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4 ESTUDO DE CASO: PEDIDO DE ALVARÁ PARA SUPRIMENTO DA

4.1 DETALHAMENTO DO CASO

No dia 10 de abril do ano de 2013, o então Diretor-geral do Hospital Colônia Itapuã325 e uma das enfermeiras do mesmo estabelecimento hospitalar compareceram à 1ª Promotoria de Justiça Cível da Comarca de Viamão, oportunidade em que relataram perante a Promotora de Justiça titular a situação por que passava o Sr. JCF326, idoso com 78 anos de idade e usuário-morador daquele hospital. De acordo com o relatado, o idoso, que era ex-hanseniano, encontrava-se em processo de necrose no seu pé esquerdo, com indicação clínica de amputação do referido membro desde dezembro de 2012. O paciente, embora apresentasse emagrecimento progressivo e anemia acentuada resultante do direcionamento da corrente sanguínea para a lesão tumoral, recusava-se enfaticamente a se submeter à mutilação que lhe havia sido prescrita.

Ressaltaram os representantes do hospital que o pé do idoso apresentava um tumor que estava se proliferando, encontrava-se infectado, sangrava e apresentava possível infecção óssea, quadro que evidenciava risco de infecção generalizada (septicemia), o que poderia levar o idoso a óbito, havendo indicação clínica para amputação do referido membro.

Restou consignado, ademais, que o paciente encontrava-se em estado depressivo,

conforme laudo da psicóloga do hospital, a qual relatava que o paciente estava desistindo da própria vida, vislumbrando a morte como alívio para seu sofrimento. De acordo com a médica psiquiatra do mesmo hospital, o idoso era lúcido, não ostentando sinais de demência.

Diante da notícia da situação de risco, pela qual passava o idoso JCF, a douta titular

da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Viamão, RS, após lavrar atendimento327 no

âmbito do órgão ministerial, formulou, perante o Juiz plantonista da Comarca, na mesma noite em que teve conhecimento dos fatos, um pedido de alvará judicial para suprimento da

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O Hospital Colônia Itapuã é uma instituição hospitalar pública, localizada no Distrito de Itapuã, Município de Viamão, gerido pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul.

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Com o propósito de preservar a identidade do idoso, ele será denominado, neste trabalho, apenas com as iniciais JCF.

327

O atendimento formalizado no âmbito da Promotoria de Justiça da Comarca de Viamão recebeu o seguinte nº 00931.00028/2013.

vontade do idoso328.

No corpo de tal pedido, a Promotora de Justiça explicitou o quadro clínico em que se encontrava o idoso, conforme, aqui, esmiuçado anteriormente, enfatizando, ademais, que ele não autorizava a amputação de seu pé esquerdo, procedimento indispensável para evitar que ele fosse a óbito por infecção generalizada.

A representante do Ministério Público ressaltou, em sua petição, as observações formuladas pela psicóloga do hospital, conferindo ênfase ao estado depressivo em que se encontrava o idoso, que demonstrava estar desistindo da própria vida, vendo a morte como alívio do sofrimento. Mencionou, também, a observação feita pela mesma psicóloga no sentido de que o longevo necessitaria de acompanhamento interdisciplinar, incluindo apoio psiquiátrico, a fim de superar a amputação do membro, caso contrário entraria em sofrimento ainda maior. Para corroborar a argumentação de que se estava diante da situação de um idoso em depressão, mencionou a Promotora de Justiça que havia lançamentos no prontuário do longevo revelando que ele, por vezes, recusava-se a se alimentar, apresentava-se apático e exteriorizava o desejo de morrer.

Diante, portanto, da gravidade do quadro de saúde em que se encontrava o idoso,

corroborado com o fato de que esse último demonstrava estar em depressão, entendeu o órgão ministerial, por sua Promotora de Justiça, ser imperiosa a tutela da vida do longevo, que se encontrava, no momento, em iminente risco de morte.

Argumentou a representante do Ministério Público que se mostrava imperioso o

reconhecimento da prevalência do direito à vida, que, por ser indisponível e inviolável, deveria justificar o tratamento, mesmo se contrapondo ao desejo do paciente. Sustentou a Promotora de Justiça que a vida é o direito fundamental maior, cuja inviolabilidade é garantida constitucionalmente, devendo ser tutelado com primazia pelo Estado, a quem cabe o dever positivo de agir em busca da preservação da vida e salvação do ser humano.

Requereu o órgão ministerial, então, o suprimento da vontade do idoso e a consequente expedição de alvará ao Hospital Colônia Itapuã, autorizando a amputação do pé esquerdo do paciente.

A Promotoria de Justiça da Comarca de Viamão anexou à sua petição inicial cópia de atestado subscrito por médico, indicando ser necessária a amputação do pé do paciente,

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Em juízo, o processo recebeu o seguinte número Themis: 039/1.13.0003534-8 e o número CNJ: 0008110- 55.2013.8.21.0039. Foi distribuído para a 3ª Vara Cível da Comarca de Viamão, órgão de 1º grau do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, não tendo tramitado sob segredo de justiça. Informações sobre o andamento do feito podem ser obtidas através do seguinte endereço:

em razão de quadro clínico que revelava risco de infecção generalizada. Anexou, ainda, parte do prontuário do paciente, no qual estavam descritas as observações formuladas pela psicóloga do hospital, segundo a qual o paciente apresentava depressão afetiva, que estava desistindo da própria vida, vendo a morte como alívio do sofrimento. No mesmo prontuário anexado, consta a informação de que o paciente enfatiza seu desejo de não amputar seu pé esquerdo. Num outro trecho, há a anotação de que o paciente estava tranquilo e resignado em relação à morte e que afirmava que estava esperando que Deus o levasse.

Em 11 de abril de 2013, o Juiz de Direito plantonista apreciou o pedido formulado pelo Ministério Público, afirmando, de início, que o caso posto à apreciação não denotava urgência, tendo em vista que o processo de necrose já estava presente desde 2011. Asseverou, ademais, que os documentos anexados aos autos não demonstravam ter havido um exame minucioso do paciente por algum médico que o tenha acompanhado desde o início da patologia, sendo suficientes para demonstrar, apenas, a necessidade de amputação do pé do idoso diante do possível risco de infecção generalizada, sem se referirem a risco de morte iminente, capaz de ensejar o deferimento do alvará requerido. O Magistrado aduziu, ainda, que, embora a psicóloga tenha diagnosticado a depressão, apenas recomendou acompanhamento interdisciplinar para que o paciente pudesse suportar a perda do membro.

Por fim, ressaltou o Juiz de Direito que o paciente era pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência de eventuais consequências, não sendo cabível a interferência do Estado, ainda que, eventualmente, pudesse advir o resultado morte. Diante dessa argumentação, indeferiu o pedido de suprimento da vontade do idoso, formulado pelo Ministério Público.

Inconformada com a decisão proferida pelo juízo de 1ª Instância, a Promotoria de Justiça interpôs recurso de apelação329, com o propósito de obter do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul a reforma da decisão vergastada e a consequente autorização para a amputação do pé esquerdo do idoso JCF, mediante a expedição de alvará judicial.

Em suas razões de apelação, asseverou a representante do Ministério Público que o juízo sentenciante incorrera em erro, ao decidir pelo indeferimento do pedido de alvará. Para fundamentar sua alegação, a Promotoria de Justiça rememorou o quadro de saúde por que passava o paciente, já esmiuçado na petição inicial, ressaltando que havia para o idoso o risco iminente de morte, por infecção generalizada, acaso a amputação não fosse

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Junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o recurso de apelação recebeu o seguinte número: 70054988266 (N° CNJ: 022345379.2013.8.21.7000).

realizada.

Sustentou o órgão ministerial, ademais, que o idoso não revelava capacidade para decidir se submeter ou não ao procedimento cirúrgico, uma vez que apresentava quadro depressivo, ficando patente que o ancião estava desistindo da própria vida, vislumbrando na morte uma oportunidade para aliviar seu sofrimento. Anexou a apelante, juntamente com seu recurso de apelação, o prontuário médico do idoso (encaminhado ao Ministério Público após o ajuizamento da demanda), no qual restou consignado que o longevo encontrava-se em estado de depressão grave, sem condições mínimas de se autocuidar e de gerenciar sua própria vida.

Diante do mencionado quadro depressivo, reforçou a Promotoria o argumento de que seria premente a tutela do maior bem do ser humano – a vida –, revelando o dever positivo do Estado de agir com o propósito de preservá-la. Ressaltou, ainda, que, por ser a vida um bem indisponível e inviolável, o procedimento cirúrgico apto a salvar a vida do idoso deveria ser realizado, ainda que em desacordo com o desejo desse último. Pugnou, por fim, pelo conhecimento e provimento do recurso, a fim de que, reformando-se a sentença recorrida, fosse suprida a vontade do idoso, autorizando-se a amputação do seu pé esquerdo.

Chegando à 2ª instância do Judiciário gaúcho, após devidamente distribuídos, os autos foram remetidos à Procuradoria de Justiça, para opinamento, na qualidade de fiscal

da lei330, tendo o referido órgão do Ministério Público manifestado um entendimento

contrário ao esposado pelo órgão ministerial de 1ª instância.

De acordo com o parecer do Ministério Público de 2ª Instância, o idoso, que era considerado pessoa capaz, havia expressado que não desejava a amputação do seu pé, não podendo o Estado, por conseguinte, intervir na vontade do longevo, uma vez que inexistiam provas da ocorrência de vício na manifestação da vontade do idoso, mediante a qual ele se recusou a ser submetido ao tratamento recomendado pelos médicos.

Ressaltou a Procuradora de Justiça, nessa perspectiva, que, diante da presunção da capacidade jurídica do idoso331 que, de forma livre e consciente, afirmou não consentir com o procedimento cirúrgico que lhe fora prescrito, nada se podia fazer, sugerindo, ademais,

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O Código de Processo Civil vigente ao tempo do curso do processo ora sob investigação – Lei 5.869/1973 – previa, em seu art. 83, a intervenção do Ministério Público na qualidade de fiscal da lei. Já o novo CPC – Lei 13.105/2015 –, diferentemente, prevê, em seu art. 178, a intervenção do órgão ministerial como fiscal da ordem jurídica, expressão que abarca não apenas a lei em sentido estrito, mas, também, todo o ordenamento jurídico em vigor.

331

Acerca da capacidade civil da pessoa idosa, vale ressaltar o que foi exposto no item 3.2 desta dissertação, no qual se asseverou que a incapacidade não pode ser presumida pelo simples passar dos anos.

que, acaso se entendesse que o paciente não apresentava capacidade para decidir, deveria o órgão ministerial ter ajuizado uma ação de interdição. Aduziu, ainda, que, não obstante o fato de o paciente apresentar quadro depressivo, isso não significa que não tenha vontade livre e consciente para se opor ao tratamento, o qual, a propósito, é apenas indicado ao paciente, não podendo ser imposto.

Outrossim, asseverou a representante do Ministério Público oficiante no 2º grau de jurisdição que não havia, no caso, vontade a suprir, tendo em vista que o idoso manifestou livre e conscientemente a sua vontade. Consignou o parquet, ademais, que a amputação do pé do paciente, contra a vontade dele, significaria interferência do Estado no núcleo essencial do direito à liberdade.

A Procuradora de Justiça fez referência, ainda, a um precedente da Corte Constitucional espanhola, no qual restou consignado que as autoridades penitenciárias não poderiam impor alimentação a detentos em greve de fome. Autorizou a mencionada Corte, todavia, a aplicação da alimentação, quando os detentos estivessem em estado comatoso (em coma), pois em tal estado eles não poderiam recusar de forma livre e consciente a alimentação. Mutatis mutandis, entendeu a Procuradora que a amputação do pé do paciente só poderia ser realizada numa situação em que ele não tivesse condições de se manifestar livre e conscientemente acerca do procedimento. Diante das razões elencadas, opinou a Procuradoria de Justiça pelo improvimento do recurso a fim de que fosse mantida, por consequência, a decisão recorrida.

O Desembargador a quem foi incumbida a relatoria do recurso, após circunstanciar o feito, ressaltou, de início, a singularidade do caso posto à apreciação. Em seguida, trazendo à baila os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia, todos extraídos do Biodireito, tratou de apresentar as distinções entre cada uma das figuras.

Acerca da eutanásia, afirmou que ela também é chamada de boa morte, suicídio assistido, crime caritativo ou morte piedosa. Trata-se da morte solicitada, pelo paciente, ao médico ou a terceiro, com o escopo de evitar maiores sofrimentos e dores físicas ou psicológicas. Asseverou o relator, em seu voto, que a legislação brasileira não autoriza essa prática.

Quanto à ortotanásia, esclareceu que ela consiste na morte no seu tempo devido, sem prolongamento além do que seria natural. Tal conduta, ressaltou o Relator, é admitida pela legislação brasileira, não ficando o médico, por conseguinte, obrigado a submeter o paciente à distanásia para tentar salvar sua vida.

médica, é a conduta do profissional que entende que tudo deve ser feito, ainda que o tratamento seja inútil ou que cause sofrimento atroz ao paciente terminal. Mediante a distanásia, então, verifica-se um prolongamento do processo de morte.

Uma vez explicitados esses conceitos, cuidou o Desembargador Relator de situar o caso posto à apreciação como uma hipótese de ortotanásia, conduta, como dito, admissível pelo ordenamento jurídico pátrio.

Carreando fundamento religioso para seu voto, relembrou o Desembargador

Relator que o Papa João Paulo II, ao promulgar a Encíclica Evangelium Vitae332, em 1995, condenou a eutanásia e a distanásia, nada dizendo a respeito da ortotanásia, devendo esse fato ser interpretado como uma admissão implícita dessa conduta pela Igreja Católica.

Asseverou o mesmo Desembargador que, se o paciente recusa-se ao ato cirúrgico mutilatório, não pode o Estado invadir essa esfera e realizá-lo contra a sua vontade, ainda que o faça com o nobre propósito de salvar a vida do paciente.

Afirmou, outrossim, o caráter relativo do direito à vida, enfatizando inexistir obrigação constitucional de viver, tanto é que o Código Penal não criminaliza a tentativa de suicídio. Registrou, também, que a Constituição prescreveu o direito à vida e não o dever à vida, motivo pelo qual não é aceitável que o paciente seja obrigado a se submeter à cirurgia ou ao tratamento indesejado.

Amparando-se em entendimento doutrinário333, aduz que, estando o paciente

devidamente esclarecido, o desrespeito pelo médico à liberdade daquele que taxativamente recusou o tratamento sugerido pode caracterizar lesão corporal, cárcere privado ou constrangimento ilegal, a depender da situação.

Mais à frente, aduziu que a Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, previu a possibilidade de confecção do chamado Testamento Vital, mediante o qual o paciente, plenamente consciente, manifesta antecipadamente, ou seja, antes da fase crítica da doença, as terapias a que pretende ou não se submeter, devendo tal manifestação de vontade sobrepor-se à vontade dos parentes e dos médicos que o assistem.

Mencionou, também, o teor do art. 15 do Código Civil brasileiro, segundo o qual ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Argumentou que, apesar de o dispositivo proibir a intervenção cirúrgica, quando há risco de vida, isso não significa que, inexistindo tal risco, poderia o

332

Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp- ii_enc_25031995_evangelium-vitae.html>. Acesso em: 1º abr. 2016.

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O magistrado cita, em seu voto, doutrina de Thiago Vieira Bomtempo e de Roxana Cardoso Brasileiro Borges, não apresentando, precisamente, as respectivas fontes.

paciente ser constrangido a tratamento ou intervenção cirúrgica.

Ao final, após elogiar o empenho da Promotora de Justiça que subscreveu a inicial e o recurso, como também do profissional de saúde que assistia o idoso, deixou consignado que não se pode olvidar o fato de que a amputação pode ensejar um trauma, capaz de causar sofrimento moral, concluindo, diante disso, que a opção adotada pelo ancião não pode ser considerada desmotivada. Entendeu o Desembargador Relator que o idoso, ao fazer sua opção pela não submissão à cirurgia, produziu o seu testamento vital.

Diante de tudo que fora exposto, votou o Desembargador Relator pelo desprovimento da apelação interposta, tendo os demais Desembargadores que compunham a Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul votado no mesmo sentido do Relator, mantendo-se, por conseguinte, a sentença recorrida, que não autorizou a amputação do pé esquerdo do idoso. Acordaram os Desembargadores, então, à unanimidade, em desprover o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul334.

Após essa decisão colegiada, não houve a interposição de novos recursos, tendo se operado o trânsito em julgado da decisão, sendo os autos devolvidos à instância a quo para as providências de arquivamento de praxe.

Não tendo sido deferido o pedido de suprimento da vontade do idoso formulado em juízo, em 10 de abril de 2013, pela Promotora de Justiça da Comarca de Viamão, a cirurgia, por conseguinte, não foi realizada, tendo o longevo ido a óbito em 3 de agosto de 2013, antes mesmo da decisão final do processo, proferida pelo órgão colegiado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.