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2 DIREITO À LIBERDADE E AUTONOMIA DA VONTADE

3.4 A PROTEÇÃO INTEGRAL DA PESSOA IDOSA E A GARANTIA DE SUA

3.4.6 Proteção da pessoa idosa versus resguardo de sua autonomia

igualdade de condições com as demais pessoas, de modo que não se veja obrigado a viver de acordo com um sistema de vida específico309.

Por conseguinte, infere-se que, também no ordenamento jurídico internacional, há

normas que protegem a pessoa idosa quanto às investidas de terceiros voltadas ao aviltamento da sua vontade.

3.4.6 Proteção da pessoa idosa versus resguardo de sua autonomia

A velhice é um estágio da existência em que ocorre, via de regra, o decréscimo de

algumas habilidades e a fragilização do corpo. Tais circunstâncias compelem os demais membros da comunidade ao entendimento de que as pessoas que se encontram nessa etapa da vida necessitam de uma especial proteção.

Não se pode olvidar, todavia, que a velhice não é igual para todos, havendo pessoas idosas em situação de muito maior vulnerabilidade que outras que contam com a mesma idade cronológica. A assertiva de que esse estágio de vida varia de pessoa para pessoa torna-se relevante para o entendimento de que a proteção a ser conferida a cada uma delas deve levar em consideração as especificidades individuais.

Deve-se ter em mente, sempre, a ideia de que, eventualmente, "proteção desprotege310", especialmente quando, sob o pretexto de se amparar a pessoa idosa, dessa forem suprimidos direitos essenciais a uma existência digna.

Dito isso, um desafio emerge das águas turvas da doutrina da proteção integral:

como manter preservada a autonomia da pessoa idosa e, ao mesmo tempo, conferir-lhe proteção integral?

A primeira observação a ser feita, com o escopo de lançar luzes sobre a aparente

antinomia, é a de que a proteção integral a que faz jus a pessoa idosa não admite, tampouco pressupõe, o aniquilamento da sua capacidade civil. Embora ao idoso seja conferido o direito de receber proteção integral, isso nem de longe significa que ele transmite a seu eventual protetor a gerência de sua vida.

Quando o art. 2º da Lei 10.741/2003 dispõe que o idoso goza de todos os direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata

309

Art. 7º, da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos.

310

A expressão "proteção desprotege" foi utilizada na composição da música Filho Único, de autoria de Erasmo Carlos e Roberto Carlos, que enfatiza a insatisfação de um filho com a desmedida ingerência de uma mãe obstinada a "parir" o destino do filho. Letra da música disponível em <http://www.vagalume.com.br/erasmo-carlos/filho-unico.html>. Acesso em: 24 dez. 2015.

essa lei, deixa clara a necessidade de promoção de um diálogo harmonioso entre a prescrição legal de oferta de uma proteção integral e o exercício de direitos fundamentais que, de modo algum, podem ser vilipendiados.

A proteção integral, nessa perspectiva, só pode ser compreendida como a disponibilização de atenção e serviços diferenciados, compatíveis com as condições biopsicossociais da pessoa idosa, não se podendo dela supor que se trata de uma autorização legislativa para aviltamento da liberdade individual do longevo.

Aliás, conforme a literalidade do art. 2º do Estatuto do Idoso – dispositivo que

previu a proteção integral em favor da pessoa idosa –, todas as oportunidades e facilidades a serem disponibilizadas devem ser oferecidas em condições de liberdade e dignidade311. Esse dispositivo, então, ao prever uma proteção integral à pessoa idosa, não olvidou a necessidade de respeito ao direito fundamental à liberdade.

Há, no Estatuto do Idoso, entretanto, um dispositivo, cuja interpretação merece

especial comedimento. Refere-se, aqui, ao art. 43312 da Lei 10.741/2003, o qual estabelece que as medidas de proteção ao idoso são aplicáveis quando os direitos reconhecidos naquela lei forem ameaçados ou violados pela ação ou omissão da sociedade ou do Estado; pela falta, omissão ou abuso da família, do curador ou da entidade de atendimento ou, como terceira hipótese, em razão da condição pessoal do idoso.

Nessa terceira hipótese de aplicação de medida de proteção – em razão da condição

pessoal do idoso –, inserem-se as situações em que ele próprio, pela sua conduta pessoal, ameaça ou viola sua saúde ou segurança, por exemplo. Essa previsão de cominação de medida de proteção em favor do idoso, cujos direitos são ameaçados ou violados por ele próprio, demanda um debate por demais interessante. Como visto, a redação do dispositivo, que não excetuou dessa tutela o idoso lúcido, sugere, à primeira vista, que, se o idoso se coloca em situação de risco, ser-lhe-á aplicada medida de proteção, independentemente do seu discernimento.

Tal dispositivo, entretanto, não pode ser analisado isoladamente, sendo imperativa, nesse caso, sua interpretação sistemática, ou seja, ele deve ser examinado no contexto dos demais dispositivos da mesma lei na qual está inserido, bem como observando outras

311

"Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade".

312

"Art. 43. As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento; III – em razão de sua condição pessoal".

normas que guardem pertinência com a matéria. Deve considerar, por conseguinte, que o idoso tem direito à liberdade, conforme preconizado nos arts. 2º, 3º e 10 da mesma lei, bem como de acordo com o art. 5º, caput, da Constituição Federal.

Nessa perspectiva, considerando que a pessoa idosa tem a liberdade de conduzir a

sua vida como bem lhe aprouver, desde que não ofenda direitos de terceiros ou da coletividade, é possível que, em determinadas situações, ele se coloque em situação de risco, praticando, por exemplo, a autonegligência.

A autonegligência313 é a atitude da pessoa que ameaça sua própria saúde ou

segurança ao se recusar a ter cuidados consigo mesma. Nesse caso, não se trata de hipótese de violência praticada por terceiro, mas de situação em que a própria pessoa idosa maltrata-se.

Em circunstâncias tais, mostra-se imperioso aferir se a autonegligência não é a

manifestação de alguma patologia, que retirou do idoso o entendimento acerca dos cuidados que deve ter em relação a si mesmo. Restando afastada qualquer dúvida sobre a incapacidade mental do idoso, mostra-se juridicamente inviável a aplicação de medida de proteção em favor de idoso lúcido que se coloca, e apenas a si próprio, em situação de risco, isso porque a aplicação de tal medida implicaria a violação da liberdade individual do idoso.

Dito isso, pode-se concluir que, na hipótese de o idoso lúcido apresentar um comportamento autonegligente, que não ofenda, tampouco ameace direitos de terceiros, não se pode aplicar em seu favor medida de proteção, sob pena de, a pretexto de resguardar a saúde ou a segurança do longevo, violar sua autonomia.

A propósito, vale observar que o art. 43 do Estatuto do Idoso ostenta teor praticamente idêntico ao do art. 98314 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto, há de se consignar que o legislador de 2003, ao delinear o capítulo I, do título III, do Estatuto do Idoso, incorreu em um equívoco, ao desconsiderar que os sujeitos de direitos a quem se pretendia proteger são consideravelmente diversos daqueles sob a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente. As pessoas idosas, diferentemente das crianças e dos adolescentes, são, via de regra, absolutamente capazes, não se mostrando adequado tutelar

313

A autonegligência é um dos tipos de violência praticados contra a pessoa idosa, listada num rol que abarca também a violência física, a sexual, a psicológica, a financeira, o abandono e a negligência. Disponível em: <http://midia.pgr.mpf.gov.br/pfdc/15dejunho/tipos-violencia.htm>. Acesso em: 08 fev. 2016.

314

"Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta." Disponível em:

um idoso do mesmo modo que se tutela uma pessoa absolutamente incapaz.

Revela-se o Estatuto do Idoso, nesse ponto, como uma cópia malfeita do Estatuto da

Criança e do Adolescente, posto que, ao conceber o cenário de proteção à pessoa idosa, replicou um modelo de proteção delineado para crianças e adolescentes - pessoas absoluta ou relativamente incapazes.

Nessa perspectiva, conferindo-se ao art. 43, inciso III, do Estatuto do Idoso, uma

interpretação conforme a Constituição, pode-se inferir que ele é válido, desde que a medida de proteção não seja aplicada ao arrepio da vontade da pessoa idosa.

3.5 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DIANTE DA AUTONOMIA DA