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As ordenações de D Duarte e o perfil do estado português

No documento Atas da VI Semana de Estudos Medievais (páginas 112-119)

E se ligarmos a produção do direito, de alguma forma, à existência de um Estado – pois é ele que cada vez mais detém a autoridade sobre a normatização jurídica (em especial no momento que destacamos) – é preciso, ao mesmo tempo, fugir da idéia de estadualismo. Nos parece bem mais coerente olhar a normatização social como um processo efetuado em múltiplos níveis do que atribuir todo o crédito de sua criação ao Estado. Isso se torna de extrema importância se formos considerar o período da baixa Idade Média e princípio da Idade Moderna, no qual nos concentramos. Justamente por essa pluralidade existir é que o Estado criaria mecanismos capazes, rivalizando com as outras forças, de subjugá-las e ampliar o controle sobre a vida das pessoas.

Através da análise da Justiça nas Ordenações de D. Duarte (1436) e das Ordenações Manuelinas (1521), tentamos traçar o perfil institucional do Estado Português em um momento crucial de sua história, quando este se torna uma poderosa potência marítima e comercial, estendendo seu império desde o Oceano Índico (passando por Macau, Calicute, entre outros) até a costa americana no Atlântico Sul. Pudemos perceber uma tentativa de organizar e regularizar a aplicação de Justiça através do início da publicação escrita das leis judiciais e da conseguinte publicação de compilações. Tal processo de compilação – iniciado com D. Duarte (rei entre 1433 e 1448) e mais tarde levado adiante por D. Manuel (1495-1521) – demonstrava a necessidade do império ultramarino em se organizar frente a sua grandeza.

Ambas as compilações são marcos da influência do direito romano sobre o Direito Português, e representavam a vontade do rei de que sua soberania deveria ser conhecida e cumprida como determinado.

O que apresentaremos a seguir é uma pequena análise das Ordenações

de D. Duarte, compilação produzida no século XV, cerca de vinte anos após

a conquista lusitana de Ceuta, no atual Marrocos, apontado como marco inicial da expansão marítima portuguesa “concluída” no século seguinte.

As leis que conhecemos do Portugal medieval só nos vêm à tona a partir de compilações tardo-medievais. As principais fontes utilizadas pela historiografia que visam reconstituir a legislação medieval são o produto da atividade de juízes ligados à Corte – Livro das Leis e Posturas, Ordenações –, ou à administração local – Foros municipais.

De acordo com o que afirma António Manuel Hespanha, podemos situar 250 leis desde o surgimento do reino português até o século XIII, 220 entre 1248 – ascensão de D. Afonso III – e 1279, e apenas 150 no que corresponderia aos séculos XIV e XV. Tal estatística, contudo, não é muito precisa uma vez que muitos desses textos legislativos não estão datados.

Desse conjunto legislativo podemos destacar as determinações régias no curso do seu poder “imperial” – referentes à repressão ao crime, visando a manutenção da paz através de leis penais e erradicação da vindicta –, disposições do rei sobre os reguengos e ofícios reais, disposições da corte e normas de decisão do tribunal da corte – em muitos casos preceitos doutrinais ou costumeiros, mas normalmente uma decisão real.

produção, sabe-se que cobriam a normatização administrativa tanto local quanto central, sendo seu principal domínio a regulamentação da justiça da maneira como era então definida: mais voltada para o âmbito administrativo, e não para o domínio fiscal-financeiro.

De uma maneira geral, as Ordenações de D. Duarte obedecem a um critério cronológico em sua sistematização. São constituídas de leis escritas desde D. Afonso II até o próprio D. Duarte. Interessante notar que o maior volume de leis se concentra em três reinados – de D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV –, e que a produção relativa aos reis da dinastia de Avis é reduzido em comparação à maioria de seus antecessores (em especial aos três citados). D. Duarte aparece com menos ordenações do que seu pai, D. João, provavelmente um reflexo da curta duração de seu reinado (o que não atrapalhou sua participação desde cedo nos assuntos de Estado). Nesse recorte, portanto, nos encontraremos na passagem de quase um século após o início do primeiro momento do que Caetano definiu como

Consolidação do Estado. Destacaremos antes, contudo, duas ordenações

referentes à D. Dinis.

A maioria das leis contidas nas Ordenações havia sido redigida muito tempo antes do reinado de D. Duarte. Em razão disso, o critério usado pelos copistas dos manuscritos originais parece ter sido o de se manter fiel aos conteúdos e de uma “liberdade adaptadora (aos usos da época e do copista) quanto à forma. Por ‘forma’ entenda-se a grafia, a ortografia e, em parte, a gramática; que eram, naturalmente, ‘modernizadas’” (ALBUQUERQUE; NUNES, 1988, p. XXXI)

Comecemos pela ordenação redigida por D. Dinis em 1 de Julho de 1320, que representa a afirmação do rei como autoridade máxima nos assuntos relacionados à justiça. Na lei que determina que ninguém apele para outra pessoa que não o rei, D. Dinis se dirige a todos os “meestres Priores abades comendadores E aluazijs E Juizes E alcajdes E Justiças E conçelhos E a toda- los outros que ouuerem a Julgar preitos” (ALBUQUERQUE; NUNES, 1988, p. 165) em Portugal. Ou seja, a todos os que, de alguma maneira estão envolvidos com a aplicação de justiça no reino. Após constatar que muitos estavam julgando sem sua permissão, consultando seu irmão – futuro Afonso IV –, seu conselho e sobrejuízes, decide que “todo-los de meus rregnos que apelarem dos Juizes ou aluazijs ou d’alcaides ou de Justiças ou doutros que os Julgarem que apelem primeiro pera mym E pera minha Corte E nom apelem pera outro nenhuum.” (p. 165-166) Afirma-se assim, que o poder de julgar emana única e exclusivamente do rei, que, como a cabeça do corpo político, era comparado com Cristo, a cabeça do corpo místico da Igreja. A função justiça é centralizada, o que podemos confirmar em sua última afirmação, de que “nem-huum nom seja ousado de sse chamar ssobreJuiz nem meirjnho nem usar ende do oficio se nom for meu E per meu mandado.” (p. 166)

Na ordenação de D. Dinis – intitulada “Como Ell rrey manda aos Juizes que façam Justiça” (p. 190) –, de 3 de Julho de 1341, o rei diz, após constatar que os alcaides, juízes, meirinhos, etc. não vinham julgando de maneira correta, que caso não o fizessem, seriam punidos: “aquell que per Justiça mjnguar eu lhe

darei aquella mesma pena que decyam auer aquelles que a Justiça mereçem em seuos corpos em que a uos mando fazedes.” (p. 190) Uma repreensão, portanto, àqueles que não praticavam a mercê concedida pelo rei de maneira correta. O juiz máximo na terra, o monarca, zela pela boa condução da fração de si que fora delegada a esses oficiais, especificando a maneira como devem ser tratados os criminosos – ordenando que o julgamento fosse feito sempre na vila onde o crime fora cometido –, a fim de apurar mais facilmente a “verdade” nas acusações. “E esto faço porque entendo que seruiço de deus E meu he – notadamente temos aqui a doutrina das instituições jurídicas como uma dádiva divina – E por uoso proueito E mais guardamento de uosos dapnos em asy comprir Justiça.” (p. 190)

Olhando agora para as ordenações referentes à D. Afonso IV, irmão de seu antecessor, que subira ao trono em 1325, percebemos, infelizmente que essas não possuem data especificando quando foram colocadas em vigor. Isso, na verdade, não nos atrapalha tanto, pois nossa maior preocupação se concentra na sua aplicação após o primeiro quarto do século XV. Fica estabelecida, portanto, a margem que vai desde 1325 até o fim do reinado de Afonso IV (1357) como o período em que as ordenações a seguir foram provavelmente redigidas.

Logo na “hordenaçom primeira que esse Rey pos em sas audiçains em rrazom dos ouujdores E sobreJuizes de sa corte” (p. 310) encontramos, mais uma vez, o discurso que visa reafirmar a autoridade do rei nas questões judiciais, como vigário de Deus e mantenedor da ordem na terra. Nesta, afirma-se que os reis são

postos cada huum em seu rregno em lugar de deus sobre sas Jentes pera as manterem Justiça E com uerdade E dar a cada huum o seu direito (...) porque el Rey he hum que deue fazer Justiça E em ell Jaz deuem seer huus com ell dessy porque he cabeça do seu Regno./ (p. 310-311)

Sua posição de “cabeça de um corpo que deve ser mantido são” o coloca com a responsabilidade de ficar à frente de todas as justiças do reino, de preferência aplicando-a da maneira mais dinâmica possível, fornecendo esse serviço a todos aqueles súditos que viessem demandar direito.

Um pouco mais adiante, reconhecendo o duro trabalho que é para si e para sua corte fazer direito, o rei manda “pollos homens boos sobreJuizes E ouujdores que esto ouuerom de fazer em tempo de nosso padre a que deus perdooe E a agora ho ham de fazer por nos.” (p. 311) Ou seja, o rei delega o poder de julgar a esses funcionários, que deveriam, de acordo com a mesma ordenação, aprender o ofício e exercê-lo de maneira justa, sem causar danos e estragos às partes envolvidas nos feitos que presidissem, fazendo com que transcorressem sempre de maneira rápida.

Em razão dessa preocupação em dinamizar os processos jurídicos podemos encontrar a ordenação intitulada “Como hi nom aJa mais de tres audiancias.” (p. 312) Nesta, o rei determina o número máximo de audiências que cada caso, visando “tolher E escusar esta delonga.” (p. 312) na

determinação da sentença dos julgamentos. Em primeira instância o julgamento é feito por um sobrejuiz, auxiliado por três ouvidores. Caso queira fazer-se apelação, será feita para esses ouvidores, que poderão revogar ou confirmar a sentença do sobrejuiz. Não está muito clara a maneira como se daria a terceira audiência, mas nos parece que esta é feita em apelação direta ao rei: “sse as partes ouuerem sospeito o sobreJuiz ou alguum dos ouujdores uenham a nos quando na cassa formos.” (p. 313) Neste caso o procedimento se constitui na troca do sobreJuiz e manutenção dos advogados, procuradores e escrivães.

É importante notar a preocupação em detalhar cada procedimento, o número de oficiais envolvidos, e suas funções especificas em cada etapa do procedimento, para que uma das principais atribuições régias fosse executada de uma forma tão infalível quanto este escolhido de Deus faria em pessoa. Tal tendência aponta para a organização da justiça como uma instância privilegiada na administração do Estado português.

As Ordenações de D. Duarte, com efeito, se mostram realmente como uma grande compilação de leis publicadas com o passar dos séculos, parecendo ser sua mais efetiva observância de grande interesse a este monarca no processo de reafirmação de seu poder, ainda que estas não constituíssem o único conjunto de leis publicado. Mas é importante observar que esse esforço se resume menos a uma reforma legislativa do que à tentativa de que antigas leis fossem observadas. É verdade que o próprio D. Duarte produzira algumas leis, mas em número reduzido se comparadas à produção dos três monarcas citados anteriormente. Sua preocupação parece realmente demonstrar a força que a palavra dos reis têm, ao adotar e reforçar aquilo que determinaram.

Suas intenções de centralização, mesmo que pouco efetivas em diversas ocasiões, demonstram vontade em fazer do rei muito mais do que um senhor entre senhores. E sim constituí-lo em autoridade máxima, de onde emanam as leis e que espera que estas sejam cumpridas em benefício de sua função de mantenedor da ordem e da paz.

O poder do monarca português era exercido nos primórdios do reino, de uma forma geral, da mesma maneira que o dos senhores feudais. O rei de Portugal, portanto, seria mais um bellatore, uma das três ordens com responsabilidades específicas de acordo com uma organização universal de origem divina, gozando primordialmente de uma face de chefe guerreiro.

Tentamos aproximar o poder régio português da dominação tradicional de estrutura estamental formulada por Weber. Nesta, apesar do rei apresentar certa igualdade com os outros senhores, tinha seu devido destaque como líder de um povo e, por isso, era detentor do poder absoluto, estando à frente de uma estrutura administrativa. Mas, como também já observamos, isso não implica, obrigatoriamente, na centralidade do poder, uma vez que este corpo administrativo era composto por pessoas relacionadas com o monarca através de fidelidade – que era regulada pela honra – e pela cessão patrimonial de jurisdições. Falar em estadualismo, neste caso, se configura em um claro erro.

não exercia, efetivamente, sua autoridade em todo o território em questão. Ele acaba partilhando-a com um corpo administrativo composto de um segmento privilegiado de súditos, ou mesmo se colocando de forma complacente à existência de direitos rústicos paralelos, desde que não agredissem o que estava estabelecido na normatização oficial.

O rei português – e de maneira geral os reis da Cristandade – pode ser considerado, não só uma estrutura política em si, mas com o passar do tempo a mais importante delas. Sua posição de senhor entre outros senhores, primus

inter pares, começa a se modificar desde D. Afonso III (1248-1279), e,

acentuadamente, desde a crise dos anos 1383 a 1385. Tal transformação foi levada adiante através da multiplicação de medidas fiscais, administrativas, militares, legislativas e judiciais.

Se considerarmos o Estado como uma sociedade política com uma unidade permanente e estabilidade geográfica resistentes ao tempo, instituições

aceitas pela coletividade e a existência de uma autoridade suprema à qual

todos estariam subordinados, Portugal se tornava um Estado. E caberá à sua principal estrutura, o rei, incrementá-lo através dos poderes que competem à soberania: executar leis e políticas, controlar o fisco, decidir acerca da guerra e da paz, legislar, e julgar.

Portanto, sob o efeito, dentre outras coisas, da recepção da tradição romanística do direito na Cristandade baixo-medieval, podemos apontar uma mudança sensível na maneira como a coroa se coloca em relação àqueles que estão em seu território. Ela vai se infiltrando nos sistemas normativos sempre visando tomar para si o controle destes. Começa a se organizar de maneira que o corpo administrativo age – ou deveria, sofrendo pressões do rei para tal – menos por vontade própria e mais por vontade da ius commune, e que era

controlada pelo monarca, o único legislador do reino, ainda que ele mesmo, de

uma maneira geral, tivesse de se submeter à própria legislação.

O que vislumbramos enquanto Portugal vai se aproximando da Modernidade, com a aparente necessidade de uma melhor organização interna – uma vez que aspira conquistar domínios ultramarinos –, é uma tendência a abandonar a estrutura estamental em favor de uma dominação voltada para uma organização que tendia à racionalização.

Portugal já tem, na segunda década do século XVI, domínio sobre a costa ocidental da África, sobre o que viria a se tornar o Brasil, além de diversas feitorias estabelecidas na Ásia. E parecia se tornar impraticável sustentar tantos membros sem uma melhor organização na sua cabeça. E tal fato parece se constatar antes dessa multiplicidade de domínios.

A proximidade da confecção das Ordenações de D. Duarte com a conquista de Ceuta (1415) não seja talvez uma simples coincidência. A reunião de leis em um livro oficial e público (visando amenizar a ainda fortíssima influência dos poderes particularistas na vida política do reino) parece ser uma resposta do monarca português, no campo jurídico, aos reflexos trazidos por essa

novidade considerável no exercício de sua autoridade.

Através da análise da Justiça nas Ordenações de D. Duarte podemos apontá-las como a configuração inaugural da multiplicação de mecanismos que

têm como objetivo principal promover a centralidade do monarca lusitano no controle de seu reino. Não podemos afirmar, com toda certeza, a gênese de um tipo de administração burocratizada nos moldes da dominação legal weberiana. Podemos indicar que a principal realização dessa iniciativa régia é, portanto, a abertura de novas perspectivas para o desenvolvimento do direito em Portugal. Perspectivas essas que se abrem muito mais se analisarmos a compilação de quase cem anos depois, confeccionadas em cinco volumes sob o nome do monarca D. Manuel. Podemos concluir dessa postura do rei no campo jurídico uma tentativa de amenizar a ainda fortíssima influência dos poderes particularistas na vida política do reino português. Portugal ainda passaria por muitas vicissitudes até atingir uma centralização política efetiva, na segunda metade do século XVIII.

Bibliografia

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CAETANO, Marcello. História do direito português (séc.s XII-XVI). Seguida de

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HESPANHA, A. M. Panorama da cultura jurídica Européia. Lisboa: Europa- América, 1997.

O discurso de controle

No documento Atas da VI Semana de Estudos Medievais (páginas 112-119)