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A solidariedade da União, dos Estados e dos Municípios nas ações que versam sobre o

CAPÍTULO 03 – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O DIREITO À SAÚDE:

3.2 O instituto da Repercussão Geral

3.3.5 A solidariedade da União, dos Estados e dos Municípios nas ações que versam sobre o

O leading case do RE nº 855.178, se deu através de uma ação judicial em que a autora ingressou visando obter o medicamento “Bosentana (Tracleeer 62,5mg/125mg)”, tendo obtido êxito na antecipação de tutela que fora deferida no sentido de determinar a aquisição do fármaco pelo estado de Sergipe e o cofinanciamento do valor pela União, em percentual correspondente a 50% (cinquenta por cento)617.

614 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral em Recurso Extraordinário nº 607.582/RS. Relatora:

Ministra Ellen Gracie. Brasília, DF, data de julgamento: 13 de agosto de 2010. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=613791. Acesso em 29 mar. 2021.

616 BRASIL, loc. cit.

617 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral do Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator: Ministro

Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 05 de março de 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8015671. Acesso em 18 mar. 2021. p. 04.

No caso em tela, o estado de Sergipe efetuou o cumprimento da decisão proferida em sede de liminar, procedendo à entrega do fármaco. Ato contínuo, o juízo a quo sentenciou ratificando a tutela antecipatória e ocorreu o falecimento da demandante aproximadamente dois meses após a decisão de mérito proferida em primeira instância, cessando a obrigação de fazer. Porém, manteve-se “o inconformismo da União quanto à ordem de ressarcimento do custeio do medicamento ao Estado de Sergipe”.

Através do recurso de apelação, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região entendeu que o dever de fornecer as prestações atreladas a assistência à saúde é compartilhado entre os três entes federativos (União, Estados e Municípios), de modo que a distribuição de atribuições administrativas por meio das normas infraconstitucionais, já tratadas no capítulo um, não afasta a responsabilidade solidária constitucionalmente imposta.

Por tal razão, a União interpôs Recurso Extraordinário com preliminar de repercussão geral e, no mérito, sustentou a existência de violação aos ditames legais dos artigos 2º e 198 da CF/88. Em resumo, argumentou que existem “a ilegitimidade da UNIÃO para figurar no polo passivo da demanda, alegando que o SUS é guiado pelo princípio da descentralização e que a obrigação de fornecer e custear os medicamentos seria de incumbência exclusiva dos órgãos locais”618.

É importante destacar que a questão debatida no RE nº 855.178 não se confunde com a discussão dos medicamentos de alto custo, já trabalhadas no presente capítulo por meio da análise do acordão do RE 566.471-RG, visto que discute apenas à responsabilidade solidária dos entes federados no que tange a concretização do direito a saúde e a agitada ilegitimidade passiva da União.

O plenário do STF, por unanimidade, reconheceu a repercussão geral da questão constitucional fomentada através da via recursal. No mérito, a Corte reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, que se depreende na solidariedade dos entes públicos nas demandas que versam sobre prestações de saúde, sendo vencidos os votos Ministros Teori Zavascki, Roberto Barroso e Marco Aurélio, não ocorrendo a manifestação da Ministra Cármen Lúcia619. Inconformada a União opôs embargos de declaração contra o acórdão do Supremo, principalmente em razão de votos vencidos, com o fito de levar a discussão ao plenário da casa,

618 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral do Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator: Ministro

Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 05 de março de 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8015671. Acesso em 18 mar. 2021. p. 04.

possibilitando um maior debate sobre o tema, necessário em razão de seu caráter de relevância e complexidade620.

A Corte decidiu por unanimidade de votos em conhecer, preliminarmente, os embargos de declaração, com a finalidade de melhor discutir a questão no plenário da casa. No entanto, no mérito, por maioria, o Tribunal rejeitou os embargos, embora vencidos os votos dos Ministros Luiz Fux (Relator), Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Dias Toffoli621.

Assim, restou fixada a tese de repercussão geral (Tema 793):

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro622.

Em tal embargos, o Ministro Alexandre de Moraes asseverou a importância de se incluir União no polo passivo das ações que versam sobre o fornecimento de medicamento não registrado na ANVISA, questão que já foi objeto de repercussão geral em outro recurso, conforme já tratado, haja vista que a ela compete o registro do fármaco623. Porém no que se refere aos demais medicamentos, já registrados perante a agência regulatória, o Ministro destaca que é importante a reformulação da tese de Repercussão Geral, considerando que “atende aos ditames constitucionais a responsabilização subsidiária da União, haja vista que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional pertinente foram expressas quanto à distribuição de competências no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”624.

Como argumento atinente a afastar a responsabilidade solidária, Moraes destaca que existe a necessidade de “manutenção do equilíbrio constitucional”625, a partir de balizas constitucionais existentes, tais como a previsão de um sistema federalista e “de suas regras de distribuição de competências legislativas e administrativas, que são um dos grandes alicerces da consagração da fórmula Estado de Direito”626.

620 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator:

Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 23 de maio de 2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752469853. Acesso em 18 mar. 2021. p. 03-04. 621 Ibid., p. 02. 622 Ibid., p. 02. 623 Ibid., p. 80. 624 Ibid., p. 81. 625 Ibid., p. 81. 626 Ibid., p. 81.

Por tal posicionamento Moraes afirma que o fenômeno da “judicialização da saúde revela contingência que refoge à normalidade democrática”627, diante da tensão existente entre os três níveis da esfera federativa.

Assim, Moraes salienta que a Lei nº 8.080 de 1990, apontou a necessidade de uma descentralização político-administrativa das ações e execuções voltadas a concretude dos mandamentos constitucionais, definindo quis as atribuições cabíveis a cada uma das “pessoas políticas”628. Desse modo, para o Ministro, existe “um arquétipo normativo bem definido e estruturado pelo legislador para que se garanta o constitucional acesso do cidadão à saúde por meio de atividades administrativas desempenhadas em conformidade com a atribuição de cada qual”629.

Por tal razão, Moraes afirma que as ingerências judiciais, nas esferas da justiça estadual e federal, são tidas como “perniciosas ao modelo normativo instituído, a compelir, muitas das vezes, o abandono, principalmente pelos Estados e municípios, do programa orçamentário destinado ao financiamento de tais serviços, arruinando a divisão funcional de atribuições e encargos desenhados”630 por meio da legislação vigente.

Concluindo, Moraes saliente que diante da distribuição de competências previamente estabelecidas, bem como da divisão de valores que são repassados pela União aos Estados, Distrito Federal e Municípios para que esses adquiram os remédios e distribuam à população, ao seu ver, “não há razão para se delinear uma responsabilidade solidária entre os entes federados”631.

Para fundamentar o seu posicionamento, Moraes destaca que o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prescreve por meio do enunciado nº 08 que “nas condenações judiciais sobre ações e serviços de saúde devem ser observadas, quando possível, as regras administrativas de repartição de competência entre os gestores”632.

Em seu turno, o Ministro Dias Toffoli destacou em seu voto que até a Suspensão de Tutela Antecipa nº 175, que será trabalhada no tópico seguinte da presente pesquisa, os precedentes do Supremo não determinavam qualquer consideração sobre a solidariedade dos entes públicos, apenas se levantando a possibilidade de inclusão de quaisquer deles no polo 627 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator:

Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 23 de maio de 2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752469853. Acesso em 18 mar. 2021. p. 83. 628 Ibid., p. 85. 629 Ibid., p. 91. 630 Ibid., p. 91. 631 Ibid., p. 95. 632 Ibid., p. 95.

passivo das demandas judiciais, transparecendo a adoção do instituto da solidariedade pela Corte633.

Toffoli destacou que o próprio CNJ, apresentou enunciado no sentido que

A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento (enunciado 60 CNJ).

Por essa razão, Toffoli entende que a tese da solidariedade firmada pelo Supremo, impede a repartição de atribuições do SUS, apontando que tal ideia de “condenação indistinta de todos os entes (sem repartição de atribuições), provoca desordem na forma de cumprimento do comando judicial”634, bem como que a “indicação constitucional de competência comum no cuidado e na assistência à saúde prevista no art. 23, II, da CF/88, exigiria indubitavelmente a participação de todos os entes, mas sem sobreposição de atribuições entre eles”635.

Em resumo, Toffoli defendeu que

É comum a responsabilidade entre os entes que compõem o Sistema Único de Saúde, o que implica obrigação estruturada em níveis de atuação, os quais devem ser observados nas ações judiciais voltadas ao fornecimento de medicamentos, conforme a seguinte disposição: - na demanda que veicular pedido de medicamento, material, procedimento ou tratamento constante nas políticas públicas, deve figurar no polo passivo a pessoa política com competência administrativa para o fornecimento (dispensação) daquele medicamento, tratamento ou material, a ser identificada de acordo com a omissão que tenha ensejado a ação judicial; - na demanda que veicular pedido de medicamentos, tratamentos, procedimentos ou materiais não constantes das políticas públicas instituídas: será exigida a presença dos entes conforme sua atribuição no sistema: União (responsabilidade técnica); estado ou município (conforme o nível de responsabilidade de execução da política de saúde); com divisão de custeio entre todos os entes (responsabilidade de financiamento, conforme complexidade do atendimento)636.

O Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, defendeu que quando o medicamento pleiteado não se encontra incluído na lista dos SUS, a demanda deve ser proposta apenas em face da União, uma vez que somete ela pode determinar, via CONITEC e por meio dos

633 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator:

Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 23 de maio de 2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752469853. Acesso em 18 mar. 2021. p. 111.

634 Ibid. p. 113. 635 Ibid., p. 113. 636 Ibid., p. 125.

procedimentos adequados, a inclusão de um fármaco nas listagens da política pública de dispensação637. Por tal razão, o ministro assevera que não existe nenhuma razão para se adotar a solidariedade entre os entes públicos nas demandas em que o fármaco não conste nas listas do SUS638.

O voto de Barroso defende que “é melhor para o sistema e produz maior justiça, em matéria de saúde, a fórmula da subsidiariedade”639, na medida em que para a forma da solidariedade traz um custo ao sistema de saúde que é melhor ser evitado, sem que isso represente um prejuízo ao paciente640.

Nota-se que os voto contrários a solidariedade dos entes públicos na demandas de saúde, estão na contramão do entendimento firmado pela maior parcela do aporte bibliográfico pesquisado na presente pesquisa, dentre os autores que se dedicam a estudar o fenômeno da judicialização da saúde, visto que é corrente o entendimento no sentido que compete a todos entes federativos a obrigação de prestar assistência farmacêutica de saúde, inclusive de forma solidária, ao serem demandados por meio das vias judiciais.

Assim, compete repisar o posicionamento de Alves que explicita que existe solidariedade na prestação do direito à saúde, o que resulta no fato de que todos os entes da federação podem ser demandados pelos indivíduos na busca pela satisfação dos pedidos relacionados ao pleno gozo do direito à saúde, embora exista 641.

Não se nega a existência de um Sistema Único de Saúde, amparado pela Constituição Federal, hierarquizado e que delimita a prestação dos serviços pelos entes federados, o que poderia, à primeira vista, ensejar na competência exclusiva de determinado ente, a depender da prestação pretendida, apta a afastar a competência dos demais642. No entanto o entendimento consolidado na doutrina especializada e na própria tese de Repercussão Geral do Supremo, é no sentido de que a divisão de atribuições realizada pela legislação infraconstitucional é voltada tão somente para organização do sistema de saúde e para implementação da execução de políticas públicas, principalmente no que tange a repartição e destinação de recursos públicos, não tendo o condão de implicar no afastamento da solidariedade entre os entes federativos na concretização plena do direito à saúde em seu viés prestacional.

637 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 855.178. Relator:

Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, data de julgamento: 23 de maio de 2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752469853. Acesso em 18 mar. 2021. p. 138.

638 Ibid., p. 139. 639 Ibid., p. 140. 640 Ibid., p. 140.

641 ALVES, 2013, p. 134 642 ALVES, 2013, loc. cit.

Conforme já tratado, é cediço que a estrutura dos municípios, por exemplo, está mais próxima do cidadão comum, de modo que para realização dos pedidos atinentes a saúde na tentativa de fixação da tese da subsidiariedade poderia implicar em uma maior dificuldade aos jurisdicionados, principalmente ao mais vulneráveis.

Nessa lógica, o afastamento da solidariedade poderia ensear em uma maior dificuldade de diálogo entre os poderes executivo e judicial, postura tido como importante para afastar efeitos negativos da judicialização nos termos tratados no capítulo anterior, na medida em que os juízes singulares estão mais próximos das secretarias municipais e estaduais de saúde, para promoção de ações conjuntas e coordenadas na tentativa de equacionar as demandas e satisfazer as prestações de saúde discutidas, ao ser comparada a estrutura hierarquicamente superior do Ministério da Saúde.

Por fim, a ideia de solidariedade dos entes públicos, no plano do direito processual civil e que implica na inclusão de todos os entes no polo passivo das demandas judiciais, possui consonância com os ditames do direito fraterno, conforme tratado no capítulo primeiro, principalmente no que se refere ao dever de cooperação. Nesse sentido, ao incluir todos os entes públicos no polo passivo, o jurisdicionado poderá estar contribuindo com a cooperação e acordos entre os entes públicos no sentido de se promover a concretização do direito, postura que poderá se dá de forma administrativa e judicial.

Fazendo uma crítica ao recurso em comento, Galil afirma que por meio da interpretação da redação das normas constitucionais afetas à matéria da promoção da saúde, nota-se que constituinte desejou “reunir esforços de todo o corpo social, estatal ou não, para a disponibilização da saúde ao cidadão, com o cuidado de não deixar vácuos que, por óbvio, impactariam diretamente a vida dos usuários”643, perspectiva que justifica a própria existência do SUS.

Galil sustenta que a descentralização praticada no âmbito do sistema público de saúde tem o condão de concretizar o princípio da igualdade, no sentido que compreende desigualar situações a medida de sua desigualdade, uma vez que se atuação do SUS fosse centralizada e uniforme, o direito fundamental de um indivíduo no interior do Amazonas, por exemplo, sofreria flagrante redução, se comparado a outro de grandes centros urbanos644. Desse modo, a

643 GALIL, João Victor Tavares. Cofinanciamento estatal no SUS – RE 855.178 ED/SE. Revista de Direito

Administrativo e Infraestrutura, v. 13, p. 345-350, abr-jun/2020. Revista dos Tribunais Online, São Paulo, 2020, p. 03.

descentralização do SUS visa garantir o acesso universal amplo e facilitado, o que não pode servir reduzir responsabilidades de qualquer ente federativo645.

No que se refere a tese fixada pelo Supremo no RE nº 855.178, é importante destacar que ela pode ser analisada em duas partes, uma atrelada ao reconhecimento da solidariedade, e outra com relação ao restabelecimento do equilíbrio financeiro dos entes públicos, na medida em que prescreve que compete “ao magistrado determinar o ressarcimento ao ente que, não tendo a atribuição jurídico-administrativo para tal, financiou o tratamento”646.

Assim, em que pese a tese reforce a existência de solidariedade, também convoca o magistrado a uma atuação proativa, na medida em que depreende que compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento nos termos das regras atinentes a repartição de competências, passível de determinar o ressarcimento a quem fora compelido a suportar o ônus financeiro, caso necessário647.