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CAPÍTULO 02 – A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O FORNECIMENTO PÚBLICO

2.3 A legitimidade do Poder Judiciário e o fenômeno da judicialização

Na atualidade, a crescente importância do Poder Judiciário, principalmente na mediação das relações sociais, enseja o fenômeno da judicialização do direito, revelando que questões de

228 SARLET, 2008. p. 289. 229 Ibid., p. 312.

230 PASSOS, 2014, e-book.

231 COSTA, Fabricio Veiga; MOTTA, Ivan Dias da; ARAÚJO, Dalvaney Aparecida de. Judicialização da saúde: a

dignidade da pessoa humana e a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso dos medicamentos de alto custo. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, nº 3, 2017, p. 856.

grande repercussão social estão sendo decidas no âmbito do judiciário e não por meio das instâncias políticas tradicionais: o legislativo e o executivo232.

Seguindo tal tônica, sabe-se que de forma prioritária os direitos sociais devem ser concretizados pelo Poder Legislativo que tem a função de positivar o ordenamento jurídico e pelo Poder Executivo cuja função seria de administrar a máquina pública com base no que foi positivado. Porém, nos casos em que ocorrem falhas nas funções típicas dos poderes, será possível que o Judiciário, por intermédio dos remédios constitucionalmente previstos, possa agir suprindo as omissões e/ou afastando as ilegalidades eventualmente impetradas pelo executivo e o legislativo233.

Mostra-se relevante o ensinamento de Passos, ao afirmar que a neutralização do judiciário implica na “supremacia do legislativo ou na hipertrofia do executivo”, situações que devem ser evitadas, pois se tem verificado que o legislativo vem se mostrando incapaz de acompanhar a dinâmica de desenvolvimento da sociedade e a administração pública corre perigo de maior suscetibilidade de abusos e opressão autoritária234.

Desse modo, o fenômeno da judicialização da saúde, objeto de análise no presente trabalho, aponta para uma tendência nacional de colocar o Poder Judiciário como principal responsável pela concretização dos direitos sociais e fundamentais, estendendo as suas competências para além de suas funções típicas, o que inclusive causa reflexos na imagem e no papel dos demais poderes.

Conforme analisado por Martins235, a clássica divisão dos Poderes de Montesquieu sugere que cada Poder teria uma função típica. Porém, a separação das funções não é absoluta, principalmente diante da verificação da omissão do Estado tendente a ofender os direitos fundamentais, situação em que se deve empregar o chamado “Sistema de Freios e Contrapesos”. É inquestionável que a Constituição de 1988 adotou o modelo montesquiano de separação de poderes, delimitando os três poderes integrantes da União – executivo, legislativo e judiciário (art. 2º da CF/88), o que fora inclusive elevado aos status de cláusula pétrea (art.

232 JABORANDY, Clara Cardoso Machado; MARINI, Sandra Regina Marini, a (Des)judicialização da Política

Pública de Saúde a partir do Princípio da Fraternidade. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, vol. 4/2018, jan-mar, p. 115-132. Revista dos Tribunais Online, São Paulo, 2018, p. 03.

233 LEITÃO, Andre Studart; SOUSA, Thiago Patrício de; SILVA, Alexandre Antonio Bruno da. A escolha do estado

brasileiro pelo direito fundamental à saúde: o dever de financiar medicamentos de alto custo. Revista Brasileira

de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 1, 2018, p.775. 234 PASSOS, 2014, e-book.

235MARTINS, Urá Lobato. A judicialização das políticas públicas e o direito subjetivo individual à saúde, à luz da

teoria da justiça distributiva de John Rawls. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015 p. 311.

60, §4º, III, da CF/88), salientando a sistemática de pesos e contrapesos estabelecidos constitucionalmente.

No entanto, os críticos da intervenção judicial utilizam-se do pensamento montesquiano sem a devida atualização, ignorando a normatividade dos direitos e dos objetivos fundamentais, afastando o contexto do próprio “espírito da lei”, visto que a própria previsão de possibilidade de controle judicial de constitucionalidade já seria suficiente para demonstrar que a teoria montesquiana não foi incorporada ao ordenamento pátrio em sua concepção pura236.

No mesmo sentido, Bedin237 ressalta que o Estado Social moderno reclama a releitura do princípio da separação dos poderes idealizado por Montesquieu no século XVIII para que seja possível a distribuição de poder apta a garantir um sistema eficaz de freios e contrapesos no intuito de garantir os direitos fundamentais contra o arbítrio e a omissão do Estado.

Na mesma linha, Cambi e Nassif238 afirmam que a divisão de poderes e funções dos entes públicos é apenas uma parte do sistema constitucional, que hoje não comporta mecânicos hermeneuticamente fechados, ao contrário, são orgânicos e autopoiéticos.

Sobre a separação de poderes, Fonte afirma que, primeiramente, fora instituída com o intuito de “evitar o arbítrio potencial que decorre da concentração de poderes na figura de um só titular”239, e, num segundo momento, para que “haja o efetivo resguardo dos direitos fundamentais”240, assumindo a função de garantir o equilíbrio entre minorias e maiorias nas decisões públicas. No entanto, o autor afirma que hoje já se reconhece um “caráter fluído” de tal separação, apontando atribuições ditas preferenciais e não exclusivas de cada poder, ocorrendo o entrelaçamento das funções estatais no Brasil.

Fonte afirma que não existe no direito brasileiro contemporâneo, um nítido marco divisório entre os campos de atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário em matéria de políticas públicas destinadas a concretização de direitos fundamentais que possa ser extraído de maneira direta e inequívoca do texto constitucional241.

Nesta sistemática de fluidez entre as funções dos poderes, o judiciário vem agindo sistematicamente na garantia dos direitos sociais e fundamentais, como a saúde, através do fenômeno da judicialização.

236 PASSOS, 2014, E-book. 237 BEDIN, 2009. p. 23.

238 CAMBI, Eduardo; NASSIF, Diego. Expansão da jurisdição constitucional e separação de poderes: Uma análise

sistêmica à luz da cidadania. Revista dos Tribunais, vol. 916/2012, fev., p. 249-263. Revista dos Tribunais

Online, São Paulo, p.01-11, 2012. p. 04.

239 FONTE, Felipe de Melo. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book. 240 FONTE, 2013, loc. cit.

Dentre os Poderes do Estado, o Judiciário destaca-se como “um defensor objetivo e independente da ordem constitucional, servindo como uma contraestrutura instituída ou um contrapoder que deve ser capaz de contrariar qualquer ato ou manobras violadoras da Constituição”242. Desse modo, caso as leis, políticas públicas ou as omissões do Estado ofendam a Constituição, competirá ao Judiciário o restabelecimento dos atores políticos e de suas posições institucionais, de modo a submetê-los aos regramentos da Lei Maior243.

A questão da legitimidade do poder judiciário para intervir em questões afetas a políticas públicas também possui um cunho histórico. Assim, na contemporaneidade, observa-se que a existência de restrições da intervenção judicial “em temas como a escolha de prioridades e a discricionariedade técnica” da administração é ligada a uma concepção antiga, não representando o “arranjo jurídico” da Constituição de 1988244.

De acordo com Passos, embora existam diversos argumentos utilizados como óbice para garantir a legitimidade judicial na satisfação dos direitos vigentes, intervindo em políticas públicas, nenhum deles conseguiu de fato eximir a postura ativa do poder judiciário, já que os próprios objetivos e direitos fundamentais consagrados na Carta Magna demonstram o papel que se espera do órgão julgador245.

A teoria política mais conservadora traz a preocupação com o exercício moderado desse poder, apegando-se às ideias liberais para sustentar que a intervenção judicial na política ofenderia o princípio constitucional da separação de poderes, pois a atuação jurisdicional acabaria por invadir competências destinadas constitucionalmente ao legislador e ao administrador público. Como crítica, existe o entendimento de que a intervenção judicial poderá trazer soluções diversas das decisões tomadas pelos agentes escolhidos pelo voto do povo, o que poderia ser visto como estranho à maioria democrática, resultando no risco de uma “ditadura do judiciário”246.

Outra crítica da intervenção judicial refere-se ao fato de o processo de políticas públicas revelar um aparelhamento complexo e o judiciário, precipuamente construído para apreciação de casos judiciais individuais, não teria condição de realizar a análise necessária, sem que pusesse em risco toda a estrutura feita pelo executivo com critérios técnicos247, conforme já analisado no presente trabalho.

242 CAMBI, 2012, p. 04. 243 Ibid., p. 11.

244 PASSOS, 2014, e-book. 245 PASSOS, 2014, loc. cit. 246 PASSOS, 2014, loc. cit. 247 PASSOS, 2014, loc. cit.

O direito revela-se como “subsistema autopoiético aberto, que se comunica com outros sistemas (econômico, religiosos, políticos, etc.)”. Assim, a interferência abusiva do judiciário em questões políticas implicaria na desestabilização do próprio sistema, inviabilizando, inclusive, a concretização dos direitos sociais248.

No entanto, no que tange ao direito à saúde, em virtude de seu caráter basilar e seu viés de garantir a própria dignidade da pessoa humana com a fruição de todos os demais direitos, conforme tratado no capítulo anterior, não há como afastar a intervenção judicial com o fito de garantir as prestações materiais necessárias, principalmente quando há omissão do poder público diante dos casos concretos.

A judicialização desnuda a ineficiência dos poderes executivo e legislativo para a efetivação constitucional249. Sobre a omissão ou ineficiência de tais poderes diante dos direitos prestacionais, inclusive comprometendo a eficácia dos direitos fundamentais e sociais em seu núcleo mínimo, Bedin salienta que “atribui-se ao Estado-Juiz a competência para impor a execução das políticas públicas estabelecidas em lei, bem como para tutelar direitos subjetivos a determinadas prestações independentemente ou além da concretização pelo legislador”250.

Jaborandy e Marini, com o devido cuidado, salientam que existem dois eixos analíticos e com posições contrárias no que se refere ao fenômeno da judicialização, sendo um procedimentalista que defendem um judiciário com poderes limitados, e outro substancialista que defende uma postura mais ativa da jurisdição251.

Referindo-se à situação do Brasil e seu ditames constitucionais, Jaborandy e Marini destacam que o seu constitucionalismo dirigente resultou no fenômeno da judicialização, causando interferências nas políticas públicas, porém, tal fenômeno deve se dar de forma excepcional, focando na natureza coletiva dos direitos materializados por meio das políticas públicas252.

Tal entendimento é atrelado a uma crítica costumeiramente feita ao fenômeno da judicialização da saúde, principalmente em relação ao grande número de ações individuais que buscam o recebimento de prestações materiais para satisfação do direito. Tais ações seriam fatores negativos e passíveis de impossibilitar o atendimento universal das políticas públicas vigentes, pois, nessa visão, o mais adequado seria o ajuizamento de ações coletivas. Essa situação se mostra polêmica e será melhor analisada em outros pontos da presente dissertação. 248 JABORANDY; MARINI, 2018, p. 03.

249 JABORANDY; MARINI, loc. cit. 250 BEDIN, 2009. p. 24.

251 JABORANDY; MARINI, op. cit., p. 04. 252 JABORANDY; MARINI, op. cit., p. 04.

Conforme tratado por Bucci253, para se conhecer, de fato, uma política pública (existência, conformação e adequação), seria preciso buscar informações no Poder Executivo, pois o Judiciário, diante dos casos concretos apresentados, apenas toma ciência de situações reflexas e parcelas da aplicação da política atingida.

Esse entendimento de Bucci revela a tendência doutrinária em estimular um diálogo entre os poderes, principalmente diante de fenômenos como a judicialização da saúde, como uma alternativa apta a minimizar os seus efeitos que a primeira vista podem se mostrar negativos frente à Administração Pública.

Ao tratar do fenômeno da judicialização, mostra-se interessante o estudo do “direito dos pobres no ativismo judiciário”, realizado por Canotilho ao apontar que o ativismo judicial também está relacionado à opção pelos pobres na ciência do direito e na atividade jurisprudencial, no sentido de primar pela proteção dos excluídos, além de levar em consideração as desigualdades fáticas e jurídicas existentes254.

Nessa perspectiva, para Canotilho, a “opção pelos pobres” aponta a necessidade de se atender o princípio da solidariedade e os direitos sociais como regras jurídicas, além da necessidade de dar mais relevo às disciplinas que se preocupam com a pobreza como, por exemplo, questões ligadas ao acesso à saúde255.

Nessa perspectiva, é importante salientar o papel da judicialização como forma de garantia da satisfação dos direitos fundamentais e sociais, dentre os quais se destaca o direito à saúde, principalmente levando-se em consideração os hipossuficientes sociais em atendimento ao princípio da solidariedade que se relaciona, também, com a perspectiva do Direito Fraterno tratada no primeiro capítulo.

O fenômeno da judicialização existe e está cada vez mais presente nos Tribunais, o que ressalta a importância de interpretá-lo e utilizá-lo de forma a garantir uma perspectiva mais humanística e fraterna ao direito, conforme já exposto no capítulo um, buscando o efetivo respeito aos direitos humanos e fundamentais.