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A LIBERDADE A PARTIR DE 1888 E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA OS

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1. A LIBERDADE COMO CONTEXTO DA GÊNESE DO SERTÃO DO

1.3 A LIBERDADE A PARTIR DE 1888 E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA OS

Diante do que se expôs até aqui como breves recortes de fatos históricos, convém reafirmar que a conquista da almejada liberdade por parte do escravo jamais pode ser pintada em tons róseos, visto que a simples promulgação da lei de 1888 que o livrava das algemas significou apenas um passo a mais no longo processo que se desenvolvia no decorrer das décadas e mesmo séculos que o precederam. Calheiros e Stactler (2010, p. 136) mencionam em seus estudos que, ainda em 1850, quando os homens ligados ao poder escravizador perceberam que os rumos da abolição eram inevitáveis, criaram a Lei n. 601, instituindo “a propriedade privada como única forma de acesso a terra, impedindo esse direito a negros e mulatos”.

Décadas mais tarde as famílias que se juntaram no Sertão do Valongo desconheciam todo esse contexto, mas estavam, sem o saberem, presos a essas amarras institucionais. Porém, mais que isso, iniciavam ali uma trajetória que os conduziria a algo muitas vezes

maior que o estreito horizonte que vislumbravam enquanto se instalavam nas terras úmidas e indesejadas daquela região. E a partir daquele micro território experimentariam a vivência da liberdade numa terra que era sua.

As pesquisas e observações feitas por Florestan Fernandes se constituem em um grande acervo de informações relevantes e auxiliam as pesquisas do presente, no sentido de desmistificar muitos conceitos que são, na verdade, distorções da história. Nos anos que se sucederam à Lei Áurea, os negros foram, via de regra, transformados em ‘párias’ da sociedade. Para Fernandes (2007, p. 66):

Na verdade, a abolição constitui um episódio decisivo de uma revolução social feita pelo branco e para o branco. Saído do regime servil sem condições para se adaptar rapidamente ao sistema de trabalho, à economia urbano-comercial e à modernização, o ‘homem de cor’ viu-se duplamente espoliado. Primeiro, porque o ex-agente de trabalho escravo não recebeu nenhuma indenização, garantia ou assistência; segundo, repentinamente, em competição com o branco em ocupações que eram degradadas ou repelidas anteriormente, sem ter meios para enfrentar ou repelir essa forma mais sutil de despojamento social.

É deveras importante essa reconfiguração, segundo a qual a revolução foi levada a efeito “pelo branco e para o branco”. Para ele: “A abolição ocorreu em condições que foram verdadeiramente ‘espoliativas’, do ponto de vista da situação de interesse dos negros. Eles perderam o único ponto de referências que os associava ativamente à nossa economia e à nossa vida social” (idem, 2007, p. 56). Doravante, massas imensas de escravos recém-libertos teriam que encontrar seu novo espaço na sociedade e esse é apenas parte do cenário encontrado para a formação de comunidades desses “párias”, à semelhança daquela existente no Sertão do Valongo, sujeito do presente estudo. De acordo com uma pesquisadora: “A ocupação do campo, embora estratégia de sobrevivência, também contribuiu para a invisibilidade desses grupos étnicos” (CASTELLS, 2006, p. 420). Provavelmente a invisibilidade não era tão somente buscada e pretendida por esses ex-escravos. Ela era parte de um processo social, nem sempre inconsciente, porém sua meta era invisibilizar os antigos escravos, pois, como aponta Fernandes (2007, p. 62): “Apesar de seus ideais humanitários, o abolicionismo não conduziu os ‘brancos’ a uma política de amparo ao negro e ao mulato”. As consequências disso foram desastrosas e se espalharam em todo o tecido social do Brasil. Para Leite (1996), essa invisibilização funcionou como mecanismo de negação do negro, tentando legar ao esquecimento essas populações no reforço do mito da igualdade racial no país.

Após o 13 de maio de 1888 defensores de primeira mão do abolicionismo e ex- escravos criaram a Guarda Negra, que pretendia ser uma força de resistência em favor da liberdade recém cedida às populações escravas. Era o temor real de que o processo sofresse alguma reversão por parte daqueles que não se conformavam com a nova realidade nacional. O medo de uma reescravização não era infundado, visto que muitos interesses foram contrariados pelos ideais abolicionistas. Na pesquisa de Mattos (2006, p. 108) encontra-se registrado que: “Após a lei, e durante alguns anos, os ex-senhores continuaram a se organizar politicamente demandando indenização pela perda de sua propriedade em escravos”. Existia agora toda uma conjuntura de demanda por uma mão de obra que se configuraria doravante sob outras condições que não aquelas regidas pela escravidão. A tese defendida por Guimarães (2011) aponta para o fato de que o período imediato da abolição até a criação do Estado Novo em 1930, foi marcado pelas tentativas dos escravos libertos de sentirem-se parte da nação brasileira, e foram essas tentativas que esbarraram em fortes questões raciais presentes no seio da sociedade.

Apesar de tudo, a mudança desencadeada a partir da abolição produziu efeitos que se fizeram sentir ao longo de toda a história ulterior a ela. Vista sob a ótica do presente, distanciada há mais de 120 anos do fato, sua realidade pode ser melhor pesquisada e objetivada, pois conta com a ajuda dos acontecimentos históricos que marcaram a sociedade brasileira desde então. Na visão sociológica de Fernandes (2008, p. 32):

As sociedades humanas sempre se encontram em permanente transformação, por mais ‘estáveis’ ou ‘estáticas’ que elas pareçam ser. Mesmo uma sociedade ‘estagnada’ só pode sobreviver absorvendo pressões do ambiente físico ou de sua composição interna, as quais redundam e requerem adaptações sociodinâmicas que significam, sempre, alguma mudança incessante, embora esta seja com frequência pouco visível […].

Essas “pressões” mencionadas por Florestan Fernandes envolviam, provavelmente, todos os substratos da sociedade, pois suas realidades práticas estavam presentes em todo o vasto tecido social brasileiro.

O Brasil pós-escravagista careceu, sem dúvida, de grandes processos adaptativos para fazer frente à nova conjuntura posta, e os ecos dessa pressão adaptatória ainda podem ser sentidos pelos quatro cantos do país. Analisando a complicada situação do homem que foi liberto da escravidão e fazendo uma crítica severa à realidade que sua extensa e frutífera

pesquisa deparou-se, Florestan Fernandes (2007, p. 46) observou que o sentimento generalizado que encontrou na população era o de que “o ‘negro’ teve a oportunidade de ser livre; se não conseguiu igualar-se ao ‘branco’, o problema era dele - não do ‘branco’”. Essa visão distorcida acarretava aos ex-escravos um fardo pesado demais, uma espécie de nova forma de subserviência que tenderia a perpetuar-se e poderia varrer para longe de seu horizonte a liberdade sonhada, porém não conquistada em sua plenitude. Para Guimarães (2012, p. 36):

Sem dúvida, o momento inicial foi a conquista da liberdade individual, pois com o fim da escravatura generalizou-se definitivamente a disjunção entre ser negro e a restrição à liberdade individual. Mas a liberdade assim conquistada não se traduziu, como vimos, em cidadania política ativa; apenas deslanchou o processo de construção nacional, em que tais indivíduos eram mais assujeitados que sujeitos.

Em tal ambiente, vivendo uma nova forma de escravidão, toda a perspectiva de ascender na vida social seria conquistada a duras penas e nem sempre seria possível. Para o imaginário do brasileiro, forjado ao longo de muito tempo, esses indivíduos eram, na verdade, mera força animal de trabalho e as ideias racistas reproduzidas pelos intelectuais, pela elite detentora do poder e por influentes religiosos, tentavam barrar a participação dessa negritude na construção da identidade étnica do país (SANTOS, 2012).

À medida que as discussões prosseguiam, a liberdade conquistada pelos escravos não se traduzia em medidas práticas que os auxiliasse na conquista de um bom lugar no panorama da nação. Ao contrário disso, as primeiras décadas do século 20 viram o surgimento de ativistas do calibre de Renato Kehl, defensor ardoroso da eugenia, publicando mais de vinte livros e inúmeros artigos acerca do tema (SOUZA, 2006). Suas publicações e conferências exerceram enorme influência em muitos intelectuais da época, à semelhança do escritor Monteiro Lobato, no delicado momento em que o país ainda não tinha uma consolidação em termos de identidade étnica. Tal foi o apoio recebido que ele chegou a fundar uma sociedade eugênica, que teve mais de uma centena de nomes ilustres, entre médicos, jornalistas, autoridades políticas e literatos, todos fascinados pelos caminhos da “regeneração racial” apontados pelos eugenistas. Em seu controvertido livro A Cura da Fealdade, ele chega a afirmar:

Só motivos acidentais ou aberrações mórbidas fazem unir-se via de regra, um homem branco com uma negra e vice-versa. E o produto desse conúbio

nasce estigmatizado não só pela sociedade, como, sobretudo, pela natureza; está hoje provado, não obstante a grita de alguns cientistas suspeitos, que o mestiço é um produto não consolidado, fraco, um elemento perturbador da evolução natural (KEHL, 1927, p. 134).

A declaração acima é apenas uma pequena mostra de quão exacerbado poderia ser o ódio destilado contra o negro por parte de indivíduos que tinham capacidade de influenciar as massas.

A verdade é que o regime escravocrata fazia parte do passado mas o presente que veio depois dele revelou-se extremamente injusto para o negro brasileiro, visto que os antigos senhores de escravos, o Estado e mesmo a Igreja - ninguém assumia responsabilidade por esse cidadão, completamente perdido e desamparado em meio a circunstâncias tão adversas. Em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, Fernandes (2013, p. 29) analisa o tema com a precisão que lhe é característica, apresentando um retrato muito fiel do que foi esse tempo para a nossa sociedade. Ele diz: “O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza […]”. Tão aparentemente intransponíveis eram as novas dificuldades impostas para esse cidadão que se torna difícil entender como ele pôde atravessar essas barreiras e conquistar o que tem sido chamado de segunda abolição (GUIMARÃES, 2012). A intuição de Mattos (2006, p. 111) se apresenta acertada: “Como no século XIX, dizer-se negro ainda é basicamente assumir a memória da escravidão inscrita na pele de milhões de brasileiros. Essa é a base que empresta consciência histórica à discussão sobre políticas de ação afirmativa no Brasil […]”. Ou seja, ela não conseguiu enxergar mudanças tão significativas no seio da sociedade que pudessem fazer com que o negro ser visto de outra forma.

Eis aí, então, parte do cenário no qual se pode vislumbrar, pelo menos de maneira ainda opaca, o surgimento naqueles idos da comunidade do Sertão do Valongo.

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