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CAPÍTULO 01 – O DIREITO FRATERNO, O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À

1.3 O Sistema Único de Saúde no Brasil

1.3.2 A normatização do Sistema Único de Saúde e a dispensação de medicamentos

A ampla consagração do direito à saúde pela Constituição de 1988, com suporte nas legislações infraconstitucionais determinantes para a concretização do SUS, implica na necessidade de fornecimento integral das prestações materiais indispensáveis para a manutenção e o restabelecimento da saúde, destacando o fornecimento de medicamentos. Seguindo essa premissa, a Lei nº 8.080/90 prescreve que está incluída no campo de atuação do Sistema Único de Saúde a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (art. 6º, I, d). A legislação do SUS é clara ao determinar que competirá ao Estado e seus entes federativos a prestação de assistência terapêutica integral consistente na “dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou na falta do protocolo” (art. 19-M, I, da Lei nº 8.080/90). Essa dispensação será

170 OLIVEIRA; KRÜGER, 2018, p.63.

171 ROSA, Thabata Cristina Silveira; SAES, Sueli Gonzales; ABULEAC, Fernanda Lessa. A Constituição de 1988

e as Políticas Públicas em saúde no Brasil. Revista de Gestão em Sistemas de Saúde - RGSS, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 35-49, jan./jun. 2012. p. 39.

realizada com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS e de forma complementar pelos gestores estaduais e municipais do sistema público de saúde (art. 19-P, I, II e III, da Lei nº 8.080/90).

Acerca da dispensação de medicamentos, objeto central de análise desta pesquisa, importa destacar que a “incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde” (art. 19-Q, da Lei nº 8.080/90), com o assessoramento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, sendo vedado o fornecimento de medicamento não aprovados pela ANVISA (art. 19-T, da Lei nº 8.080/90).

Como já tratado, a organização e a estruturação do SUS se dá por intermédio de legislações federais, estaduais e portarias. No que se refere especificamente à assistência farmacêutica, a norma infralegal utilizada é a Portaria GM/MS n. 399, de 22 de fevereiro de 2006, que estabelece as atribuições administrativas de cada um dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

Em resumo, a Portaria GM/MS n. 399 de 2006 estabelece que compete igualmente a todos os entes federativos “promover a estruturação da assistência farmacêutica e garantir, em conjunto com as demais esferas de governo, o acesso da população aos medicamentos cuja dispensação esteja sob sua responsabilidade”172, promovendo ou fomentando o seu uso racional, observando as legislações vigentes e as pactuações estabelecidas.

A referida portaria do Ministério da Saúde reforça a tese de que existe a competência concorrente entre todos os entes federativos no que se refere a consagração do direito à saúde e a assistência farmacêutica. No entanto, conforme tratado por Jorge173, a norma infralegal apresenta apenas disposições vagas e repetitivas, não servindo para o “estabelecimento de responsabilidades claras de cada ente federado de forma a diminuir as competências concorrentes e a tonar mais claro quem deve fazer o quê, contribuindo, assim, para o fortalecimento da gestão compartilhada e solidária do SUS”174.

172 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n. 399. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do

SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,

Brasília, DF, 22 de fevereiro de 2006. Disponível em:

https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0399_22_02_2006.html. Acesso em: 10 ago. 2020.

173 JORGE, Ighor Rafael de. A base normativa da Política de Assistência Farmacêutica: Os efeitos da atividade

normativa infralegal. In: BUCCI, Maria Paula Dallari; DUARTE, Clarice Seixas (Coord.). Judicialização da

saúde: A visão do Poder Executivo. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 473-474. 174 Ibid., p. 474.

É fato que não seria possível a realização de políticas públicas de fornecimento de medicamentos sem a instauração de protocolos mínimos, capazes de padronizar ao máximo e sempre que possível os fármacos que serão fornecidos administrativamente através do SUS. Nesse sentido, o Decreto nº 7.508/2011 dispõe sobre a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME que compreende a “seleção e a padronização dos medicamentos indicados para atendimento de doenças e agravos no âmbito do SUS (art. 25 do Decreto nº 7.508/2011) que será acompanhado pelo Formulário Terapêutico Nacional – FTN, trazendo a prescrição, a dispensação e o uso dos medicamentos (art. 25, parágrafo único, do Decreto nº 7.508/2011).

Segundo os termos do Decreto nº 7.508, competirá ao Ministério da Saúde a publicação e atualização da RENAME e do respectivo FTN, a cada dois anos (art.26, parágrafo único). No entanto, é cediço que a pesquisa científica evolui muito rápido, principalmente na área da farmacologia, ocorrendo a desatualização da listagem federal de medicamentos, uma vez que novos medicamentos são colocados no mercado, trazendo novas possibilidades terapêuticas que se apresentem mais adequadas aos casos clínicos dos usuários SUS.

O Decreto nº 7.508/2011 disciplina também que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações específicas e complementares de medicamento, respeitando a responsabilidade dos entes pelo financiamento dos fármacos (art. 27 do Decreto nº 7.508/2011).

Acerca da assistência farmacêutica, esse decreto explicita que o acesso universal e igualitário, princípios basilares do Sistema Único de Saúde, pressupõe, de forma cumulativa, que o usuário esteja assistido por ações e serviços de saúde do SUS; o medicamento deva ser prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS; haja a dispensação do fármaco ocorrida em unidades indicadas pela direção do SUS, além da prescrição estar em conformidade com a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, com os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas do SUS, bem como o fármaco deve estar presente na relação de medicamentos complementares estadual, distrital ou municipal (art. 28 do Decreto nº 7.508/2011).

Cordeiro dispõe que a Assistência Farmacêutica é classificada em 03 (três) blocos de financiamentos diversos, a saber: “Componente Básico da Assistência Farmacêutica, Componente Estratégico de Assistência Farmacêutica e Componente de Medicamento de Dispensação Excepcional”175.

Sobre a forma de alocação de recursos para compra dos fármacos no âmbito do SUS, a autora destaca ainda três possibilidades: “financiamento direto pela União aos Estados e Municípios; co-financiamento da União e dos Estados e repasse direto dos medicamentos”176.

Os chamados medicamentos essenciais, relacionados à atenção primária em saúde, compõem o Componente Básico da Assistência Farmacêutica, destinando-se à satisfação das necessidades mínimas de saúde dos usuários, motivo pelo qual, pelas diretrizes do SUS, devem estar disponíveis através das Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde. No mais, o seu financiamento ocorre pela transferência de recursos da União, de acordo com a população dos Estados e Municípios, cabendo “contrapartida destes entes no financiamento por meio de recursos financeiros ou de insumos”177. O programa de dispensação de medicamentos essenciais pode se dar de forma centralizada, quando os Estados e Municípios recebem os recursos federais e diretamente efetuam a compra dos fármacos ou, de forma descentralizada, quando o próprio Ministério da Saúde adquire os medicamentos e insumos e os repassa aos Estados e Municípios178.

Os medicamentos que compõem o Componente Estratégico de Assistência Farmacêutica são aqueles relacionados “ao controle de endemias como tuberculose, a hanseníase, a malária, a leishmaniose, a doença de Chagas e outras doenças endêmicas de abrangência regional ou nacional, além de anti-retrovirais dos Programas de DST/AIDS, Sangue, Homoderivados e Imunobiológicos”179. Em virtude da gravidade, tais fármacos são adquiridos diretamente pelo Ministério da Saúde e distribuídos aos Estados e Municípios.

Em seu turno, os fármacos e insumos, que compõem o “Componente de Medicamento de Dispensação Excepcional”, possuem cofinanciamento federal e estadual, pois são utilizados para o tratamento de enfermidades específicas que atingem um número limitado de pacientes e tratamentos contínuos e prolongados180.

A Política Nacional de Medicamentos foi estabelecida pelo Ministério da Saúde através da Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998, que apresenta um anexo contendo justificativa, diretrizes, prioridades, responsabilidades, acompanhamento e sua avaliação. Conforme tratado por Bucci181, o propósito da política de medicamentos é mais amplo que a assistência

176 CORDEIRO, 2010, p. 100. 177 Ibid., p. 101.

178 Ibid., p. 101. 179 Ibid., p. 101-102. 180 Ibid., p. 102.

181 BUCCI, Maria Paula Dallari. Contribuição para a redução da judicialização da saúde: Um estratégia jurídico-

institucional baseada na abordagem de direito e políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari; DUARTE, Clarice Seixas (coord.). Judicialização da saúde: A visão do Poder Executivo. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 43.

farmacêutica, pois abrange “a produção de medicamentos, a regulamentação sanitária, o desenvolvimento científico e tecnológico, dentre outros objetivos”182.

Bucci assevera que na sistemática da atual política de medicamentos, tem a RENAME uma função central de racionalização, servindo como “vetor de organização da produção e provisão de medicamentos, ao mesmo tempo em que institucionaliza, em termos, o compromisso de disponibilidade e fornecimento”183.

Sobre a RENAME, que é um importante instrumento de análise acerca da dispensação de medicamentos, vale ressaltar o seu caráter dinâmico, principalmente em virtude da necessidade de atualização periódica como uma de suas prioridades. O processo de atualização de tal lista era intermitente e sem previsibilidade, situação que enfraquecia o seu caráter de referência, deixando a lista de ser vista como “o rosto da política pública”184.

A Lei nº 12.401/2011, que alterou a Lei nº 8.080/1990, precisamente em seu art. 19-M, dispõe sobre a assistência terapêutica integral, que consiste em:

I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011);

II - oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde - SUS, realizados no território nacional por serviço próprio, conveniado ou contratado185.

Em sequência o Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, possui caráter organizacional, disciplinando o planejamento da saúde, reforçando a importância da RENAME e de outros instrumentos, como o Formulário Terapêutico Nacional e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), além de adotar nova listagem denominada Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES), com atualização bianual, com o fito de fortalecer a capacidade de articulação entre os órgãos do SUS186.

182 BUCCI, 2017, p. 43. 183 Ibid., p. 44-45. 184 Ibid., p. 47.

185 BRASIL. Lei n° 12.401. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência

terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 28 de abril de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.htm. Acesso em ago. 2020.

Sobre a listagem de medicamentos, Bucci187 aponta que existem limites que são ressaltados nas ações judiciais sobre o direito à saúde, destacando que o primeiro deles é o econômico, marcado pela contraposição entre “a velocidade no desenvolvimento de novas tecnologias terapêuticas e a escassez de recursos dos orçamentos da saúde pública”188, além de existir uma tensão decorrente do “aumento da expectativa de vida da população e a demanda crescente de tratamento, em paralelo com os valores elevados das inovações produzidas continuamente pela indústria farmacêutica”189.

Na Lei nº 8.080/1990, existia o art. 19-S que dispunha:

O impacto econômico da incorporação do medicamento, produto ou procedimento às tabelas do SUS não poderá motivar o indeferimento da sua incorporação ou o deferimento da sua exclusão das tabelas, salvo quando a doença ou o agravo à saúde para cuja promoção, proteção ou recuperação o medicamento, o produto ou o procedimento se destinar estiver plena e expressamente contemplada em protocolo clínico e em diretrizes terapêuticas específicas190.

As razões que motivaram o veto ao artigo 19 constam na Mensagem nº 113, de 28 de abril de 2011, in verbis:

A incorporação de medicamentos, produtos e procedimentos no âmbito do Sistema Único de Saúde é precedida de análise quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e relação custo-efetividade, conforme previsto no parágrafo único do art. 19-O do próprio projeto. A exclusão deste último critério pode acarretar prejuízo ao atendimento da população, além de inviabilizar a negociação com fornecedores visando a redução dos custos, com a consequente otimização e racionalização da aplicação dos recursos públicos191.

Compete destacar que as listas públicas de medicamentos são criadas tendo como referência o atendimento médio padrão direcionado aos usuários em grupos e escalas (população diabética, população de crianças, população de idosos, dentre outros)192. Também é importante se ater que as amplas listas do Sistema Único de Saúde não garantem por si só o acesso do usuário aos bens e serviços listados, até porque, na realidade, verifica-se situações de descompasso entre os itens ofertados e os oferecidos193.

187 BUCCI, 2017, p. 55. 188 Ibid., p. 55.

189 Ibid., p. 55-56.

190BRASIL. Mensagem 113, de 28 de abr. de 2011. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Msg/VEP-113.htm . Acesso em: 24 de ar. 2021.

191 BRASIL, Mensagem nº 113, 2011. 192 BUCCI, 2017, p. 57.

Tanto a Lei nº 8.080/90 (art. 19-T), quanto o Decreto nº 7.508 (art. 29), direcionam-se para vetar o fornecimento de medicamentos que não estejam com o devido registro perante a ANVISA, questão que já foi objeto do Recurso Extraordinário nº 657.718 no qual o Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, decidiu pela não obrigatoriedade do Estado em fornecer fármacos não registrados perante a agência sanitária, exceto em casos excepcionais, o que será melhor abordado no capítulo três desta pesquisa.

Em observância às disposições constitucionais e legislações ordinárias que regem o Sistema Único de Saúde, foram desenvolvidas políticas públicas de fornecimento de medicamentos para os usuários, o que deveria, a princípio, se dar de forma administrativa. Porém, em decorrência de diversos fatores que serão analisados no capítulo subsequente, diante da negativa do fornecimento dos fármacos prescritos pela via administrativa, os indivíduos acabam procurando o Poder Judiciário, deflagrando a judicialização do direito à saúde que se concretiza no fornecimento dos fármacos que lhes são necessários, havendo expressivo número de ações judiciais.

CAPÍTULO 02 – A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O FORNECIMENTO PÚBLICO