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4 A NECESSIDADE DE UM REGIME JURÍDICO DO TRABALHO ENCARCERADO

4.2 A Lei de Execuções Penais frente à Constituição Federal de

A Constituição Federal de 1988 possui como um dos seus princípios fundamentais o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV), elevando não só o direito ao trabalho, mas também as condições mínimas do exercício de tal direito à categoria de direitos fundamentais.

Trata-se de mudança paradigmática. A Constituição de 1967, bem como a de 1969 (formalmente Emenda Constitucional n. 1 de 1969) já versavam sobre alguns direitos dos trabalhadores, mas o faziam no Título da Ordem Econômica e Social. A Constituição Cidadã, ao elencar o direito ao trabalho e os direitos trabalhistas no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais buscou concretizar aquilo que já anunciara como princípio: deve-se respeitar o valor social do trabalho.

O título dedicado à Ordem Econômica e Financeira da Constituição Federal de 1988 aprimorou a linguagem antes empregada. Agora, a ordem econômica passa a ser fundada na valorização do trabalho, tendo como princípio a busca do pleno emprego (art. 170).

Ou seja, a Constituição considera o trabalho não só um valor fundamental da Constituição, mas também garante que não haverá a exploração desmedida da mão de obra, uma vez que são assegurados, com fundamentalidade, diversos direitos trabalhistas no rol do art. 7º.

Importante destacar que o caput deste dispositivo não faz qualquer distinção quanto à privação da liberdade do trabalhador. Diz apenas que os trabalhadores urbanos e rurais são titulares dos direitos que elenca em seus incisos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.

O silêncio, no presente caso, é eloquente. Note-se que quando a Lei Fundamental quis distinguir aqueles que titularizam os direitos trabalhistas, o fez de forma expressa, como, por exemplo, na restrição da aplicação de alguns direitos aos trabalhadores domésticos (parágrafo único do art. 7º).

Não poderia ser diferente, afinal, conforme já exposto, o único direito que o condenado perde é a sua liberdade, conservando todos os demais. O próprio Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/1940), com todo o seu rigor típico da era do Estado Novo, reconhece este fato em seu art. 38, assim como, de forma semelhante, o faz a LEP em seu art. 3º65.

Em que pese a obviedade teórica, o exame da realidade prisional brasileira faz necessário reafirmar: a prisão retira apenas o direito à liberdade, todos os demais, constitucionais ou legais, são mantidos66.

Assim ocorre com o direito ao trabalho. O indivíduo privado de sua liberdade mantém o direito de trabalhar. Diante disto, cumpre ao Estado proteger e possibilitar

65 Art. 38. O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

66 Não se ignora que o indivíduo preso por condenação criminal tem suspensos os seus direitos políticos. No entanto, tais direitos são mantidos nos casos de prisões temporárias e preventivas. Em qualquer caso, não é o regime prisional que provoca tal suspensão, mas sim a existência de condenação criminal.

o exercício regular de tal direito. É neste sentido a lição de Anabela Miranda Rodrigues (2001, p. 97):

Quanto ao regime jurídico do trabalho prisional, a primeira nota é a de que o direito ao trabalho constitucionalmente consagrado como direito positivo à obtenção de trabalho não sofre restrição em virtude da reclusão. Em contrapartida, o Estado tem o dever de providenciar trabalho aos reclusos.

O amparo conferido pelo Estado às relações trabalhistas é conhecido por princípio da proteção. Sobre o tema, leciona Augusto César Leite de Carvalho (2011, p. 56):

O direito civil, ou sua versão mais vetusta, tem a igualdade como pressuposto. Imaginam-se pessoas que, por estarem em igual condição, podem instituir contratos entre si e, nestes, ajustar o que manifesta mais claramente a vontade de cada qual. O direito do trabalho, como já se percebeu, parte de pressuposto diverso: a desigualdade entre os contratantes. Por isso, relativiza o princípio da autonomia da vontade individual, que inspira o direito obrigacional comum e, para compensar a inferioridade econômica do empregado, estende-lhe uma rede de proteção, um rol de direitos mínimos e indisponíveis que asseguram a dignidade do trabalhador (dir-se-ia: do trabalho humano). Como afirma Couture, em remissão feita por Plá Rodriguez, “o procedimento lógico de corrigir as desigualdades é o de criar outras desigualdades”.

Ora, da mesma forma com que na relação contratual entre o trabalhador e o empregador não há igualdade entre as partes, também na relação de trabalho prisional está presente a desigualdade entre as partes, que, no caso, são o Estado repressor e indivíduo condenado.

Assim, havendo a mesma situação fática que justifica a proteção estatal da relação trabalhista, revela-se axiologicamente incompatível com a Constituição o tratamento desigual. Trata-se da aplicação do brocardo ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio, ou seja, onde existe a mesma razão, deve-se aplicar a mesma disposição legal.

Não se afirma aqui que as relações trabalhistas ocorridas no cárcere são idênticas àquelas entre uma empresa e um trabalhador livre. No entanto, a situação de desigualdade que invoca a atuação estatal no caso dos contratos de trabalho também está presente na relação de trabalho encarcerada: em ambos os casos o

trabalhador não está em situação de igualdade com a outra parte, não podendo, portanto, livremente negociar os direitos e deveres dos envolvidos.

Na realidade, a situação do trabalhador preso é ainda pior. Não pode ele escolher livremente o exercício de qualquer profissão, quanto mais discutir cláusulas contratuais. Não há sequer contrato de trabalho, o preso trabalha com aquilo que o Estado o possibilita trabalhar.

Portanto, injustificado o tratamento desigual. A LEP, ao excluir a aplicação da CLT ao trabalho encarcerado cria situação de exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, que, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 1186), consiste no seguinte:

Tem-se a exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade se a norma afronta o princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas.

Aldacy Rachid Coutinho defende, inclusive, que não está desnaturada a relação contratual, sendo o trabalho penitenciário um autêntico contrato trabalhista, com a consequente proteção da legislação celetista. Diz a autora (COUTINHO, 1999, p. 18):

[…] estando presentes os requisitos da relação de emprego, insertos no art. 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, qual seja, subordinação, onerosidade, continuidade e pessoalidade, há de se reconhecer a existência de um contrato de trabalho, garantindo-lhes salários e direitos idênticos aos demais empregados, inclusive com descontos previdenciários. Soa evidente que o usufruir de determinados direitos pode ser minimizado pela própria condição de encarcerado, mas tal não alcança a realização de uma atividade subordinada.

Importa destacar que a Lei 6.367 de 1976, que dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do Instituto Nacional de Previdência Social (atualmente a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social), coloca o trabalhador

preso como empregado para fins previdenciários67, realçando-se, assim, o vínculo

empregatício existente.

Logo, se sob diversos aspectos o trabalho exercido em cárcere é igual ao trabalho exercido em liberdade, não há motivo constitucionalmente adequado para a exclusão do preso dos direitos e garantias trabalhistas.

Conclui-se, assim, pela desconformidade da norma prevista no art. 28, §2º, da LEP com a Constituição Federal de 1988, uma vez que a ausência de regime de compensação, a exemplo de estatuto jurídico próprio, cria uma omissão legislativa que exclui os presos da proteção dos valores constitucionais.