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2 DIREITO À LIBERDADE E AUTONOMIA DA VONTADE

2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE

2.3.2 A liberdade como direito fundamental de face dupla

Baseada numa perspectiva histórica, a doutrina vem agrupando os direitos fundamentais em gerações de direitos, separando-os normalmente em três grupos, a exemplo da classificação ofertada por Paulo Gustavo Gonet Branco. Segundo esse autor, caracterizam-se como direitos de primeira geração os postulados de não intervenção do Estado na vida pessoal do indivíduo, situando-se nesse grupo, por conseguinte, as liberdades individuais; como direitos de segunda geração despontam os direitos sociais

como ideal da pessoa humana". BONAVIDES, op. cit., p. 580.

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SARLET, op. cit., p. 265.

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DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 41.

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O item 2.1 desta dissertação explicita o reconhecimento da liberdade como direito humano em diversas normas internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

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No item 2.4 deste trabalho, será detalhada a positivação do direito à liberdade na Constituição da República Federativa do Brasil.

(assistência, educação, saúde, trabalho, lazer, dentre outros), os quais exigem do Estado não mais uma postura de abstenção e, sim, de prestações positivas; por fim, apresentam-se como direitos de terceira geração os de titularidade difusa ou coletiva, como é o caso do direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente e à conservação do patrimônio histórico e cultural, dentre outros56.

Há autores, inclusive, que chegam a defender a existência de até cinco gerações de

direitos fundamentais, como é o caso, por exemplo, de Paulo Bonavides, segundo o qual são de primeira geração os direitos civis e os políticos; de segunda, são os direitos sociais, culturais, econômicos e os direitos coletivos; de terceira, por sua vez, são o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação; os direitos de quarta geração são o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo; e, por fim, desponta a paz como direito de quinta geração57.

Faz-se mister consignar que a doutrina pátria não é uníssona quanto à terminologia adequada para designar os vários grupos de direitos fundamentais. Como visto no parágrafo anterior, Paulo Bonavides faz uso do vocábulo gerações; Ingo Wolfgang Sarlet, por outro lado, considera fundadas as críticas dirigidas a esse termo, uma vez que se falar em gerações poderia ocasionar a falsa impressão de que uma geração seria substituída pela seguinte, razão pela qual ele se filia à corrente que prefere o uso do termo dimensões58.

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, por sua vez, compartilham, igualmente, da ideia de que a opção terminológica por gerações é problemática porque sugere a noção de substituição de cada geração pela posterior, ressaltando os autores que nunca houve a abolição dos direitos de uma geração pelos direitos da geração seguinte. Aduzem, ademais, que alguns direitos sociais, apontados como de segunda geração, já eram garantidos desde as primeiras Constituições e Declarações do Século XVIII – muito antes, portanto, da crise do Estado Liberal –, a exemplo da Constituição Francesa de 1791 que, dentre suas disposições fundamentais, incluiu o dever de assistência a crianças abandonadas e a indigentes e também o dever de criação de escolas públicas gratuitas do ensino fundamental59.

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, entretanto, entendem que o termo dimensões, embora seja preferível a gerações, também não é exato, posto que, normalmente, fala-se

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BRANCO, Teoria Geral..., op. cit., p. 137-138.

57

BONAVIDES, op. cit., p. 580-603.

58

SARLET, Teoria Geral..., op. cit., p. 272.

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em dimensões para apontar dois ou mais aspectos ou dimensões do mesmo elemento ou fenômeno, o que não se aplica aos vários grupos de direitos fundamentais, cujas finalidades e funcionamentos são fortemente distintos. Diante disso, recomendam os autores o uso dos termos categorias ou espécies de direitos fundamentais60. Ao agruparem essas categorias, dividem-nas em três: a primeira delas abarca os direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal, em que estão situados os direitos de liberdade; a segunda categoria engloba os direitos de status positivus ou sociais e a terceira categoria envolve os direitos de status activus ou políticos ou de participação61.

Cumpre mencionar que essa classificação fornecida por Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins também não se mostra perfeita, tendo em vista que ela se limita a categorizar os direitos sob uma perspectiva restrita, circunscrita a uma relação indivíduo/Estado. Fala-se, de acordo com tal classificação, que as liberdades são direitos de status negativus, baseando-se exclusivamente na expectativa de não intervenção do Estado nas relações privadas.

Paulo Roberto Barbosa Ramos assevera que o direito à liberdade é algo que vai além da ideia do indivíduo que não é importunado pelo Estado ou por seus semelhantes. Segundo o autor, ser livre é mais do que simplesmente não ser incomodado ou não dever satisfação a quem quer que seja62.

Nessa esteira, embora seja correto afirmar que as liberdades conferem ao indivíduo o direito de não sofrer intervenção por parte do Estado, tal observação não esgota a liberdade em toda a sua inteireza, tendo em vista que ela também outorga ao indivíduo o poder de agir conforme seus próprios desígnios, a capacidade de autodeterminação e a aptidão para escolher, transformar e decidir. Esse poder, como se percebe, é positivo, não se limitando a uma mera expectativa de abstenção.

Dito isso, pode-se asseverar que da liberdade projeta-se uma face fortemente positiva, marcada pela aptidão individual para conduzir seu destino, o que leva ao entendimento anunciado acima no sentido de que também a classificação ofertada por Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins mostra-se insuficiente.

Entende-se adequado, nessa perspectiva, considerar a liberdade como um direito que

ostenta uma dupla face, pois ao mesmo tempo em que cria para o Estado e para os particulares o dever de abstenção, concede ao indivíduo o direito de agir e conduzir seu

60

DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 24.

61

DIMOULIS; MARTINS, ibid: p. 50-53.

destino.

Não obstante toda essa discussão, há de se registrar que, mais proveitoso do que escolher a nomenclatura adequada a designar os diversos grupos de direitos fundamentais é enfatizar que os direitos das várias gerações, dimensões, categorias ou espécies se integraram aos ordenamentos jurídicos de forma cumulativa, significando que o incremento do catálogo de direitos fundamentais não afasta do rol os direitos de liberdade.

José Carlos Vieira de Andrade, a propósito, ressalta que a acumulação é uma das características do sistema de direitos fundamentais, esclarecendo que em cada momento histórico se enunciam novos direitos, próprios do seu respectivo tempo, os quais se somam aos direitos antigos, não acarretando uma sucessão mortis causa dos direitos novos aos velhos63.

Nesse mesmo sentido, esclarece Paulo Gustavo Gonet Branco que falar em gerações de direitos não importa dizer que o reconhecimento de novos direitos implica a suplantação daqueles anteriormente existentes, os quais permanecem válidos juntamente com os novos direitos reconhecidos64.

Levando-se em consideração o tema do estudo aqui desenvolvido, importa concluir que (1º) os direitos de liberdade foram sempre reportados, em quaisquer classificações, como direitos pertencentes ao primeiro grupo de direitos fundamentais – que abarca os direitos de primeira geração65, direitos de primeira dimensão66 ou direitos de status negativus67; (2º) os direitos pertencentes às gerações, dimensões ou categorias seguintes não minimizaram a relevância dos direitos de liberdade, os quais foram se consolidando e se universalizando ao longo do tempo, de modo que hoje não há

Constituição digna dessa designação que não os ostente em toda a sua vastidão68; e

(3º) considerando a insuficiência ou inexatidão das classificações antes apontadas, atribui-se à liberdade a característica de ser um direito de face dupla, posto que, ao mesmo tempo em que impõe ao Estado e aos demais particulares o dever de não interferir na

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VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004. p. 68.

64

BRANCO, Teoria Geral..., op. cit. p. 138.

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Bonavides, a propósito, afirma que os direitos da liberdade – direitos civis e políticos – são direitos de primeira geração, posto que foram os primeiros a serem positivados nos instrumentos normativos constitucionais. BONAVIDES, op. cit., p. 581-182.

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Sarlet aponta a liberdade como direito de primeira dimensão, constituindo direito de defesa que demarca um espaço de não intervenção do Estado na esfera de autonomia do indivíduo. SARLET, Teoria Geral..., op. cit., p. 274.

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Dimoulis e Martins classificam os direitos de liberdade como direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 50-53.

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esfera privada do indivíduo, cria para esse o direito de agir, conferindo uma aptidão positiva.

Essa caracterização da liberdade como direito de face dupla vai além da simples consideração da relação existente entre o titular do direito e o Estado. Ela leva em conta, igualmente, a aptidão de agir que esse direito confere ao indivíduo. Trata-se de direito, portanto, que, ao mesmo tempo em que impõe abstenções por parte do Estado e de terceiros, permite um agir, por parte do cidadão.

2.3.3 A vinculação do Estado e dos particulares aos direitos de liberdade – efeito