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identidade godo-cristã no século

No documento Atas da VI Semana de Estudos Medievais (páginas 137-141)

Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade

de produção ideológica decorrente da interação entre interesses monárquicos e eclesiásticos.4

Ocorrendo em duas instâncias, os eventos conciliares ratificaram a ação eclesiástica tanto na cúpula de poder como em seus prolongamentos administrativos. Assim, temos a atuação episcopal em discussões referentes a assuntos religiosos e na definição dos parâmetros de condução do reino nas ditas assembléias conciliares gerais ou “nacionais”, e sua participação em assuntos administrativos – como a fixação da carga tributária e a função de fiscalização dos demais agentes administrativos – e religiosos, de caráter local, nas assembléias conciliares provinciais.

Embutidas no discurso conciliar, ações de caráter político-ideológico evidenciam, como essencial objetivo, a consolidação de uma estrutura de organização social, ou melhor, uma representação/ideologia, que deveria, por meio da atuação de um sólido aparelho executivo, ser inculcado como parâmetro básico à construção de uma auto-imagem social. Isso, em outras palavras, corresponderia à garantia sobre o monopólio das formas de pensar e agir naquela sociedade por parte do episcopado.

Este esforço de “enquadramento” instituiu-se em duas instâncias, uma interna, referente à própria organização institucional, e outra externa, que corresponde a imposição aos demais agentes da visão de mundo idealizada por esta instituição. Neste contexto, insere-se a discussão acerca da uniformização litúrgica que aborda, paralelamente, aspectos como a padronização do aparato ritualístico ortodoxo, ação que visa desqualificar possíveis permanências dos ritos arianos, e a valorização de uma identidade institucional própria, por intermédio das especificidades da apreensão peninsular deste tipo de manifestação religiosa. Temos ainda, em uma lógica de exteriorização ou cooptação, o disciplinamento do clero apresentando-se como uma condição fundamental à circulação do discurso da ortodoxia. Um clero coeso e qualificado é peça chave para o sucesso no processo de inculcação, visto que tal situação depende diretamente da naturalização e do reconhecimento prático da autoridade destes agentes. De uma forma ou de outra, fica evidente o esforço de manutenção da hegemonia do discurso da ortodoxia no campo religioso por meio, sobretudo, da consolidação de um habitus 5eclesiástico, ou seja, dos parâmetros básicos

de estruturação da relação da Igreja com o resto da sociedade.

Alicerçado em valores morais cristãos, o episcopado peninsular passa a definir, paulatinamente, diferentes papéis e atribuições para os variados agentes/ grupos daquela sociedade. Este novo panorama beneficia, de forma evidente, ao alto clero e aos agentes mais diretamente a ele ligados, visto que garante uma posição de tutela sobre toda a gens gothorum. Conseqüentemente, temos a alta hierarquia eclesiástica tomando para si a função de único e grande interlocutor entre os diferentes agentes sociais.

Diluída neste contexto de construção de identidade/alteridade, a produção conciliar apresenta-se como um indício significativo de processos como o de fortalecimento da identificação gentílica, e o de idealização de uma teoria política visigoda – ou seja, a constituição de um habitus político, uma construção ideológica, a partir da qual são definidas algumas regras da dinâmica sócio-

política que buscaria, como fim último, a estabilidade do reino.

A configuração de uma idéia de nação começa a emergir, sobretudo, através do trabalho historiográfico do bispo Isidoro de Sevilha6 que busca

legitimidade genealógica e cronológica ao Reino Visigodo, colocando-o acima dos demais germanos, numa posição equivalente a dos romanos (GARCIA MORENO, 1989, p. 317). Neste sentido, também devemos considerar a forte relação entre a forja da idéia de soberania visigoda e a preocupação com a legitimidade do reino frente à presença, logo ameaça, bizantina e franca na península (THOMPSON, 1971, p. 188-192).

Corroborando esta idéia temos, por ocasião da realização do concílio de Toledo IV (633), a instituição definitiva, da soberania visigoda sobre laços de fidelidade expressos por meio do compromisso de todos os súditos em favor do povo, da pátria e do rei dos godos.7 De forma concomitante, as menções

conciliares a respeito de “povo” e “pátria” dos godos sinalizam uma profunda correspondência do reino com o espaço peninsular, idéia que é complementada pelo reconhecimento da “pátria Hispana” como “patrimônio e território próprio do rei e da nação dos godos”.8

Todavia, a consolidação de uma identidade goda não estaria completa sem a definição do perfil monárquico, núcleo de poder político daquela sociedade. Assim, o novo ideal de realeza,9 que é antes de tudo apreendido

como dádiva divina, emerge como o resultado da inserção de um componente de sacralidade – herdado da tradição romano-cristã – no modelo germânico de monarquia – de base essencialmente bélica.

Personificando as virtudes divinas, o monarca visigodo tem como função principal a promoção do bem comum, ou seja, da saúde de seus súditos com base em duas prerrogativas: a justiça e a misericórdia. Utilizando-se da típica analogia entre a sociedade e o corpo, o episcopado peninsular ressalta as funções sociais da Igreja e da monarquia que, neste esquema, ocupariam posições de comando correspondentes a da cabeça e da alma – dimensões responsáveis pelo gerenciamento de todo o corpo.10

Servindo ao interesse de toda a coletividade, o monarca é um administrador com respaldo divino, a cabeça de um corpo público cuja inteligência provem da alma. Como tal, o soberano tem por obrigação não só defender o reino, como também a ortodoxia, tornando-se, desta forma, um

defensores fidei.

Essa nova concepção de monarquia ratifica uma aliança entre o poder secular e o espiritual. Intervenções reais no campo religioso e eclesiásticas em assuntos civis devem ser tomadas como uma expressão da colaboração na execução dos interesses de ambos os atores.

Não obstante, não podemos desconsiderar que a simbiótica relação entre episcopado e Monarquia não embute uma certa discordância do alto clero no que tange as ações reais. Esta simbiose, de forma mais ampla, abre espaço a uma normatização que visa compatibilizar os interesses estritamente políticos aos ideais cristãos, ampliando o raio de ação dos agentes eclesiásticos no campo político.

que legitima o poder monárquico também possibilita mecanismos alternativos de sucessão política, sem, todavia, colocar em risco a confortável situação do episcopado neste campo. Se Deus cuida do destino do monarca, o fracasso deste deve ser apreendido como um sinal da desaprovação divina, ou um castigo para a sua má conduta. Em outros termos, uma rebelião bem sucedida deve contar com o aval divino e com a legitimação da Igreja, visto que expressa a providência divina (ANDRADE FILHO, 1997).

Esta dinâmica no campo político indica, entre outros aspectos, a plasticidade da posição episcopal nesta sociedade. De maneira contraditória, o episcopado peninsular institui o caráter eletivo e estatal da dignidade régia, promovendo uma separação entre os bens públicos e privados do monarca, ao passo que não descarta o papel de eventual porta voz da aristocracia.

Por meio, sobretudo, do discurso eclesiástico, a simbiótica aliança entre episcopado e monarquia, buscou a promoção de instrumentos que dessem conta do crescente quadro de instabilidade sócio-política em um contexto marcado pelo acirramento das relações de dependência – decorrente do crescente empobrecimento das camadas média e baixa da população – pelo fortalecimento da aristocracia latifundiária, pelo aumento do poder político do episcopado e pelo esforço centralizador da monarquia. Investindo, cada vez mais, na concentração das funções de maior relevância na dinâmica social, o episcopado segue redefinindo os demais agentes e papéis, ou seja, quem deve fazer o que e para quem. Desta forma, ele garantiu uma posição estratégica de interlocução entre os variados grupos sociais através da construção de uma complexa rede de dependência que camuflava relações de poder e exploração sob um discurso de solidariedade pautado na afetividade, no compromisso e no carisma.

Ao definir os papéis – direitos e obrigações – dos diferentes agentes sociais, o episcopado peninsular ratifica as bases de organização das relações de poder verticais – entre agentes diferenciados – e horizontais – entre agentes similares – em supostos laços de solidariedade que visam, em última instância a estabilidade política.

Percebemos, assim, que a inserção do Reino Visigodo em uma

societas fidelium Chisti11 implica na constituição de normas de conduta

para toda a sociedade, ou seja, vislumbramos os contornos de uma intrincada rede de relações que, perpassando os mais variados campos, ou áreas de interesse, da sociedade visigoda, contribui, de forma fundamental, à construção de sua auto-imagem, em especial no que se refere aos seus esquemas internos de classificação.

Bibliografia

CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. José Vives (Org.).

Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/Instituto Enrique Flórez, 1963.

ANDRADE FILHO, R. O. Imagem e reflexo. Religiosidade e monarquia no reino

visigodo de Toledo (séculos VI e VII). São Paulo, 1997. Tese de Doutorado em

BASTOS, Mário Jorge da Motta. Igreja, religião e sociedade senhorial na península Ibérica (séculos IV/VIII). In: SILVA, Andréia C. L. & SILVA, Leila R. (Org.) Semana de Estudos Medievais, 4, maio de 2003. Atas.... Rio de Janeiro: PEM/UFRJ, p.122- 127, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001. ____. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

DINIZ, Rita de Cássia D. A problemática da Assistência na sociedade visigoda nos

séculos VI e VII: um estudo comparativo dos modelos assistenciais masoniano e

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