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CAPÍTULO 02 – A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O FORNECIMENTO PÚBLICO

2.5 A judicialização da saúde e o fornecimento público de medicamentos

2.5.2 O problema do acesso à justiça

Dentre as expressivas críticas ao fenômeno da judicialização, está a disparidade de acesso à justiça no Brasil, pois, como cediço, muitos brasileiros ainda estão à margem da tutela jurisdicional. Dessa forma, mesmo que exista o aparato legal para consagração do direito à saúde e toda a estrutura material do judiciário nacional, muitos indivíduos desconhecem o que deve ser feito para o recebimento dos medicamentos prescritos que necessitam e lhes foram negados administrativamente.

Assim, o princípio da igualdade, inclusive fundante do Sistema Único de Saúde, nessa perspectiva, encontra-se violado, principalmente diante da universalização do atendimento público, visto que parcela da população, que possui conhecimento de seus direitos, consegue, de fato, socorrer ao judiciário para o recebimento da prestação material de saúde de que necessita, enquanto o mesmo não ocorre com a parcela mais carente da população.

Segundo tratado por Cárcova358, o princípio romano do nemine licet ignorare jus (ninguém pode ignorar a lei), difundido no sistema de direito, implica em injustiças na modernidade, até mesmo pelo fato de que nem todos possuem o conhecimento de seus direitos. Na obra entitulada “A opacidade do Direito”359, o autor relata que nem sempre o direito é inteligível para todos, existindo disparidade na forma de sua compreensão até mesmo entre os seus próprios operadores.

Sant’Ana aponta que uma das críticas à judicialização da saúde, principalmente em demandas individuais, é no sentido de que se trata de um fenômeno de elite e simboliza o “alargamento das iniquidades no acesso à saúde”360 e o “próprio comprometimento do caráter universal do SUS”361.

Neste sentido, Sant’Ana afirma que a judicialização teria como “vilões” as elites e o próprio setor privado, principalmente a indústria farmacêutica, contrapondo-se com as “vítimas” que seria a gestão do SUS e os pobres362. Segundo o autor, a indústria farmacêutica impulsiona novos produtos e as elites nacionais invocam seus advogados para acionarem o Poder Judiciário buscando o fornecimento dos fármacos às custas do Sistema Único, apontando que “o excesso de ordens judiciais para o custeio de medicamentos de alto custo desorganiza a gestão e o orçamento do SUS, prejudicando os pobres que dependem dele”363.

358 CÁRCOVA, Carlos María. A opacidade do Direito. São Pulo: Editora LTr São Paulo, 1998. p. 19. 359 CÁRCOVA, 1998.

360 SANT’ANA, 2018, p.199. 361 SANT’ANA, 2018, loc. cit. 362 SANT’ANA, 2018, loc. cit. 363 SANT’ANA, 2018, loc. cit.

Porém, analisando dados empíricos de pesquisas realizadas nos Estados de São Paulo, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul, Sant’Ana concluiu que “o conjunto das pesquisas acadêmicas existentes permite afirmar que as classes populares não estão alijadas do acesso à justiça ou são vítimas da judicialização da saúde”364. Para o autor, “a tese da judicialização pelas elites é um mito propugnado pelo nível político da gestão do SUS e, equivocadamente, ratificado por parte da academia, inclusive em âmbito internacional”365.

Segundo ao autor, a judicialização da saúde no Brasil é um instrumento à disposição de todas as classes sociais, porque os indivíduos e grupos das classes mais baixas são exatamente aqueles que mais sofrem com os efeitos da “exclusão no acesso e a precarização do sistema público”366, sendo que “é exatamente para eles que a judicialização (...) se apresenta como instrumento mais precioso para o acesso à saúde”367.

Em resumo, não se nega a existência de dificuldade de acesso à justiça pela parcela mais carente da população, que muitas vezes não possui o conhecimento de seu direito, em virtude da opacidade que foi tratada por Cárcova368, possuindo ampla dificuldade de ter acesso ao judiciário, por questões econômicas e sociais, mesmo que exista no país instituições como a Defensoria Pública. Porém, mesmo diante dos inegáveis problemas de acesso à justiça, ainda sim a judicialização é um fenômeno capaz de viabilizar a efetivação e concretude do direito fundamental e social à saúde aos mais vulneráveis, inclusive por intermédio das Defensorias Públicas, conforme tratado por Sant’Ana369.

Também compete esclarecer que as demandas de saúde, nos termos da legislação nacional, podem ser propostas nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, regidos pela Lei nº 12.153/2009, com competência para julgar causas cujo valor não exceda a 60 (sessenta) salários mínimos vigentes (art. 2º), sendo que de acordo com a interpretação conjunta a Lei nº 9.099/1990 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), precisamente o art. 9º, permite-se, nas causas com valor de até 20 salários-mínimos, a dispenda do advogado para o ingresso das ações.

Seguindo as diretrizes da legislação processual civil, o valor da causa é calculado através da somatória de doze prestações pleiteadas, nos casos em que os pedidos versem sobre

364 SANT’ANA, 2018, p.202. 365 Ibid., p.202. 366 Ibid., p.199. 367 Ibid., p.199. 368 CÁRCOVA, 1998. 369 SANT’ANA, 2018.

obrigações continuadas, como a maioria dos casos para o recebimento de fármacos de uso contínuo e por tempo indeterminado.

Desse modo, verifica-se que a legislação e o aparato institucional brasileiro permitem, a depender do valor dos medicamentos pleiteados, que os indivíduos busquem a tutela jurisdicional sem o ônus da contratação de um advogado, além da possibilidade dos mais carentes se socorrem às Defensorias Públicas Estaduais e da União.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, marcado por desigualdades econômica e social latentes, decorrentes de seu contexto histórico de segregação, escravidão e coronelismo, a satisfação plena dos direitos sociais é um desafio para as chamadas “minorias sociais”, tanto no âmbito administrativo quanto na seara judicial.

Na questão específica da saúde, Schwarcz370, utilizando os dados do IBGE de 2018, que apontam a existência de incontestável desigualdade no atendimento dos brasileiros, evidenciando que mulheres, indivíduos entre 25 e 49 anos, pretos e pardos, pessoas com baixo ou médio nível de instrução e o grupo que não possui plano de saúde, representam aqueles com maiores taxas de não atendimento pelos serviços de saúde, destacando, ainda, que tais números são encontrados nas regiões Norte e Nordeste, reconhecidamente como regiões mais pobres do país.

Em sua análise, Schwarcz também destaca que os trabalhadores informais apresentam maiores riscos de saúde se comparados com os trabalhadores formais; pardos e pretos possuem “56,7% a mais de chances, em relação aos brancos, de apresentar um estado de saúde classificado como ‘não bom’”371, situação oriunda do contexto histórico e social do Brasil.

Nessa senda, nota-se que grande parcela da população brasileira, frequentemente alijada de seus direitos fundamentais, são aqueles que mais necessitam do Poder Judiciário para efetivação do direito à saúde, principalmente no viés material atinente ao fornecimento de medicamentos. No mais, não se pode perder de vista que é justamente tal parcela da população que possui maior dificuldade de se socorrer ao judiciário para a concretude de seus direitos.

Seguindo os critérios popularizados por Thomas Piketty, atrelado ao percentual da renda total que foi apropriada pelo 1% (um por cento) mais rico, Arretche372 afirma que no Brasil os mais ricos acumulam cerca de um quarto da renda total no país, embora efetuem o pagamento de apenas de apenas 1,8% (um vírgula oito por cento) de imposto sobre sua renda.

370 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 131. 371 Ibid., p. 131-132.

372 ARRETCHE, Marta. Metade cheia ou metade vazia do copo?. Encarte Oxfam. Cada vez mais desigual. Ed. 104,

Abr/2016. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/cada-vez-mais-desigual/ > Acesso em: 23 mar. 2021. p. 04

Nessa lógica, a população mais rica do país se beneficia, em razão do contexto histórico nacional marcado por amplos privilégios e herança escravocrata, de acumular a maior parte da renda nacional, arcando com uma pequena carga tributária em comparação com a sua expressiva renda amealhada. No entanto, a presente pesquisa se preocupa com a parcela mais pobre da população brasileira, visto que é a mais atingida diante da negativa do fornecimento de prestações públicas atinentes aos direitos sociais, como as prestações de saúde, mesmo arcando com elevada carga tributária em comparação aos míseros rendimentos auferidos.

Nessa sistemática, não se nega que a judicialização da saúde também é um fenômeno que desnuda a desigualdade estruturante do Brasil, na medida em que a parcela mais pobre do país encontra maior dificuldade de acesso ao judiciário para buscar seus direitos, enquanto a parcela mais rica da população goza de maior acesso à justiça até mesmo para garantia de prestações estatais indispensáveis, que deveria chegar aos vulneráveis com primazia, principalmente em virtude do contexto histórico nacional, do pagamento de altas taxas tributárias frente a sua renda e a notória impossibilidade financeira de arcar com o custo particular de bens e serviços, inclusive atrelados ao mínimo existencial como se verá na próxima seção.