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O tratamento do hate speech nos Estados Unidos

4 O CONFRONTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DISCURSO DO

4.2 O tratamento do hate speech nos Estados Unidos

Os americanos entendem o discurso do ódio como um modo de discurso, não como uma forma de conduta (BRUGGER, 2007). Os Estados Unidos distinguem-se no que diz respeito à maneira que tratam o discurso do ódio, de forma oposta ao tratamento que a fala odiosa recebe na maioria das sociedades ocidentais, inclusive no seu vizinho Canadá (LEWIS, 2011). A Suprema Corte nem sempre protegeu esse tipo de discurso, contudo. Kevin Saunders (2003), ao abordar o tema, lembra que no passado a ideia da jurisprudência norte-americana impor limites ao racismo e a outras variações do discurso do ódio parecia promissora. O caso

Beauharnais vs. Illinois, de 1952, foi um claro exemplo. Nesse caso, discutia-se acerca de um

cidadão americano que havia distribuído panfletos em Chicago, repudiando a miscigenação racial, culpando os negros pela violência no país e ainda convocando pessoas brancas para se unirem contra os negros. A condenação teve como base uma lei estadual que tornava ilegal o que foi chamado de group libel, a difamação de um grupo.

A Suprema Corte validou a referida lei, declarando-a constitucional. A Corte afirmou que a difamação, a obscenidade e as fighting words não estão protegidas pela liberdade de expressão resguardada na Primeira Emenda. Fighting words são palavras que tendem a causar danos ou instigar a violência imediata, ainda causando atos de violência praticados pelas

pessoas às quais as mensagens são destinadas (SAUNDERS, 2003). Em 1969, porém, esse posicionamento foi abandonado. Brandemburg vs. Ohio marcou essa virada jurisprudencial da Suprema Corte. Brandemburg, um dos líderes da Ku Klux Klan no Estado de Ohio, fora condenado pela prática de apologia ao crime. Brandemburg organizara um evento dessa entidade, oportunidade em que convidou uma repórter para transmitir ao público, através da televisão, esse encontro. Pessoas utilizando um capuz queimaram cruzes, declamaram palavras contra os negros e os judeus. O acusado utilizou-se da transmissão para dizer que os negros deveriam ser devolvidos para a África e os judeus para Israel (SARMENTO, 2006).

Brandemburg ainda ameaçou o Presidente, o Congresso e a Suprema Corte. Afirmou que se eles continuassem a prejudicar os caucasianos, a Ku Klux Klan tentaria uma vingança. A Suprema Corte, ao analisar o caso, invalidou a condenação de Brandemburg, declarou que a punição de ideias era completamente incompatível com a Primeira Emenda. A Corte entendeu que a defesa de ideias racistas era albergada pela liberdade de expressão, ao passo que o estímulo à violência não é permitido. O caso Skokie foi ainda mais simbólico. O Partido Nacional-Socialista da América organizou uma passeata com indivíduos trajando uniformes nazistas e carregando bandeiras com suásticas. A manifestação ocorreria no município de Skokie, onde dos 70.000 habitantes, 40.000 eram judeus e 5.000 sobreviventes do Holocausto. O munícipio tentou impedir a manifestação por meio da via judicial, não obtendo êxito. Ainda tentou obstar a passeata editando normas que dificultariam o evento, que foram declaradas inconstitucionais por violarem a liberdade de expressão (SARMENTO, 2006).

Apesar da vitória, os neonazistas não realizaram a passeata em Skokie. O evento aconteceu em Chicago, com a ajuda de escolta policial para que ataques por parte da população fossem dificultados. Merece destaque a posição que a Suprema Corte tomou em 1992, desconsiderando, inclusive, a doutrina das fighting words. Neste caso, R.AV. vs. City of

St. Paul, alguns jovens atearam fogo em uma cruz – chamas em um crucifixo é o símbolo da

Ku Klux Klan – após invadirem um quintal de afrodescendentes. Uma lei local estabelecia que essa conduta era um crime motivado por preconceito, de forma que os acusados foram condenados. A Corte invalidou a condenação estadual, declarando a lei local inconstitucional, alegando que essa legislação atingia apenas fighting words relacionadas ao preconceito racial, religioso ou de gênero. Afirmaram que quaisquer outras fighting words que não estivessem descritas nessa lei poderiam ser utilizadas à vontade, e a proibição deveria ser isonômica (SARMENTO, 2006).

Por duas décadas (1980 e 1990), houve uma tentativa de repelir o discurso do ódio nas universidades americanas. Indivíduos de grupos minoritários tentaram abolir o discurso racista com fundamento nos traumas que ele causa em suas vítimas. Professores e alunos recomendaram o uso de códigos de discurso, punindo aqueles que transgredissem esses códigos. Essa empreitada contra o discurso do ódio não foi inócua, várias universidades adotaram o uso dos códigos. Em contrapartida, a ideia original de combater comentários contra raças foi adotada e ampliada, aumentaram-se os números de características cujos discursos ofensivos contra elas eram proibidos, como idade, estado civil, condição de veterano. Esse esforço de controlar o discurso nas universidades começou a ser entendido pelos tribunais como censura, que declararam os códigos inconstitucionais (LEWIS, 2011).

O último caso de hate speech na jurisprudência norte-americana a ser abordado foi julgado em 2003. Trata-se do caso Virginia vs. Black et al. A Suprema Corte defendeu uma lei do Estado da Virgínia, lei essa que tornava crime a queima de cruzes que tinha como fito intimidar indivíduos ou grupos. Três pessoas foram condenadas com fundamento nessa lei, que foi declarada inconstitucional pela Corte do Estado da Virgínia, anulando as condenações. A Suprema Corte reverteu a decisão, alegando que a defesa de ideias racistas não pode ser punida, ao contrário dos atos de ameaça, que podem ser punidos. Essa decisão contrariou a do caso R.AV. vs. City of St. Paul. A Corte entendeu que, de modo diferente ao que acontecera em St. Paul, a lei em questão penalizaria quem agisse contra qualquer pessoa ou qualquer grupo (SARMENTO, 2006).

Os americanos acreditam que o único remédio para maus conselhos são bons conselhos. O hate speech só é combatido nos Estados Unidos quando há o intuito de cometer atos de violência e de violação da lei, devendo ainda haver a possibilidade de esses atos ocorrerem iminentemente (LEWIS, 2011). A jurisprudência permite a defesa e a propagação de ideias racistas e radicais. É certo que as fighting words são combatidas, mas são repelidas com o objetivo de assegurar a ordem e a paz pública, em detrimento de qualquer tutela ao direito das vítimas (SARMENTO, 2006). Nesse sentido, o discurso do ódio é protegido pelo sistema americano, é garantido pela liberdade de expressão. As ideias recebem amparos, só encontram restrições quando podem ocasionar atos ilegais (imediatos). A Corte acredita que o discurso do ódio pode ser combatido com mais liberdade de expressão, não com a sua supressão (MEYER-PFLUG, 2009).

Nota-se que o princípio da igualdade, garantido pela Décima Quarta Emenda, não obteve destaque algum na jurisprudência norte-americana sobre o tema em análise. A discriminação racial, presente na história dos Estados Unidos, é ignorada pela Suprema Corte, que não viabiliza a igualdade racial. O constitucionalismo norte-americano e a cultura estadunidense atribuem maior valor à liberdade que à igualdade. O Estado é visto como inimigo, como alvo de desconfiança. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais também não recebe destaque no âmbito jurídico americano. O Direito americano, de forma contrária ao que a maioria das constituições ocidentais atuais preconiza, segue a linha de que os princípios e os direitos constitucionais obrigam o Estado, ignorando os particulares. O racismo e o preconceito perpetrados por parte do Estado e dos seus agentes públicos, por exemplo, violariam a Constituição (SARMENTO, 2006).