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A Revolução Francesa e o Parlamento: a constituição da Assembleia Legislativa

2.2 O Poder Legislativo na história

2.2.2 A Revolução Francesa e o Parlamento: a constituição da Assembleia Legislativa

Se, por um lado, a Revolução Gloriosa trouxe à tona a noção de um Parlamento capaz de controlar as ações do monarca, a revolução liberal francesa construiu a noção de Estado moderno tal como hoje se conhece.

117 WELLS. H. G. História Universal. op. cit.. p. 216. De acordo com o autor: “Embora a luta entre o rei e o Parlamento já tivesse atingido uma fase aguda antes da morte de Jaime I (1625), só no reinado de seu filho, Carlos I, culminou ela na guerra civil. Carlos fez exatamente o que se podia esperar de um rei em tal situação. À vista da falta de poder do Parlamento para decidir a respeito da política exterior, envolveu o País num conflito com a Espanha e à França e voltou-se a seguir para o Parlamento à busca de recursos, na esperança de que o sentimento patriótico vencesse o desgosto e relutância normais em lhe dar dinheiro. Quando o Parlamento negou os recursos, passou a exigir o empréstimo de vários súditos e a tentar outros processos ilegais de lançamento de impostos. Isso levou o Parlamento, em 1626, a produzir um documento memorável, a Petição de Direito, em que se citava a Carta Magna e se reproduziam as limitações legais do poder do rei inglês , ao qual não assistia o direito de lançar impostos, prender ou punir quem quer que fosse, ou aquartelar soldados à custa do povo, sem o devido processo legal”.

A França já tinha notícias das transformações que vinham ocorrendo na Inglaterra. Antes mesmo de eclodir sua revolução, sabia-se da independência das Treze Colônias Norte-americanas.

Mais adiante, tratar-se-á dessa questão em tópico especifico.

Não obstante isso, tem-se que a corte francesa, ocupante do Palácio de Versalhes, suas dependências e arredores, era considerada uma das mais ociosas de toda a Europa. A dinastia dos Bourbons havia instaurado um estilo de vida peculiar e seguido por toda nobreza desde os tempos mais áureos da história moderna da França.

Assim, vivia sob a proteção real uma nobreza bastante opulenta e que cultivava o ócio como algo nobre a ser conservado. Os altos gastos da Coroa e dessa classe social privilegiada, bem como do alto clero, acabava custeado por uma classe não tão bem colocada, mas que pagava seus impostos.

Embora a Corte de Versalhes pudesse ser considerada vanguardista em toda a Europa, é bem verdade que o resto da França ainda vivia sob os resquícios do período feudal.

Conforme ressalta Hobsbawm, o problema agrário era considerado crucial no ano de 1789. De acordo com o autor, os fisiocratas franceses ainda viam na terra e em seu aluguel tinham a única fonte de renda líquida. A relação que se dava no campo ainda podia ser considerada como de suserania e vassalagem.

E afirma:

(...) o camponês típico era um servo, que dedicava uma enorme parte da semana ao trabalho forçado na terra do senhor ou o equivalente em outras obrigações. Sua falta de liberdade era tão grande que mal se poderia distingui-la da escravidão, como na Rússia e partes da Polônia, onde podia ser vendido separadamente da terra.118

Ao mesmo tempo em que a Corte experimentava as novidades da ciência e da tecnologia da época, os sans-culottes amarguravam uma situação de miséria e atraso

social. Com exceção da Grã-Bretanha, que havia realizado sua revolução liberal no século XVII, nas demais potências européias reinavam as monarquias absolutistas e a manutenção do status quo era a meta daquele modelo de Estado.

Novamente faz-se referência às palavras do historiador Hobsbawm:

Contudo, de fato, a monarquia absoluta, não obstante quão moderna e inovadora, achava impossível e pouco se interessava em libertar-se da hierarquia dos nobres proprietários, à qual, afinal de contas, pertencia, e cujos valores simbolizava e incorporava, e de cujo apoio dependia grandemente. A monarquia absoluta, apesar de teoricamente livre para fazer o que bem entendesse, na prática pertencia ao mundo que o iluminismo havia batizado de féodalité ou feudalismo, termo mais tarde popularizado pela revolução francesa. Uma monarquia desse tipo estava pronta a usar todos os recursos disponíveis para fortalecer sua autoridade, aumentar a renda tributável dentro de suas fronteiras e o seu poderio fora delas, e isso bem poderia levá-la a fomentar o que de fato eram as forças da sociedade em ascensão.119

Porém, se o iluminismo fora importante para fomentar o pensamento científico e para se contrapor à teoria do transcendentalismo com as teorias racionais, no campo do Direito e da Sociologia Política, trouxe à tona a noção do racionalismo e das garantias individuais.

A partir de então, aquela classe oprimida de servos e trabalhadores livres, aliada à nova burguesia que nascia com o ressurgimento das cidades na Idade Moderna, não deu mais trégua às monarquias obsoletas que se legitimavam pela força e com um poder supostamente herdado de Deus.

A classe burguesa não pode ser considerada distante do conhecimento intelectual da época. Na verdade, ela já ocupava funções burocráticas de Estado e influenciava significativamente os rumos do estado desde o fim da Idade Média.

Como observa Albert Soboul:

No quadro da sociedade feudal, ela dera prosseguimento ao seu impulso ao próprio desenvolvimento do capitalismo, estimulado pelos grandes descobrimentos dos séculos XV e XVI e pela exploração dos mundos coloniais, bem como pelas operações financeiras de uma monarquia

sempre carente de dinheiro. No século XVIII, a burguesia estava à testa das finanças, do comércio, da indústria; fornecia à monarquia não só os quadros administrativos como também os recursos necessários à marcha do Estado. (...) O progresso das luzes solapava os fundamentos ideológicos da ordem estabelecida, ao mesmo tempo em que se afirmava a consciência de classe da burguesia (...) classe progressiva, exercia uma triunfante atração sobre as massas populares como sobre os setores dissidentes da aristocracia.120

Essa burguesia já vinha sendo influenciada pelo pensamento do inglês Thomas Hobbes que, em 1651, havia escrito sua famosa obra Leviatã. Mais adiante, John Locke, entusiasmado com a ascensão de Guilherme de Orange ao Poder, escreveria Dois

tratados sobre o Governo em 1690 e, posteriormente, Charles Louis de Secondant, o Barão

de Montesquieu, escreveria sua famosa obra O espírito das leis em 1748.121

Também não há como negar a influência de Jean-Jaques Rousseau e de sua obra O contrato social, de 1762, que, não obstante influenciado e instigado pensamento iluminista, certamente desagradou àqueles que, à época, estavam no Poder.

A revolução francesa nasceu a partir desse choque mundial propiciado pelo pensamento iluminista que em muito se contrapõe com o modelo de Estado que reinava soberanamente sobre a Europa.

A contestação do modelo de Estado vigente, aliado à ciência e ao descontentamento econômico dos mais pobres e da burguesia, propiciou uma transformação na história moderna que ecoou nos quatro cantos do mundo.

Assim, se por um lado a revolução gloriosa pode ser considerada vanguardista no que se refere às limitações do poder do rei, com o efetivo fortalecimento do Parlamento e ascensão ao poder de uma nova classe social, é a revolução na França a responsável pela efetiva noção de um Estado constitucional, positivando garantias individuais e obrigando o monarca a jurar a nova declaração de direitos, posteriormente, convertida em uma Constituição no ano de 1791.

120 SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. 8. ed. Trad. Rolando Roque da Silva. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 9.

121 MORRIS, Clarence (org.). Os Grandes Filósofos do Direito. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 157.

A declaração de 1789, como observa Jean Rivero, embora seja o início de uma nova era de garantia de direitos, acaba por sintetizar todo o pensamento de uma civilização.

As correntes que se chocaram ao longo de quase três séculos desse período formaram uma nova mentalidade de Estado e de estrutura organizacional, não sendo mais possível desfazê-los, uma vez que, a partir de então, seriam os responsáveis pelos rumos dos novos governos.122

A ascensão do terceiro estado ao Poder123, ou melhor, ao comando dos Parlamentos, trouxe à tona essa nova noção de Estado. A partir de então, ainda que se mantivessem os sistemas monárquicos de governos, eles jurariam textos políticos e constitucionais e o Parlamento assumiria um papel fundamental na condução das políticas públicas das nações.124

A noção de representação ganhou força e o Parlamento colocou-se como a instituição mais adequada para exercê-la em nome da sociedade. Assim, esse órgão tornar-se-ia ainda mais institucionalizado a partir do seu aperfeiçoamento com as repúblicas e com os sistemas presidencialistas que começam a surgir desde então.

Biscaretti Di Ruffia ressalta a importância da Revolução Francesa no processo de consagração da representação popular ao afirmar que ela foi responsável pela

122 RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 36.

123 Essa denominação, terceiro estado, surge para diferenciar, na França, a grande parte da população, composta da alta burguesia (banqueiros, financistas e grandes empresários), da média burguesia (profissionais liberais, médicos, dentistas, professores e advogados), baixa burguesia (artesãos, lojistas) e o povo, daquele que era considerado o primeiro estado (alto e baixo clero) e dos que eram considerados segundo estado (a nobreza e, até certo ponto, o poder real).

124 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos op. cit.. p. 139. A história do fortalecimento do terceiro estado e sua assunção do poder via parlamento é bem contada pelo autor. De acordo com o ele: “Na sessão de 15 de junho, Mirabeau sugeriu a adoção de fórmula ‘assembléia de representantes do povo francês’, explicando que a palavra ‘povo’ era elástica e podia significar muito ou pouco, conforme as necessidades ou conveniências. (...) a solução do problema veio de Sieyés, com base nas ideias políticas publicadas um pouco antes, na obra que o tornou célebre Qu´est-ce que le Tiers Etat?: os deputados passariam a reunir-se em assembléia nacional. A classe burguesa resolvia assim, elegantemente, a delicada questão da transferência da soberania política. Em lugar do monarca, que deixava o palco, entrava em cena uma entidade global, dotada de conotações quase sagradas, que não podiam ser contestadas pela nobreza e o clero”.

reinserção do modelo de representação esboçado na Inglaterra. Entretanto, o Parlamento Francês se desenvolve sob uma nova configuração jurídica de representação.125

Tal fato se deve à representação de visões antagônicas entre jacobinos e girondinos, maioria no Parlamento Francês de então, com visões muito mais antagônicas que os partidos que compunham o sistema político britânico.

É de se ver, pois, que, a partir de então, a noção de Parlamento sempre esteve ligada à ideia de representação.