo acabou sob o encargo da própria Colônia.

Não que o controle político da Coroa importunasse a vida da Colônia Americana, que, já bastante influenciada pelo liberalismo, parecia não esconder a vontade de que os negócios estrangeiros permanecessem nas mãos do Rei e de seus ministros e que, dessa forma, o estado não interferisse de forma significativa nos negócios econômicos. .

125 RUFFIA, Biscaretti Di. Diritto Costituzionale. 15. ed.. Napoli: Casa Editrici, 1989. p. 266.

126 A Guerra dos Sete Anos durou de 1756 a 1763, período em que a França e a Inglaterra disputaram a hegemonia além mar. A França, apoiada pelos austríacos, procurava diminuir o poder que a Inglaterra exercia sobre as suas colônias. Essa foi uma das batalhas travadas entre as duas grandes potências ocidentais de então pela disputa de prestígio sobre o resto do mundo.

Assim, desde que o Poder central mantivesse distância dos negócios americanos, não haveria porque contrapor-se ao seu controle meramente político.

Com a gradativa intervenção tributária da Inglaterra sobre os norte- americanos, iniciou-se um processo de resistência, uma vez que a interferência na área econômica, ou melhor, no bolso dos liberais exitosos com um sistema econômico já bastante avançado na norte América, não agradava à maioria da classe burguesa.

A questão econômica era um ponto de atrito entre a Inglaterra e as Colônias Norte-americanas desde a restauração da Monarquia, com Carlos II. Nas Palavras de H. G. Wells:

Carlos II e seus associados estavam sedentos de lucros, e a coroa britânica não tinha desejo algum de renovar as experiências de taxação ilegal dentro do próprio país. Oras, as indefinidas relações entre as colônias e a coroa e governo britânicos pareciam oferecer, além atlântico, uma promessa de rendosa aventura financeira.127

Relembra Fábio Konder Comparato que:

Em 1765, um novo imposto de selo veio perturbar fundamente as transações comerciais em toda a América do Norte. Em 1767, era a vez do comércio exterior das colônias ser afetado por novos direitos tarifários. Para um povo que revelou, desde os primórdios, um marcado espírito mercantil, essas medidas eram dificilmente suportáveis.128

Percebe-se que esse ponto nevrálgico tornara-se uma das principais fontes de contestação e de resistência que se instaurava na colônia.

À época, o Parlamento britânico, tanto na Câmara dos Lordes, quanto na dos Comuns, encontrava-se representado por uma nobreza e uma burguesia ansiosa por retirar da colônia o maior proveito econômico possível. O que houve, então, foi um verdadeiro choque de representatividade que explicitava visões e valores antagônicos para a concepção de Estado.

127 WELLS. H.G. História Universal. op. cit.. p. 273.

Mas não foi apenas a exploração econômica que levou à emancipação das colônias. Antes mesmo do processo de independência, elas já possuíam assembleias legislativas próprias, aptas para deliberarem sobre assuntos locais.

Nesse espaço, o pequeno colono encontrava-se representado e, de alguma forma, já possuía certa voz ativa na condução dos negócios em seu locus.

A democracia já era conhecida pelos habitantes do novo mundo. Não é a toa que uma das principais características da Declaração de Independência dos Estados Unidos foi a afirmação peremptória desse instrumento como um princípio basilar do novo Estado.

Dessa forma, a noção de poder soberano do povo coloca-se como um imperativo nessa nova ordem política. A ideia de soberania popular é, então, cristalizada como instrumento fundamental para o funcionamento do Estado, basicamente, configurou- se como alicerce de um modelo democrático de Estado que passa a se desenhar.

Mais do que isso, e antes mesmo da Declaração de Direitos da França, em 1789, a Declaração Norte-Americana reconheceu direitos e garantias individuais juntamente com essa noção de soberania popular e de democracia. Tal fato era realmente inovador e inusitado.

A partir dessa revolução liberal, juntamente com a Revolução Francesa, o mundo jamais seria o mesmo. Não apenas pela mudança de um sistema político que havia prevalecido quase incólume por séculos, qual seja, o absolutismo, mas principalmente por esse novo modelo de Estado trazer à tona – e cristalizar – valores tão fundamentais para a sociedade moderna como a soberania, a democracia e a garantia de direitos.

Nessa esteira, e como órgão institucional garantidor de todas essas novas conquistas, o Parlamento ganha uma atribuição fundamental, qual seja, a de positivar o direito em benefício da sociedade.

Tamanha é a importância que essa atribuição adquire nesse novo Estado que, nos Estados Unidos, acaba estruturado de forma diferenciada, com a criação do modelo parlamentar bicameral.

Esse modelo de aperfeiçoamento do Congresso não vem sozinho. Alia-se à noção de um inédito sistema presidencialista, em que o chefe do poder seria escolhido pelo próprio povo em contrapartida ao modelo monárquico que predominava na Europa.

Parecia – como, aliás, até hoje parece – mais coerente com a ideia de soberania popular, democracia e representação, a possibilidade de o próprio povo escolher o seu representante maior que, auxiliado por uma estrutura parlamentar inovadora, levaria a cabo as políticas necessárias não apenas para a unificação, como também para o desenvolvimento daquela nova nação.

A criação do Senado Federal foi fundamental para a consagração desse novo modelo de Parlamento democrático. Essa segunda Casa cumpria uma função essencial de representação daquelas Colônias, agora federadas em um único Estado, que teriam voz ativa na política estatal.129

De acordo com o texto do Federalista, a estruturação do Senado Federal, que concedeu a cada ente da Federação a mesma representatividade nacional,

é, por sua vez, o reconhecimento constitucional da parte de soberania que conservam os Estados individuais e um instrumento para protegê-la. Sob este ponto de vista, a igualdade deveria ser tão aceitável nos Estados mais extensos, como nos menores, já que terão o mesmo empenho em

129 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. op. cit.. p. 79. O autor relata o processo de criação do Senado Federal: “Demais, é duvidoso que o bicameralismo seja da essência do sistema federativo. Ele surgiu no federalismo americano, na forma de um compromisso entre duas teses, defendida com igual ardor entre os convencionais da Filadélfia, em 1787, que se enfrentavam sobre a questão do número de deputados a atribuir a cada Estado-membro, na hipótese de uma Câmara única. Os pequenos Estados não concordavam com uma representação na Câmara, proporcional à população – portanto, desigual; os grandes Estados não concordavam com uma representação igual, pois achavam que essa deveria ser proporcional à população. Daí o impasse cuja solução se verificou com a criação do Senado. Assim, uma Câmara, a dos Representantes, compor-se-ia de representantes do povo e cada Estado elegeria um número de Deputados que sua população, dividida por certo número de eleitores, comportasse, o que daria mais representatividade para os Estados populosos e menos para os Estados pequenos; a outra Câmara, o Senado, seria formada de número igual de representantes por Estado (dois) independente do tamanho populacional”.

precaverem-se por todos os meios possíveis contra a indevida consolidação dos Estados em uma república unitária.130

Conforme dispõe a primeira seção do art. 1º da Constituição Norte- Americana, o Congresso é composto de:

Um Senado com igual número de representantes de cada Estado, e uma Câmara de representante do povo dos Estados, em número proporcional às suas populações.131

Além disso, o Senado passaria a desempenhar um importante papel de ponderação no processo legislativo, na medida em que, juntamente com a Câmara dos Representantes, tornar-se-ia mais um obstáculo a ser vencido por atos normativos inconvenientes.

A partir de então, nenhuma lei ou resolução poderia ser aprovada sem o voto favorável da maioria do povo e da maioria dos estados. De acordo com O Federalista:

Devemos confessar que este complicado freio sobre a legislação pode redundar nocivo tanto como benéfico em alguns casos, e que a defesa especial que implica a favor dos Estados pequenos seria mais racional se certos interesses, comuns a estes e diferentes daqueles dos Estados restantes, se vissem expostos a perigo no caso de que se procedesse de outra forma. Porém, como os Estados maiores estarão sempre capacitados por seu poder sobre as receitas para reprimir a aplicação indevida dessa prerrogativa dos Estados pequenos e, como a facilidade e o excesso das leis parecem ser os males a que nossos governos estão mais expostos, não é impossível que esta parte da Constituição seja mais conveniente na prática do que parece a muitos que raciocinam sobre ela.132

Dessa forma, o Senado nasce com uma função não apenas de representação paritária dos interesses dos Estados, mas também como uma forma de controle para um processo legislativo desenfreado.

Não seria exagero, nesse ponto, supor que a Câmara de Representantes iniciasse seus trabalhos com uma fúria legislativa, ou seja, com uma vontade significativa

130 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. Trad. Reggy Zacconi de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1959. p. 249.

131 WALKER, Harvey. O Congresso Americano e o Parlamento Britânico. op. cit.. p. 20. 132 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista . op. cit.. p. 249.

de positivar as leis a todo esforço, a fim de que estas fossem a síntese da vontade popular calcada nesse modelo de representação.

É de se constatar, pois, que a problemática da contenção legislativa não passou despercebida pelos teóricos desse novo modelo de Parlamento, vingando desde estão e influenciando significativamente os Parlamentos modernos.

A inovação trazida com a criação do Senado acabou por consagrar um novo modelo de Parlamento, mais forte e coeso, e que, certamente, ganharia novas atribuições no modelo de governo presidencialista e democrático.

A existência de uma Casa legislativa que representava os interesses daquela nova federação que então se formava impôs um controle ainda maior do Parlamento sobre as ações do Executivo.

O Presidente da República haveria de fazer cumprir os desígnios traçados tanto pelos representantes populares da Câmara, como também por aqueles que representavam o novo e inusitado pacto federativo formado entre as Treze Colônias.

Juntamente com o modelo presidencialista de governo, a criação do Senado acabou por propiciar um novo modelo de Parlamento que seria seguido pelas novas nações emergentes que surgiam a partir de um processo de independência das grandes metrópoles.

É bem verdade que esse modelo consolidou o sistema bicameral embora não o tenha criado. Ressalta Biscaretti di Ruffia que a origem histórica do modelo bicameral se desenvolveu na Inglaterra, ainda no período medieval, mas apenas muitos séculos depois acabou adotado pelos parlamentos modernos, inicialmente nos Estados Unidos.133

Interessante notar que, nos primórdios de sua formação, o Senado americano exerceu um fundamental papel de controle e de revisão das leis aprovadas pela Câmara dos Deputados.134

Assim, mais do que uma casa de representação dos Estados, que, inicialmente não estavam representados em sua totalidade, o Senado exerceu um papel de revisão das leis que eram elaboradas pelos deputados.

Se, nos primórdios do bicameralismo, a Câmara Alta resguardou os direitos de uma nobreza que temia perder seu poder, dividindo, dessa forma, esse poder com uma burguesia ascendente, posteriormente, a divisão das Câmaras possibilitou não mais essa divisão estamental, mas a possibilidade de controle salutar entre as Câmaras parlamentares.

Essa característica de Casa revisora ou, como preferem classificar alguns, de Casa moderadora, o Senado contemporâneo jamais perdeu. Não obstante sua capacidade legiferante tenha aumentado nos últimos anos, especialmente no Brasil, o Senado ainda cumpre um papel fundamental de contenção, conforme será analisado no terceiro capítulo.

Desnecessário afirmar que esse modelo de Parlamento inspirou por completo os arautos da Constituição Brasileira de 1891, republicana e federativa, baseada no modelo bicameral de Parlamento que, por um rápido instante, foi suprimido da história de nossas instituições apenas com o advento do Estado Novo.

Todavia, esse novo modelo de Parlamento se apresenta como fundamental a partir da Convenção da Filadélfia, sendo, inclusive, seguido por importantes nações européias, como a França e Itália, que, até hoje, mantêm a estrutura senatorial como instrumento de funcionamento de seus respectivos Parlamentos.

Nem se diga a influência que o modelo bicameral exerceu sobre as nações latino-americanas, conforme será analisado posteriormente.

134 LASTRA, Arturo Pellet. El Poder Parlamentario: su origen, apogeo y conflictos. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1995. p. 90.