• Nenhum resultado encontrado

A liberdade de expressão no sistema constitucional norte-americano: a Primeira

4 O CONFRONTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DISCURSO DO

4.1 A liberdade de expressão no sistema constitucional norte-americano: a Primeira

Antes da independência, quando os Estados Unidos eram apenas uma colônia, havia pouco espaço para a discordância de opiniões. Os nativos ingleses saíam de seu país para encontrar liberdade religiosa, mas os puritanos não estendiam a tolerância aos outros da colônia. O contexto de repressão fomentou revoltas e culminou na independência. Antes, porém, o estado da Virgínia já havia promovido a liberdade de imprensa, ainda no contexto colonial, em 1776. A Constituição norte-americana foi elaborada em 1787. Ela não continha uma carta de direitos: não havia garantia à liberdade de expressão ou de imprensa. Tendo em vista a necessidade do reconhecimento dos direitos mais básicos, temidos por alguns dos elaboradores da Constituição, criaram-se as emendas. A Primeira Emenda foi adicionada em 1791. Registra-se que foi a primeira aprovada, mas não a primeira proposta: ela foi a terceira, as outras duas haviam sido rejeitadas (LEWIS, 2011).

Anthony Lewis (2011) acentua que, embora tenha sido reconhecida em 1791, a liberdade de expressão somente veio a ser defendida em 1919 pela Suprema Corte – em um voto vencido, registre-se. Durante esse lapso, a Suprema Corte não entendia como relevantes as questões acerca da liberdade de expressão, geralmente tais questões eram rejeitadas. Repreendiam-se expressões que tivessem um conteúdo nocivo (aos conservadores). Nesse sentido, havia o entendimento de que a Primeira Emenda obrigava apenas o Congresso, os Estados deveriam proteger a liberdade de expressão de forma própria. Os particulares não se

vinculavam a ela, a exemplo dos patrões que restringiam a liberdade de expressão dos seus empregados (MEYER-PFLUG, 2009).O caso Schenk vs. United States foi de grande relevo no caminho da mudança desse paradigma.

No contexto da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, em 1917, foi editada a Lei de Espionagem, de cunho nacionalista. Em síntese, essa lei proibia críticas ao governo e à guerra. No caso Sheck vs. United States, os acusados distribuíram panfletos comparando o recrutamento militar com a escravidão. No seu voto, que confirmou a condenação dos acusados, o ministro Oliver Wendell Holmes reconheceu a possibilidade da liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda não ser limitada a restrições prévias. Contudo, admitiu que em algumas situações a expressão poderia ser punida, dizendo que a proteção à liberdade de expressão não abarcaria um homem que gritasse falsamente “fogo!” em um teatro lotado, causando pânico em todos. A fórmula sugerida por Holmes para solucionar quando uma expressão pode ser punida ou não consistia em analisar se as palavras utilizadas têm o condão de criar um perigo claro e presente de ocasionar males (LEWIS, 2011). Essa fórmula foi utilizada pela jurisprudência norte-americana nas décadas seguintes e tem sido estudada pela doutrina, sendo essencial para a compreensão do significado da liberdade de expressão naquele país.

Dois outros casos – Frohwerk vs. United States e Debs vs. United States – foram julgados na mesma época, nos quais Holmes votou a favor da condenação dos réus com base na Lei de Espionagem. Contudo, meses após e ainda no ano de 1919, o voto divergente do ministro Holmes no caso Abrams vs. United States representou um importante marco no que diz respeito à interpretação Primeira Emenda. Quatro radicais, refugiados da Rússia, arremessaram panfletos do topo de um edifício em Nova York, na tentativa de convocar uma greve geral e criticar a intervenção do presidente Woodrow Wilson no sentido de enviar soldados americanos com destino à Rússia. A Lei de Espionagem foi utilizada para condenar os acusados, condenação ratificada pela Suprema Corte. Holmes discordou da condenação e o seu voto divergente defendeu que a punição no caso Abrams era um equívoco (LEWIS, 2011).

Holmes acrescentou iminente e imediatamente ao perigo claro e presente. Defendeu que os folhetos jogados pelos acusados não representavam perigo (imediato) algum, de modo que suas opiniões não significavam ameaça ao sucesso das forças do governo. Os réus tinham o direito de publicar esses panfletos, assim como o governo estadunidense tinha o direito de

publicar sua Constituição. Tal voto contrariou o que Holmes antes defendia na Suprema Corte. Entretanto, a garantia constitucional ainda não seria conferida à liberdade de expressão na década seguinte, como no caso United States vs. Schwimmer, em que o ministro Holmes mais uma vez defendeu a liberdade de expressão em um voto vencido. Só a partir dos anos 30 essa garantia conheceu o início de sua construção. O ministro da Suprema Corte Charles Evans Hughes, em 1931, no voto da maioria no caso Stromberg vs .California, reconheceu que a liberdade de expressão era um valor fundamental para os americanos, e que repressões com base em um suporte vago deveriam ser rechaçadas. O discurso simbólico, inclusive, tem sido protegido pela Primeira Emenda: em 1989, no caso Texas vs. Johnson, a Suprema Corte tornou inválida a condenação pela queima da bandeira norte-americana em uma manifestação de cunho político (LEWIS, 2011).

O sistema americano resguarda a liberdade instrumental, que é compreendida como uma forma de proporcionar guarida à democracia e à pluralidade política, até mesmo contra o totalitarismo (MEYER-PFLUG, 2009). Nesse sentido, uma importante decisão a respeito do tema é a do caso New York Times vs. Sullivan, que a Suprema Corte votou em 1964. Ronald Dworkin (2006) acentua que, mesmo entre as democracias, os Estados Unidos distinguem-se pelo amplo nível de proteção conferido à liberdade de expressão e de imprensa, destacando o referido caso. A liberdade instrumental foi protegida no caso Sullivan, reconhecendo-se que a Primeira Emenda obsta a responsabilização da imprensa por difamar o Estado (MEYER- PFLUG, 2009). Com base na Primeira Emenda, servidores públicos e ocupantes de cargos públicos não podem ganhar ações contra a imprensa. Para que se consiga penalizar a imprensa, deve-se provar que a acusação feita contra o servidor em questão era inverídica e lesiva, além de provar que o jornalista ou o órgão que fez essa acusação agiu de má-fé, com malícia, e não cometendo apenas um erro. Esse ônus de prova foi exigência conferida apenas ao Estado em abstrato, não aos particulares. Tal decisão propiciou a criação de um ambiente onde a imprensa critica livremente os ocupantes de cargos públicos (DWORKIN, 2006).

Atualmente, os Estados Unidos valorizam a liberdade de expressão como a maior e primeira grande liberdade, apesar de estar contida na Primeira Emenda por um acidente histórico. A liberdade de expressão encontra-se presente na mente e no coração dos americanos e é amplamente protegida pela Suprema Corte. A liberdade de expressão resume o espírito americano. A história dessa proteção teve seu primeiro grande avanço traçado no período da Primeira Guerra Mundial e hoje é perpetuada de modo que os cidadãos norte- americanos são capazes de pensar e expressar seus pensamentos sem temerem consequências

(EBERLE, 2002). O sistema de proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos é complicado. Podem ser aceitas restrições referentes ao lugar, ao tempo e à forma do discurso, mas repudiam-se limitações com base no conteúdo da manifestação. As opiniões e os pontos de vista são defendidos na sociedade norte-americana (SARMENTO, 2006).

Viu-se que a jurisprudência da Suprema Corte ampliou e fortaleceu a proteção da liberdade de expressão a partir do século passado, sendo o direito fundamental mais prestigiado e protegido naquele país, ocupando posição preferencial. Atribui-se, inclusive, maior peso a ela que a outros direitos, como igualdade, reputação e privacidade. A Primeira Emenda é interpretada sob a visão libertária (SARMENTO, 2007). Os Estados Unidos se comprometem com a liberdade de expressão, apostando que, futuramente, ela trará mais benefícios que o oposto. O Estado não tem o condão de agir para proibir manifestações de acordo com o seu conteúdo. Entende-se que quando o Estado proíbe expressões sociais, age tão gravemente como se estivesse proibindo manifestações dotadas de caráter político (DWORKIN, 2006).