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O CONTEXTO DA CHEGADA DO ADVENTISMO NO VALONGO

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2. O FATO RELIGIOSO NO SERTÃO DO VALONGO

2.2 O CONTEXTO DA CHEGADA DO ADVENTISMO NO VALONGO

Para que se analise a religião dos valonguenses, torna-se necessário entender também o abrangente contexto do processo de evangelização protestante na América Latina. Até meados do século 19 essa região era geralmente descrita pelo protestantismo norte americano e europeu como “continente esquecido”, visto que todos os projetos de evangelização até aquele período estavam ligados à Igreja Católica e eram considerados como insuficientes para romper barreiras históricas do paganismo que grassava no continente e trazer uma significativa melhoria de qualidade de vida que o imaginário protestante achava ser necessária e urgente para os povos nativos. Era o “[…] vizinho ferido e necessitado que desafiava os Estados Unidos a agir como um bom vizinho” (PIEDRA, 2008, p. 72). Entretanto, para além do elemento evangelizador, vários estudiosos argumentam que essas iniciativas estavam intimamente ligadas à importância geopolítica e econômica que os países latino-americanos foram adquirindo. Parte das estratégias protestantes esteve relacionada a uma crítica feroz à

Igreja Católica, sendo a preocupação frequente mostrar que sua fé era superior àquela praticada pelo catolicismo (PIEDRA, 2008).

Como parte desse cenário macro que envolve a chegada das principais confissões do protestantismo à América do Sul, encontram-se, também, no mesmo período, os adventistas do sétimo dia, iniciando modestas incursões missionárias no continente. Não foi por acaso que as bases adventistas finalmente começaram a ser estruturadas em alguns países, mas houve uma estratégia deliberada para que isso acontecesse. Especialmente na última década diversos pesquisadores adventistas têm se debruçado na tentativa de traçar um roteiro de acontecimentos ligados ao projeto adventista de estabelecer um trabalho e consolidar-se na região, considerando que a corrente religiosa assumiu, ao longo dos últimos cento e vinte anos um papel de crescente destaque no continente, contando no presente (2014) com quase dois milhões e meio de fiéis apenas no território da América do Sul, espalhados em cerca de dezoito mil congregações.

Avaliando-se esse tímido começo adventista no final do século 19, existe um dado que ganha importância para a pesquisa. Acontece que a investida missionária feita inicialmente pelo grupo religioso no Brasil se deu exclusivamente nas comunidades alemãs de Santa Catarina, o mesmo estado onde está localizada a comunidade negra do Sertão do Valongo. De acordo com as informações levantadas por Schunemmann (2003, p. 32), “[…] até 1910 a Obra Adventista no Brasil seguia a estratégia inicial de evangelizar principalmente as colônias alemãs”. Pelos levantamentos existentes, os primeiros adventistas que chegaram ao Brasil sequer foram pessoas, mas papéis, na forma de revistas alemãs que foram enviadas por navios ao Porto de Itajaí, em Santa Catarina. Anos mais tarde, em 1896, poucos anos antes de os ex- escravos se fixarem em sua terra, foi organizada no estado, em Gaspar Alto, a primeira congregação adventista e, junto a ela, iniciou-se uma escola paroquial (OLIVEIRA FILHO, 2004). Cabe refletir se a estratégia inicial esteve ligada realmente à ausência de recursos materiais e humanos ou se precisa ser levado em conta também o fato de que havia uma visão corrente negativa com relação à América do Sul, um pobre continente, repleto de insalubridade e doenças tropicais, não se constituindo um campo atraente para os missionários (PIEDRA, 2008). Outro ângulo pode apresentar o seguinte argumento: Por que aqueles religiosos americanos decidiram lançar a sorte de seu tímido projeto de evangelização entre as colônias alemãs que habitam o sul do Brasil e não diretamente entre os nativos brasileiros?

O preconceito acerca deles era maior que o desejo de evangelizá-los? Estavam impregnados pela ideia reinante de que esses nativos sequer possuíam alma? As buscas na literatura disponível ofereceram poucas respostas, mas não foram encontradas pistas suficientes que pudessem oferecer um argumento adequado a essa questão. Entende-se que o assunto mereça um estudo mais aprofundado.

Nas primeiras décadas do século 20, os adventistas de Santa Catarina avançavam em seus projetos de evangelização e se consolidavam para além dos colonos alemães, entretanto, não há indícios de algum esforço realizado entre os negros que habitavam o estado. Mesmo assim, por volta de 1923, por caminhos não oficialmente traçados, o adventismo chegou à comunidade negra do Sertão do Valongo. A história, envolvendo um vendedor de livros religiosos que ensinou a crença aos seus antepassados, é contada e recontada entre os atuais moradores, que fazem questão de relembrar a importância do fato histórico. Esse homem apareceu no Valongo por contratempos na jornada e pediu hospedagem na casa do pai de um jovem chamado Mario Caetano. Tendo sido negada a hospedagem ao desconhecido, Mario, que era recém casado, abrigou o visitante até o dia seguinte e dele adquiriu o livro Nossa Época à Luz das Profecias, que passou a estudar, enquanto não estava nas lidas da lavoura de cana-de-açúcar, à qual se dedicava. Com entusiasmo, ele falava das descobertas religiosas que estava fazendo e, à medida que o tempo passava, outros parentes se interessaram pelos assuntos e no dia 5 de janeiro de 1932, Mario foi batizado, tornando-se oficialmente adventista do sétimo dia. Durante aproximadamente trinta anos, as atividades religiosas aconteciam em sua própria casa, até 1962, quando foi inaugurado um templo de madeira, que ocupa até hoje o lugar central no território do Sertão. A localização central do Templo é vista também como sendo simbólica da força que a religiosidade exerce no lugar (TEIXEIRA, 1990).

Esta presente pesquisa realizou uma busca nos documentos oficiais da Igreja Adventista em Santa Catarina com a finalidade de rastrear os acontecimentos que envolviam a denominação enquanto o povo valonguense seguia seu rumo religioso. Era preciso saber se haveriam registros históricos dos documentos oficiais da Igreja na época. Foi recortado um período entre os anos de 1925 a 1941, época inferida pela pesquisa como sendo relevante para buscas acerca da conversão desse grupo, bem como o cenário que envolvia o adventismo na região. Nesse período analisado os estados de Santa Catarina e Paraná formavam uma única

entidade na hierarquia da Igreja, chamada de Missão Paraná Santa e Catarina da Igreja Adventista do 7º Dia, com sede na cidade de Curitiba. Como prática administrativa, mensalmente, uma comissão diretiva se reunia e todas as decisões tomadas por ela eram registradas em votos que eram criteriosamente numerados.

O pesquisador teve acesso aos escritórios da Igreja em Florianópolis, onde foram encontrados os antigos registros documentais que retratam os movimentos da crença no Estado. Devidamente catalogados e digitalizados para a posteridade, os históricos documentos puderam ser avaliados.

Através de levantamentos já existentes em estudos da história adventista, sabia-se que o projeto inicial de evangelização da Igreja para o Brasil se deu prioritariamente entre os alemães que habitavam as colônias do Estado de Santa Catarina nas últimas décadas do século 19. Era importante para a pesquisa averiguar se, nas décadas de 1920 e 1930, período da inserção dos valonguenses ao adventismo, ainda havia indícios de que os colonos alemães eram alvo dos projetos das investidas da Igreja.

Também era relevante saber se poderiam ser encontradas referências nesses documentos administrativos da Igreja a esses crentes do Sertão do Valongo. Ambos os fatos puderam ser atestados por meio do acesso que o pesquisador teve às atas que registraram o período.

Figura 3 - Registros dos votos administrativos adventistas entre 1925 e 1941 preservado nos escritórios da Igreja

Fonte: Acervo do pesquisador

As verificações realizadas nos documentos preservados levantam três aspectos tidos como importantes para essa pesquisa:

Primeiramente, percebe-se que vários livros de registros de atas das reuniões apresentam duas versões dos votos tomados: uma em português e outra em alemão (Figura 4), o que demonstra que ainda nesse período havia uma necessidade real para que esse cuidado fosse tomado. (Atas da Comissão Diretiva 1925 - 1935).

Figura 4 - Índice das Atas da Comissão Diretiva Adventista com versão em alemão

Fonte: Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1925-1935

Em segundo lugar foi observada uma variedade de votos administrativos tomados para que fossem efetuadas compras de livros e folhetos diversos em língua alemã (Figura 5). Esses materiais eram adquiridos para atender às necessidades da comunidade religiosa, bem como para fazer frente a novos projetos de evangelização. O voto número 468, de 11 de junho de 1932, apresenta um pedido de folhetos feito à editora da Igreja, tanto em português quanto em alemão.

Figura 5 - Pedido de folhetos em alemão em 1932

Fonte: Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1925-1935

Em 23 de setembro de 1935 é tomado o voto 1037 (Figura 6) para a aquisição de 300 exemplares da obra “Hausartz und Fuehrer zur Gesundheit” (Médico da casa e guia da saúde). O voto número 1661, datado de uma Convenção que se realizou entre os dias 18 a 20 de setembro de 1937, reza: “VOTADO fazer o pedido de 400 exemplares do livro “In der Entscheidungstunde” (Na hora da decisão). Esses livros eram utilizados para os projetos de evangelização entre os alemães que moravam nas colônias da região (ATAS DA COMISSÃO DIRETIVA 1925 - 1935).

Figura 6 - Pedido de livros em alemão em 1935

Fonte: Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1925-1935

Em 23 de junho de 1938 nota-se que surge um problema legal que motiva o voto número 1834, mostrado na Figura 7: “VOTADO: suspender a publicação do TRANSMISSOR em alemão, devido às exigências do decreto lei, quanto às publicações em língua estrangeira […]” (Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1936-1939). Esse era o período em que o governo de Getúlio Vargas impunha compusoriamente um forte tom nacionalista, o que gerou diversas consequências para as populações de imigrantes no Brasil (KREUTZ, 2010). A observação desse conjunto de decisões administrativas apontam para uma realidade existente entre os adventistas catarinenses naquele período, a de que havia um forte contigente de alemães entre os conversos da Igreja. Ressalta-se novamente o fato de a conversão desse grupo de negros ter acontecido exatamente nessa época.

Figura 7 - Suspensão de publicação alemã em 1938

Fonte: Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1936-1939

Em todos os votos analisados pela pesquisa percebe-se que grande parte dos líderes da Igreja naquele período tinham sobrenomes alemães, como: Schwantes, Schmidt, Gerling, Stockler, Kattwinkel, Deucher, Ritter, Morsch, Genski, entre outros. (ATAS DA COMISSÃO DIRETIVA DA ASSOC. CATARINENSE DA IASD 1925-1935; 1936-1938; 1939-1941). Eram esses que conduziam os negócios adventistas, alemães que lideravam outros alemães e, aos poucos, nativos brasileiros e, entre eles, os negros do Sertão do Valongo.

Além desse levantamento, a busca pelas atas administrativas revelou também o registro, datado dos dias 8 a 11 de agosto de 1938, do batismo de 6 pessoas no Sertão de Santa Luzia, como era chamado o Valongo na época (ATAS DA COMISSÃO DIRETIVA DA ASSOC. CATARINENSE DA IASD, 1936-1938, voto 1898) e ainda outro registro de batismo feito em 27 de julho de 1940 (ATAS DA COMISSÃO DIRETIVA DA ASSOC. CATARINENSE DA IASD,1939-1941, voto 169).

Digno de nota também é o voto 3487 (Figura 8), registrado em 22 de novembro de 1939, que nomeia o negro quilombola Marinho Caetano como Delegado da Assembléia Bienal na Igreja na região (ATAS DA COMISSÃO DIRETIVA DA ASSOC. CATARINENSE DA IASD, 1939-1941). No sistema de governo adventista, os líderes de uma Missão (Paraná e Santa Catarina) são eleitos para dirigir seus negócios por um período determinado, no caso, dois anos. Sendo um governo representativo, próximo ao final do período designado para a liderança daquela administração, é convocada uma Assembléia Bienal, onde se reúnem

líderes, que foram selecionados entre os membros das Igrejas da região. Estes Delegados, reunidos na Assembléia, têm a prerrogativa de escolher os novos líderes da Organização para o próximo período. Pelas práticas adventistas, apenas pessoas de reconhecida liderança são apontadas como representantes para essas reuniões. Torna-se, então, deveras notável, o fato de um líder negro rural, Marinho Caetano, ser nomeado para um evento de tal importância, a fim de dar sua contribuição nas decisões referentes ao destino da obra adventista em um território que envolvia dois estados da Federação.

Figura 8 - Eleição de líder valonguense para Assembléia da Igreja em 1939

Tal importante nomeação acontece novamente em 11 de dezembro de 1941 (Figura 9), através do voto número 659 (idem). Na descrição de Borges (2000, p. 151): “Por vários anos, Mário representou sua região em reuniões administrativas da Igreja”. Essas nomeações apontam para a importância que esse líder religioso local foi adquirindo além das fronteiras estreitas do Sertão. Em uma época marcada no cenário brasileiro como sendo de grande desvalorização do negro, fato denunciado amplamente na sociologia de Florestan Fernandes, é interessante notar ações práticas no cenário adventista, no sentido de confirmar o valor e o papel do negro na sociedade.

Figura 9 - Eleição de líder valonguense para Assembléia da Igreja em 1941

Fonte: Atas da Comissão Diretiva da Assoc. Catarinense da IASD. 1939-1941

Vê-se pelo olhar de alguns pesquisadores que, para o povo valonguense, a mudança que lhe traçou um novo rumo religioso, é o principal divisor de águas para sua pequena sociedade (TEIXEIRA, 1990). A partir das observações realizadas por diferentes estudiosos que entraram em contato com eles, têm-se a clara noção de que a religião é mesmo o fator central para a existência dessas pessoas, podendo-se dizer que é ela que dá sentido à vida

dentro da comunidade. Segundo Costa (2009, p. 50): “se não existe religião sem sociedade, tampouco existe sociedade sem religião”. Naquelas terras quilombolas vive uma pequena sociedade com grande estoque de religião. A percepção extraída do trabalho de Teixeira (1990, p. 11) é importante: “Me pareceu que o seu modelo de vida, a sua visão de mundo está profundamente ligada a estas duas condições: preto e adventista”. Dizer que existe ali uma determinada visão de mundo que forma um amálgama tão profunda a ponto de juntar as questões de raça (preto) e de religião (adventista) fornece ao pesquisador elementos inquestionavelmente valorosos para se buscar um entendimento maior acerca do fenômeno religioso do lugar.

Se é verdade o que disse Eliade (1992, p. 26) de que é a “[…] experiência religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo” e também que “[…] a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo” (idem), o Sertão do Valongo é um lugar onde essa experiência pode ser observada e discutida, mesmo nessa segunda década do milênio, tempo em que o declínio do fervor religioso é visto como característica do ser humano. De certa forma, o que Eliade denominou como sendo uma “inextinguível sede ontológica” (ibidem, p. 60), ao descrever o sentimento de busca da religiosidade por parte do homem, parece continuar sendo elemento primordial para inúmeras culturas em todas as partes do mundo. Ora, na visão de Croatto (2001 p. 45-47, apud OLIVEIRA, 2007, p. 2) é através do elemento religioso que a espécie humana aprendeu a:

[…] imaginar, em todos os tempos, maneiras de superar suas limitações recorrendo ao sagrado […] Na experiência religiosa […] o caos deve ser vencido pelo ato cosmogônico, que não é simples criação do mundo, mas especialmente, sua organização, que faz do mundo um espaço inteligível e funcional.

Percebe-se aqui uma complementação importante entre a percepção segundo a qual a religião se apresenta como fator limitante de horizontes e esta descrita por Croatto, onde ele apresenta que é exatamente a vivência na religião que pode levar o indivíduo a alargar seu mundo, tornando-o melhor.

Durante muito tempo, especialmente sob os auspícios do Iluminismo, acreditou-se que todo vestígio religioso seria apagado do espírito humano. O pensamento de Engells (ENGELLS, 1976, p. 431, apud COSTA, 2009, p. 21) pode traduzir essa aspiração:

[…] quando a sociedade, pela apropriação e utilização dos meios de produção, se tiver libertado e libertado todos os seus membros da servidão […]; quando o homem, não só puder, mas dispuser, só nesse momento desaparecerá a última força estranha que ainda se reflete na religião. Desta forma extinguir-se-á o reflexo religioso, pela boa razão de que já nada haverá para refletir.

O que se verifica, entretanto, é que o “reflexo religioso”, ao contrário da previsão de Engells, jamais foi completamente extinto do gênero humano e, provavelmente, nunca o será. A fé que se observa demostrada entre o povo valonguense é simbólica, no sentido de ser ali um microcosmo onde o fenômeno pode ser estudado enquanto parte de um cenário infinitamente maior, pois ao mesmo tempo em que se enxerga a quase extinção da religião em um lugar, vê-se, como contraponto, o crescimento do fenômeno em outro.

À vista disso, pergunta-se: estaria de fato o sentimento pelo sagrado intrinsicamente entranhado na estrutura do homem? Na compreensão de Bello, (1998) em seus estudos acerca da religião, é muito difícil entender a estrutura da sociedade sem que se compreenda a importância da religião na cultura e sua capacidade de envolver “[…] o ser humano na sua íntima constituição: a estrutura sacral e religiosa” (BELLO, 1998, p. 146, apud OLIVEIRA, 2007, p. 2). Observada assim, a questão se apresenta deveras ampla, pois a sua compreensão estaria intimamente ligada à própria compreensão do tecido que compõe a sociedade.

É, pois, sob essa égide da importância da religião, a partir da sua verificação na comunidade do Valongo, que essa pesquisa levanta questões que remetem à importância do fato religioso para a sociedade que habita o século 21. No dizer de Costa (2009, p. 11): “Por isso se diz que a religião, desde que se vá, volta sempre”. Percebe-se que o interesse pelo tema está de volta à Academia ou talvez nunca tenha se ausentado dela. Sendo assim, a breve averiguação contida neste trabalho pode conter alguns elementos que proporcionem outras compreensões a respeito deste inesgotável assunto.

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