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A legenda de São Jorge e a santidade cavaleiresca: algumas reflexões

No documento Atas da VI Semana de Estudos Medievais (páginas 79-86)

atitudes desse nobre cavaleiro e exaltar mais uma vez a questão do martírio pela fé. Contudo, todas as vezes que lemos este texto, perguntamos-nos se os atos e as falas atribuídas a São Jorge no relato são resquícios de elementos do ideal cavaleiresco. Há implícita, nesta narrativa, o que poderíamos denominar santidade cavaleiresca?

Dividimos a vida de São Jorge em duas partes: a primeira apresenta o santo ainda como cavaleiro, seguindo o código de cavalaria. Este código é resumido pelo historiador Michel Pastoureau em três princípios: “fidelidade à palavra dada e lealdade perante todos; generosidade, proteção e assistência aos que precisam; obediência à Igreja, defesa de seus ministros e de seus bens” (PASTOUREAU, 1989, p. 48). Já na segunda parte, vemos São Jorge abandonando seus trajes militares e se entregando somente à pregação, e, por fim, alcança o martírio e o reconhecimento de sua santificação. Vamos nos ater à primeira parte do texto para discutir a presença do ideal cavaleiresco na narrativa e depois lançar a questão da possibilidade de uma santidade cavaleiresca na Legenda Áurea.

Em resumo, a situação exposta pelo narrador para a ação de Jorge, ainda não denominado como santo, é o drama vivido pela cidade de Silena, que era constantemente atacada por um dragão. Para acalmar o monstro, foi instituído que fossem sacrificadas ovelhas, porém, em um determinado momento, elas se tornaram escassas. O conselho municipal decidiu então que entregariam uma ovelha e um humano, sendo sorteado entre rapazes e moças, sem excetuar ninguém. Com o passar do tempo, também faltou gente e o sorteio acabou designando a única filha do rei para ser entregue ao dragão. É no lago para onde se dirigiu a dama que se desenrola toda a trama:

O bem-aventurado Jorge passava casualmente por lá, e vendo-a chorar perguntou a razão. Ela respondeu: “Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se não quiser morrer como eu”. Jorge: “Não tenha medo, minha filha, e diga-me o que toda aquela gente está esperando ver”. Ela: “Vejo que você é bom rapaz, de coração generoso, mas quer morrer comigo? Fuja! Depressa!”. Jorge replicou: “Não irei embora antes que me conte o que está acontecendo”. Depois que a moça explicou tudo, Jorge disse: “Minha filha, nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajudá-la”. Ela replicou: “Você é um bom cavaleiro, mas salve-se imediatamente, não pereça comigo! Basta que eu morra sozinha, porque você não poderia me livrar e pereceríamos juntos”. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 366, 367).

Nestes diálogos observamos que a figura do bom cavaleiro é presente em todos os momentos. Podemos ver o cuidado que o narrador tem em exprimir, nas falas de Jorge, a preocupação em tentar ajudar a dama. Mas o elemento áureo deste bom cavaleiro está na definição de por quem e em nome de quem ele luta: é para exaltar o nome de Cristo que o cavaleiro Jorge vai ajudar a dama e o reino atormentado pelo dragão. Vejamos o decorrer da narrativa:

Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: “Fuja, meu bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal-da-cruz, e com audácia atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor, recomendou- se a Deus, atingiu o monstro com força, jogando-o ao chão, e disse à moça: “Coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 267).

O combate contra o dragão é também um exemplo do que era a cavalaria nos séculos XII e XIII em termos de forma de combate. E podemos abrir aqui um parêntesis para discutirmos a arma utilizada por Jorge no primeiro contato direto com o dragão: a lança, que é uma arma de estocada. Segundo alguns historiadores, a lança media cerca de três metros e pesava aproximadamente de dois a cinco quilos. É difícil imaginarmos a lança como uma arma destinada a transpassar o adversário, mas a cavalaria a utilizou muito, pois quando não matava o oponente, acabava jogando-o no chão durante as justas2. Talvez por

isso Jorge é descrito atacando o dragão no primeiro momento com esta arma e não com outra, já que, como veremos a seguir, havia objetivos mais específicos que simplesmente matar o dragão e salvar a dama:

Quando ela chegou à cidade, vendo aquilo todo o povo pôs-se a fugir gritando: “Ai de nós, logo todos vamos morrer!”. Mas o beato Jorge disse-lhes: “Nada temam, o Senhor me enviou para que eu os libertasse das desgraças causadas por esse dragão. Creiam em Cristo e recebam o batismo, que eu matarei o dragão”. Então o rei e todo o povo foram batizados e o bem-aventurado Jorge desembainhou a espada e matou o dragão, ordenando depois que o levassem para fora da cidade. Quatro pares de bois arrastaram-no para campo aberto. Nesse dia 20 mil homens foram batizados, sem contar crianças e mulheres. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 367).

O dragão nos parece ser uma figura presente na narrativa para convencer os pagãos a se converterem à fé cristã e demonstrar o heroísmo perfeito do beato Jorge. Isto fica claro quando o mesmo mostra ao povo por quem e para quê foi enviado e informa que se passassem a crer em Cristo e recebessem o batismo o dragão seria morto. Vemos Jorge matar o dragão utilizando sua espada, que “é a arma do cavaleiro por excelência” (PASTOUREAU, 1989, p. 113). Dentro da sociedade cavaleiresca e em seus ideais, a espada é constantemente objeto de toda uma liturgia. Ela é considerada também a mais nobre das armas e um símbolo da justiça e da autoridade exercida pelos cavaleiros.

No parágrafo final desta primeira parte da narrativa sobre a vida do beato Jorge, que o apresenta mais como um modelo de cavaleiro a ser seguido do que propriamente como um santo, podemos observar mais características que nos remete ao ideal cavaleiresco:

(...). O rei ofereceu ao bem-aventurado Jorge imensa quantidade de dinheiro, mas ele não aceitou e mandou doá-la aos pobres. Jorge deu então ao rei quatro breves conselhos: cuidar das igrejas de Deus, honrar aos padres, ouvir com atenção o oficio divino e nunca esquecer os pobres. A seguir beijou o rei e foi embora. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p.367).

Os quatro conselhos que Jorge dá ao rei constituem-se presentes no ideal cavaleiresco. Era atribuída à Cavalaria a responsabilidade de proteger os indefesos, aqueles que não possuíam armas. É interessante observar que estes breves conselhos dados pelo beato estão bem próximos dos conselhos dados pelos clérigos aos próprios cavaleiros!

A Santidade Cavaleiresca

Um dos itens ao qual temos dispensado maior atenção é a construção do conceito que temos denominado de santidade cavaleiresca, que identificamos como uma junção de influências entre elementos provenientes dos universos eclesiásticos e laicos. Para tanto, selecionamos para estudo a vida de certos santos, que são apresentados carregados de atributos guerreiros, como São Miguel, São Mercúrio, São Longino, São Jorge, etc. Temos trabalhado a santidade cavaleiresca a partir da definição do que entendemos por ideal cavaleiresco e santidade.

O ideal cavaleiresco é difícil de se definir, já que possui várias facetas. Está carregado de conotações religiosas, honoríficas e éticas. Assim, o cavaleiro ideal é, ao mesmo tempo, cortês, um defensor da fé, dos fracos e indefesos, um herói por excelência. Já a santidade nós definimos como a qualidade presente em algumas pessoas para que atuem como mediadoras entre o natural e o sobrenatural.

A partir do que o filósofo Michel Foucault definiu como “análise arqueológica” (FOUCAULT, 2004, p. 157)3, identificamos que no século XIII

constituiu-se um arquivo da literatura cavaleiresca desenvolvida no século anterior, que implicou na recriação de enredos literários mais específicos. Acreditamos que a ação arqueológica fez-se presente na narrativa da vida de São Jorge por Varazze, que é apresentado com características que o aproximam do ideal de cavaleiro oriundo do século XII.

A partir destas reflexões a segunda parte da vida de São Jorge é utilizada para discutirmos a possibilidade do que chamamos de santidade cavaleiresca. Pois sentimos uma certa resistência por parte do hagiógrafo em retratar Jorge como um santo enquanto ainda atuava como cavaleiro, porém este estereotipo de santo-guerreiro ou cavaleiro-santo se mitifica e se prolonga por toda Idade Média chegando até os nossos dias.

Jacopo de Varazze só passa a considerar a santidade de Jorge quando este “trocou as vestes militares pelas dos cristãos e passou a viver entre eles” (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 368). É a partir deste momento que a forma apocopada da palavra santo, são, começa a aparecer junto ao nome Jorge na narrativa. Até então Varazze só se refere a São Jorge com as denominações de “bem-aventurado”, “bom rapaz”, “bom senhor”, “beato”,

“fidelíssimo guerreiro de Deus”, “feliz e ínclito paladino do Senhor”, “comandante dos cristãos” (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 366-370), adjetivos que poderiam ser associadas a um cavaleiro que cavalgava nas estepes dos campos medievais. Isto nos permite inferir que mesmo sendo o maior intuito de São Jorge, ao ajudar a dama e o reino em perigo, exaltar o nome de Cristo, ele não era ainda considerado um santo dentro do contexto da estória que nos é apresentada.

Defendemos a hipótese de que a santidade cavaleiresca foi construída no período, a despeito das resistências de Varazze. A forma como São Jorge é descrito, com características de um cavaleiro medieval, provavelmente chamou muita atenção da Sociedade Cavaleiresca que, por sua vez, necessitava de um santo próximo às suas expectativas guerreiras. Os clérigos, conscientes disto, não se opuseram a tal identificação, mesmo considerando, segundo o que informa o próprio Jacopo de Varazze na sua introdução à vida de São Jorge, que sua legenda fora considerada “apócrifa pelo concílio de Nicéia devido às discrepâncias entre os relatos” (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 365).

Sugerimos, então, que há o delineamento de uma santidade cavaleiresca na Legenda Áurea, mesmo com a resistência por parte do hagiógrafo. Esta hipótese está fundamentada numa série de transformações sociais no seio da Idade Média, que ajudaram a elevar São Jorge ao símbolo de toda uma cavalaria dedicada a luta contra os infiéis, comprometida a proteger o Cristianismo e os mais fracos. Mesmo que essa imagem não tenha partido diretamente da Igreja, refletiu-se nas Cruzadas. Consideramos, então, que a imagem do cavaleiro-santo ou santo-guerreiro, nos moldes militares da palavra, foi construída pela Cavalaria e apreendida pela Igreja.

Dificuldades na construção da pesquisa

Iremos agora expor algumas dificuldades que temos encontrado no decorrer da pesquisa. Julgamos pertinentes comentá-las, já que estão extremamente amarradas a forma como temos começado a desenvolver nossas reflexões para o início do nosso trabalho.

Uma das dificuldades que temos enfrentado é a ausência de obras historiográficas que nos dêem embasamento para trabalhar com tal temática, com suas possíveis variáveis e que nos auxiliem a encontrar respostas cabíveis aos nossos questionamentos.4 Não encontramos, até o momento, nenhuma

referência de historiadores que trabalharam com pelo menos uma certa proximidade temática da nossa, ou seja, analisar nas hagiografias características do pensamento e atitude cavaleiresca do período medieval comparando a outros enredos literários, como o das canções de gesta, por exemplo.

Quanto às obras sobre o dominicano Jacopo de Varazze, no âmbito da historiografia medieval produzida no Brasil, são poucas. Temos como exemplos de trabalhos sobre Jacopo de Varazze e sua Legenda Áurea, a ótima dissertação de mestrado da Profª. Carolina Fortes,5 que dedica alguns

capítulos extremamente interessantes sobre os fatos que cercam a vida e a composição de sua obra e tem sido para nós uma importante referência

sobre o assunto; alguns artigos publicados em periódicos e livros, para citar como exemplo, “A Outra Face dos Santos: Os Milagres Punitivos na Legenda Áurea” do Profº. Hilário Franco Jr..6 Estas pesquisas e outras não

citadas estão nos dando uma ótima base sobre a importância da Legenda

Áurea no século XIII, porém cada trabalho, como é possível observar graças

aos seus títulos, tem seu corte temático bem distinto do nosso.

Como ressaltamos anteriormente, não tivemos ainda a oportunidade de contato com trabalhos mais específicos e relacionados ao nosso tema. Isto pode ser encarado de uma forma positiva, já que se percebe uma certa lacuna historiográfica sobre o assunto. Porém também é negativo, pois não temos um referencial que ajude a nos desenvolvermos com mais segurança. Já sobre o ideal cavaleiresco e a própria cavalaria temos algumas referências mais concisas, bem representadas por historiadores como: Georges Duby, Franco Cardini e Jean Flori, que em algum momento de suas análises históricas reservaram um certo espaço a Sociedade Cavaleiresca e aos mitos que a envolvem. Citamos também o interessante livro do franciscano Vitório Mazzuco, que analisa a presença de elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis8,

mas que segue uma linha bem diferente da nossa, pois se trata muito mais de um texto de espiritualidade, não é uma reflexão histórica. Porém foi uma importante leitura sugerida por nossa orientadora para começarmos a dar início as nossas reflexões sobre o tema.

Não tivemos a pretensão de apresentar respostas com este texto, mas compartilhar nossas primeiras reflexões sobre elementos que fazem parte da temática que nos propomos a pesquisar. Com esta síntese do que tem sido o início do nosso trabalho temos a esperança de receber críticas e trocar informações que possam nos ajudar a encontrar novos caminhos e sanar diversas dúvidas que surgem a partir de cada nova leitura sobre o assunto.

Bibliografia

Texto medieval impresso

JACOPO DE VARAZZE. A Legenda Áurea: vidas de santos.Tradução do latim, apresentação, notas e seleção iconográfica por Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Bibliografia específica

CARDINI, Franco. O Guerreiro e o Cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 57-78.

DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ___. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. ___. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

___. O Domingo de Bouvines, 27 de Julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

FLORI, Jean. La Caballería. Madrid: Alianza Editorial, S. A., 2001.

___. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário

Temático do Ocidente Medieval. Vol. I. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. II. p. 449-463.

GUENÉE, Bernard. Corte. In: LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa

Oficial do Estado, 2002. V. I. p. 269-281.

PASTOUREAU, Michel. No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda (França e

Inglaterra, Séculos XII e XIII). São Paulo: Companhia das Letras/ Círculo do

Livro, 1989.

Notas

1 Introdução ao cânone da missa, no preâmbulo à consagração.

2 Sobre as justas e os torneios existem dois trabalhos muito interessantes que

reservam, em algum momento, espaço ao assunto: DUBY, Georges. Guilherme

Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995; ___. O Domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

3 Foucault em seu livro A Arqueologia do Saber chama atenção para as

diferenciações de sua proposta para a História das Idéias. Ver esses pontos de separação e sua definição para análise arqueológica nas páginas 157 e 158.

4 Neste sentido a orientação da Profª Dra. Andréia Frazão e o auxilio do Programa de

Estudos Medievais da UFRJ tem sido fundamental para o desenvolvimento da nossa pesquisa, disponibilizando material e excelente orientação.

5 Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos Masculinos das Santas na Legenda Áurea:

os casos de Maria e Madalena. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS/

PPGHIS, 2003. Esta obra não se direcionou a analisar a vida de Jacopo de Varazze, mas tem capítulos essenciais para quem quer trabalhar com a Legenda Áurea.

6 Cf. FRANCO JR., Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São

Paulo: Edusp, 1996.

7 Cf. MAZZUCO, Vitório. Francisco de Assis e o Modelo de Amor Cortês-

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