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2 DIREITO À LIBERDADE E AUTONOMIA DA VONTADE

2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE

2.3.5 Exercício de direito fundamental – direito ou dever?

Na seara dos direitos fundamentais, merece especial atenção a discussão acerca da obrigatoriedade ou não do exercício de um direito fundamental por seu respectivo titular. A fim de elucidar a questão, faz-se necessário observar, inicialmente, que o ordenamento jurídico brasileiro prevê, ao lado de direitos fundamentais, alguns direitos-deveres fundamentais. É o caso, por exemplo, do direito ao voto. O art. 14, § 1º, da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que conferiu o direito ao voto, estabeleceu a obrigatoriedade do seu exercício pelo cidadão alfabetizado, maior de dezoito anos e menor de setenta107. Não há, então, no que diz respeito a esse direito-dever, a faculdade de abstenção, na medida em que seus titulares têm a obrigação de exercê-lo.

Conforme Ingo Wolfgang Sarlet, mostra-se adequado o uso da opção terminológica direito-dever para se referir ao voto, tendo em vista que existe, ao mesmo tempo, de um lado o dever de se alistar, quando atendidos os requisitos para o alistamento obrigatório; o dever de comparecer à circunscrição eleitoral no dia da votação e o dever de assinar a ata de comparecimento, tudo isso sob pena de eventual sanção administrativa; e, de outro lado, há o direito de escolher livremente em quem votar, podendo, inclusive, anular o voto ou votar em branco108.

Levando-se em conta a opção constitucional feita no Brasil, em que se impingiu expressamente ao direito de votar o caráter de obrigatoriedade, pelo menos para um

107

CF/88: Art. 14, § 1º: "O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos".

108

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais em espécie. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel (Org.). Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 673.

determinado grupo de cidadãos, denota-se que o voto ostenta duas dimensões: uma de direito e outra de dever. Em razão disso, não tem o cidadão que se encaixa nos requisitos traçados pela Constituição a opção de exercê-lo ou não.

Diferentemente, quando não se estiver diante de um direito-dever, mas,

simplesmente, de um direito, não pode o seu titular ser obrigado a exercê-lo. De acordo com Irineu Strenger, quando os direitos não se revelam também como deveres, a liberdade jurídica faculta ao sujeito a possibilidade de exercitá-los ou não109. É importante observar, então, que, não se tratando de direito-dever, o direito fundamental confere a seu titular não apenas a possibilidade de um exercício positivo, mas também, igualmente, do exercício negativo, que se opera com sua abstenção. Nesse sentido, a imposição do exercício de um direito fundamental àquele que não é obrigado a exercê-lo implica, igualmente, violação a direito fundamental.

Ampla controvérsia, entretanto, gira em torno de se elucidar se o direito à vida também compreende um aspecto negativo, conferindo a seu titular a possibilidade de se abster de viver. Essa discussão se mostra oportuna, na seara desta dissertação, tendo em vista que, muitas vezes, o Estado, ou mesmo a família de determinado idoso, age com o propósito de impor a esse último o exercício positivo do direito à vida, suprimindo, por consequência, o seu direito à liberdade.

Há quem sustente, nessa perspectiva, a supremacia do direito à vida sobre o direito à liberdade.

Paulo Gustavo Gonet Branco, por exemplo, sustenta que não faz sentido algum declarar qualquer direito sem, antes, assegurar o direito de estar vivo para poder usufruí-lo. Nessa perspectiva, assevera o autor que o direito à vida é superior a qualquer outro interesse110 e, que, sendo um direito, e não uma liberdade, inexiste a opção por não viver, de modo que aos poderes públicos incumbe o dever de agir para salvar a vida do indivíduo, apesar da vontade em contrário do seu respectivo titular111.

Por outro lado, entendimento diferente ostenta Ingo Wolfgang Sarlet, segundo o qual, em deferência ao princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade individual, não se pode deixar de reconhecer o direito de morrer com dignidade, pois, do contrário, o

109

STRENGER, Irineu. A autonomia da vontade como suporte do sistema civilista e direito internacional privado e direito interno. Boletim Científico. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, ano III, n. 10, jan./mar. de 2004.

110

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais em Espécie. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 255.

111

direito à vida teria se transformado no dever de viver sob qualquer condição112.

Segundo Leonardo Martins, o direito à vida abarca o direito à cessação voluntária

da própria vida113. A propósito, o desrespeito do direito fundamental à vida, em sua

significação de liberdade negativa (exercício negativo), caracteriza-se, na visão de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, como uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que desconsidera a qualidade de pessoa do sujeito de direitos, tratando-o como simples objeto114.

Analisando-se, então, o arcabouço jurídico brasileiro, pode-se inferir que toda

pessoa tem o direito de morrer, tendo em vista que

1º) a Constituição Federal prescreveu o direito à vida, sem fixar, por seu turno, a obrigação de viver115;

2º) o Código Penal não criminalizou a conduta de tentativa de suicídio; e

3º) a Carta Maior previu um direito geral de liberdade, cujos contornos serão especificados no item 2.4 desta dissertação.

De fato, observando-se o teor do art. 5º, caput, da Carta Magna, constata-se que, ao ser estatuída a garantia do direito à vida, não foi imposta a obrigação de viver. É o direito à vida, portanto, um direito fundamental e não um direito-dever fundamental, podendo seu titular, por conseguinte, abster-se de exercê-lo.

Na sequência, analisando-se o tratamento jurídico dado no Brasil à questão do suicídio, cumpre observar, em primeiro lugar, que o Código Penal brasileiro116, no capítulo dedicado a tipificar os crimes contra a vida, descreveu, ao lado do homicídio simples (art. 121, caput), do homicídio qualificado (art. 121,§2º), do feminicídio (art. 121,§2º, VI), do homicídio culposo (art. 121,§3º), do infanticídio (art. 123), e do aborto provocado pela gestante (art. 124) ou por terceiro (art. 125), o crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122).

Nos exatos termos do art. 122, do Código Penal, constitui crime induzir ou instigar alguém a se suicidar ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Para esse crime, é prevista uma

112

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais... op. cit., p. 383.

113

MARTINS, Leonardo. Bioética à luz da liberdade científica: estudo de caso baseado na decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança e no Direito Comparado alemão. São Paulo: Atlas, 2014. p. 91.

114

DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 139.

115

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes..."

116

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 fev. 2016.

pena de dois a seis anos de reclusão, se o suicídio se consumar; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resultar lesão corporal de natureza grave. A pena será duplicada, se o crime é praticado por motivo egoístico, ou se a vítima é menor, ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. Como se pode observar, só pode ser sujeito ativo desse crime alguém que induz, instiga ou presta auxílio a outrem para que cometa o suicídio. Aquele que tenta contra a própria vida não comete crime algum.

Poder-se-ia argumentar que o Código Penal deixou de descrever como crime a conduta de quem comete o suicídio pelo fato de que, diante da morte do seu autor, restaria extinta a punibilidade, nos termos do art. 107117, do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Entretanto, tal argumento não procede, posto que sequer a tentativa de suicídio foi elencada como figura típica, hipótese em que, não havendo a morte do seu autor, não se caracterizaria hipótese de extinção da punibilidade.

Infere-se, nesse diapasão, que a não criminalização da tentativa de suicídio resultou de uma política de observância do princípio da alteridade no direito penal, em razão do qual resta vedada a incriminação de condutas que não ofendam nem ponham em risco bens jurídicos de terceiros ou da coletividade.

Mister observar, ademais, que essa opção pela não criminalização do suicídio

encontra-se em harmonia tanto com a Constituição de 1934, vigente quando da entrada em vigor do atual Código Penal, como com a Constituição em vigor nos dias de hoje – Constituição de 1988 –, visto que ambas prescreveram o direito à liberdade e ressaltaram que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. Assim, considerando que inexiste lei, tampouco norma constitucional que obrigue o indivíduo a viver, pode-se concluir que a decisão pela não criminalização da tentativa de suicídio encontra respaldo constitucional.

Todas essas observações, referentes à não criminalização da tentativa do suicídio, foram explicitadas com o escopo único de demonstrar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a vida não é considerada um dever imposto a seu titular ou um valor que estaria acima de qualquer outro, sendo possível inferir, por conseguinte, que inclusive o exercício do direito à vida se sujeita à liberdade do seu respectivo titular.

117

2.4 A TUTELA DA LIBERDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO