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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. ANTONIO BRAGA DE MOURA FILHO. SERTÃO DO VALONGO: ARTICULAÇÃO DE LIBERDADE, RELIGIÃO E IDENTIDADE EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA ADVENTISTA. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2015.

(2) ANTONIO BRAGA DE MOURA FILHO. SERTÃO DO VALONGO: ARTICULAÇÃO DE LIBERDADE, RELIGIÃO E IDENTIDADE EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA ADVENTISTA. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências da Religião, da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Helmut Renders. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2015.

(3) A dissertação de mestrado intitulada: “SERTÃO DO VALONGO: ARTICULAÇÃO DE LIBERDADE, RELIGIÃO E IDENTIDADE EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA ADVENTISTA”, elaborada por ANTONIO BRAGA DE MOURA FILHO, foi apresentada e aprovada em 31 de março de 2015, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Helmut Renders (Presidente/UMESP), Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (Titular/UMESP) e Profa. Dra. Cristina Zukowsky Tavares (Titular/ UNASP e UNIFESP).. _____________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Orientador e Presidente da Banca Examinadora. _____________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-Graduação. Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas psicossociais e pedagógicas.

(4) Dedico esta Dissertação ao incrível povo do Sertão do Valongo, cuja cultura ímpar desejo que prossiga sendo um silencioso contraponto às lógicas da sociedade.

(5) AGRADECIMENTOS. Ao Senhor da minha existência, com quem tenho andado nos últimos 38 anos e que me agracia com uma vida muito abençoada. Ele me faz gostar muito mais de agradecer do que pedir. À minha amada esposa Neila, incentivadora de primeira hora para que eu nunca deixe de estudar. Aos filhos amados, Tiago e Carol, pela nossa cumplicidade e grande amor. Ao UNASP, por ter proporcionado as condições para esse Mestrado. A Helio Carnassale, parceiro de todas as horas dessa jornada. Sem sua ajuda eu não teria conseguido. A Cristina Tavares, amiga que jamais se negou a fornecer sugestões preciosas a todos os passos da pesquisa. À minha amiga Nitinha, que dedicou muitas e muitas horas para ajustar detalhes que eram necessários. Ao amigo José Nilton, pela biblioteca particular que foi um auxílio e tanto. Aos professores e colegas do programa de Ciências da Religião, novos amigos agregados à vida. À querida Família Bertazzo, cujo Apto foi um perfeito refúgio acadêmico. Ao Dr. Helmut Renders por todo o processo de orientação da pesquisa. A todos aqueles amigos e colegas que, de perto ou de longe, torceram sempre pelo sucesso da jornada. Ao fator BGP, que me ajudou demais nas horas complicadas, sintetizando sempre as dificuldades do caminho..

(6) “As pessoas mais felizes são aquelas que não têm nenhuma razão específica para serem felizes, exceto pelo fato de que elas são” Willian Ralf Inge.

(7) MOURA FILHO, Antonio Braga de. Sertão do Valongo: articulação de liberdade, religião e identidade em uma comunidade quilombola adventista. São Bernardo do Campo: UMESP. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo.. RESUMO. Há um crescente interesse nas investigações acadêmicas, bem como nas políticas oficiais voltadas à redução das assimetrias sociais no sentido de aprofundar os estudos acerca dos remanescentes de escravos que subsistem na atualidade como povos quilombolas em todo o Brasil. Nas últimas décadas, se procura de várias formas, reparar erros históricos cometidos contra os descendentes dos povos de origem africana que vivem no país. Minha pesquisa focou o olhar numa dessas pequeninas comunidades, o Sertão do Valongo, cujo território está localizado numa estreita faixa de terra no interior de Santa Catarina, oficialmente reconhecida como remanescente dos antigos quilombos desde 2004. Os valonguenses têm despertado a atenção de estudiosos e curiosos que entram em contato com eles e a razão desse interesse está ligado especialmente a uma especificidade somente ali encontrada: eles são praticantes da crença adventista há nove décadas e essa peculiaridade atrai estudos que buscam investigar o modo de viver desse povo, intimamente ligado à prática da religião. O estudo é uma pesquisa qualitativa, de caráter bibliográfico, e tem como referencial teórico a Sociologia Crítica de Florestan Fernandes. Nele investiguei acerca dos ideais de liberdade presentes na gênese da comunidade no final do século 19; analisei aspectos da forte influência da religião para os seus moradores a partir da conversão do grupo ao adventismo na década de 1930; discuti a maneira como a liberdade e a religião se articulam para a construção da identidade desse povo ao longo do tempo, tornando o pequeno mundo valonguense um espaço provocador de reflexões.. Palavras-chave: Quilombola, Sertão do Valongo, Adventista, Liberdade, Religião, Identidade..

(8) MOURA FILHO, Antonio Braga de. Hinterland of Valongo: articulation of freedom, religion and identity of an adventist maroon community. São Bernardo do Campo: UMESP. Dissertation (Master’s degree in Science of Religion) - College of Law and Liberal Arts, Methodist University of São Paulo.. ABSTRACT. There is a growing interest in academic research, as well as in official policies aimed at reducing social inequalities in order to deepen the studies on the remaining of slaves who reside today as Maroons throughout Brazil. In recent decades, seeking in various ways, to redress historic wrongs committed against the descendants of the people of African origin living in the country. My research focused to gaze at these tiny communities, the Hinterland of Valongo, whose territory is located in a narrow strip of land in the interior of Santa Catarina, officially recognized as a remnant of the old Maroons since 2004. The dwellers of Valongo has attracted the attention of scholars and curious who come in contact with them and the reason for this interest is connected particularly to a specificity only found there: they are practitioners of the Adventist belief for nine decades and this peculiarity attracts studies that seek to investigate the way of living of these people, closely linked to the practice of the religion. The study is a qualitative research, of bibliographic character, and has as its theoretical reference the Critics of Sociology by Florestan Fernandes. In this study, I reflected on the ideals of freedom present in the genesis of the community in the late 19th century; I analyzed the aspects of the strong influence of religion for its residents from the group conversion to Adventism in the 1930s; I discussed how the freedom and religion are linked to the construction of the identity of these people over time, making the little world of the inhabitants of Valongo a provocative space of reflections.. Keywords: Maroon, Hinterland of Valongo, Adventist, Freedom, Religion, Identity..

(9) LISTA DE FIGURAS. Figura 1 - Leilão de escravos............................................................................................ 23 Figura 2 - Mapa de localização do Sertão do Valongo..................................................... 35 Figura 3 - Registros dos votos administrativos adventistas entre 1925 e 1941 preservado nos escritórios da Igreja.................................................................................. 54. Figura 4 - Índice das Atas da Comissão Diretiva Adventista com versão em alemão.... 55 Figura 5 - Pedido de folhetos em alemão em 1932......................................................... 56 Figura 6 - Pedido de livros em alemão em 1935............................................................. 57 Figura 7 - Suspensão de publicação alemã em 1938....................................................... 58 Figura 8 - Eleição de líder valonguense para Assembléia da Igreja em 1939................. 59 Figura 9 - Eleição de líder valonguense para Assembléia da Igreja em 1941................. 60 Figura 10 - Umas das 28 casas onde moram os quilombolas valonguenses. Construção de madeira.......................................................................................................................... 66. Figura 11 - Primeira Igreja do Valongo, construída em 1962........................................... 67 Figura 12 - Igreja Adventista do Valongo, que se ergue no centro do território Construção de alvenaria..................................................................................................... 68. Figura 13 - Primeira menção ao valonguenses da Revista Adventista............................. 70 Figura 14 - Batismos de valonguenses noticiados na Revista Adventista........................ 71 Figura 15 - Valonguenses em meio a outros adventistas, em 1938.................................. 72 Figura 16 - Entusiasmo dos valonguenses ressaltados na Revista Adventista................. 73 Figura 17 - Foto de destaque dos valonguenses.............................................................. 74 Figura 18 - Elogio aos valonguenses na Revista Adventista............................................ 75 Figura 19 - Entrevista com missionário que atuou no Valongo....................................... 76 Figura 20 - Longa reportagem na Revista Adventista sobre o povo do Valongo............. 77. Figura 21 - Capa do livro publicado pelo IPHAN sobre o Valongo................................. 91 Figura 22 - O Valongo na história do adventismo no Brasil............................................. 103.

(10) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................11 1. A LIBERDADE COMO CONTEXTO DA GÊNESE DO SERTÃO DO VALONGO……………………………………………………………………………….. 16 1.1.. O IDEAL DA LIBERDADE COMO PARTE DA HISTÓRIA..................................19. 1.2 A LIBERDADE COMO EXPRESSÃO ESSENCIAL DOS ANTIGOS QUILOMBOS ......................................................................................................................21 1.3 A LIBERDADE A PARTIR DE 1888 E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA OS EX-ESCRAVOS ...................................................................................................................30 1.4. O MUNDO VALONGUENSE COMO EXPRESSÃO DE LIBERDADE................34. CONSIDERAÇÕES INTERMEDIÁRIAS ..........................................................................42 2.. O FATO RELIGIOSO NO SERTÃO DO VALONGO ............................................44 2.1. COMO TEM SIDO PENSADO O MUNDO VALONGUENSE ..............................46. 2.2. O CONTEXTO DA CHEGADA DO ADVENTISMO NO VALONGO...............50. 2.3. A IMPORTÂNCIA DA FÉ PARA O POVO VALONGUENSE ...............................62. CONSIDERAÇÕES INTERMEDIÁRIAS ..........................................................................78 3. A LIBERDADE E A RELIGIÃO COMO CONSTRUTORES DA IDENTIDADE VALONGUENSE ...................................................................................................................80 3.1 QUESTÕES DA IDENTIDADE DO MOMENTO QUILOMBOLA NA ATUALIDADE .....................................................................................................................82 3.2. A IDENTIDADE VALONGUENSE NO SÉCULO 21 .............................................87. 3.3. PRESERVAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ..............................................................93. CONSIDERAÇÕES INTERMEDIÁRIAS ........................................................................106 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................108 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................111 REFERÊNCIAS IMAGÉTICAS ........................................................................................121 ANEXOS………..……………………………………………………………………………………122 .

(11) !11. INTRODUÇÃO A origem dessa pesquisa aconteceu no momento em que pisei os pés pela primeira vez no território da comunidade quilombola Sertão do Valongo, a fim de organizar um projeto de voluntariado universitário no local. Era o mês de março de 2013 e eu estava vivendo as primeiras semanas como aluno do programa de Ciências da Religião da UMESP Universidade Metodista de São Paulo. Descobri naquele lugar a existência de um povo simplesmente encantador e, ao saber que diversos pesquisadores já haviam publicado estudos sobre eles, estabeleceu-se logo a certeza de que todo o desenvolvimento do meu programa de Mestrado seria dedicado a pesquisar aquele povo. Nas últimas décadas o Estado brasileiro procura, de várias formas, reparar erros históricos cometidos contra os descendentes dos povos de origem africana que vivem no país (LEITE, 2008). Sendo assim, é crescente o número de estudos concluídos por pesquisadores acerca das milhares de comunidades quilombolas que existem em nosso país, alguns dos quais serão indicados ao longo do trabalho. O Sertão do Valongo é uma pequenina comunidade, oficialmente reconhecida como remanescente dos antigos quilombos desde 2004. Seu território está localizado numa estreita faixa de terra no município de Porto Belo, interior de Santa Catarina. Os valonguenses têm despertado a atenção de estudiosos e curiosos que entram em contato com eles e a razão desse interesse está ligada especialmente a uma especificidade somente ali encontrada: eles são praticantes da crença adventista há nove décadas e essa peculiaridade atrai estudos que buscam investigar o modo de viver desse povo, intimamente ligado à prática da religião. O objetivo da minha pesquisa foi refletir na constituição dessa comunidade quilombola e analisar, à luz do quadro teórico delineado, três aspectos julgados como relevantes para compor um estudo: a liberdade, como possível provocadora de sua gênese; a religião, cuja influência passou a ser característica principal do seu povo; a articulação desses elementos na formação da identidade dos valonguenses. Entendo que minha pesquisa se justifica ao propor uma discussão entre as fortes características da prática religiosa vivida por aquele povo e o ideário de liberdade que deu.

(12) !12. origem aos antigos quilombos. As pesquisas realizadas ali indicam que não é possível ter uma compreensão daquele povo sem que se entenda a maneira como a religião é central para ele, podendo-se dizer que é ela que dá sentido à vida dentro da comunidade. Liberdade e religião são conceitos que facilmente se tensionam entre si quando colocados juntos, especialmente nos tempos modernos. De que forma se dá, então, a coexistência aparentemente natural deles no território do Valongo? Passei, então, a “escutar as diferentes vozes da intuição” (CLAXTON, 2005, p. 119) que me levaram a questionar qual a influência desses conceitos para a construção da identidade dos valonguenses, que faz com que o jeito de viver encontrado na comunidade desperte tanta atenção. Penso que a questão mereceu ser investigada. A pesquisa se delimitou na abordagem desses três tópicos, evidentemente não cobrindo todas as possibilidades que eles apresentam, mas colocando o foco nos recortes que foram julgados indispensáveis para a compreensão do sujeito da pesquisa. Esse estudo teve um desenho de pesquisa qualitativa que permite uma proximidade entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa e procurei fazer o que Chizzotti (2001, p. 79) chamou de “[…] uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito […]”. O indivíduo encontrado no Valongo não é neutro ou passivo, mas dinâmico e portador de saberes que foram acentuados por outros pesquisadores e que agora figuram como centrais para essa investigação. Minhas análises buscaram captar a dinâmica de percepções até aqui escritas, procurando lançar um olhar diferenciado, em razão da minha vivência pessoal de quase 40 anos no seio do adventismo. Na descrição feita por Bogdan & Biklen (1994), encontrei elementos que me ofereceram a certeza do caminho que seria trilhado. A pesquisa qualitativa é essencialmente descritiva, buscando sentido nas palavras e imagens contextualizadas, tendo no pesquisador o principal instrumento e no ambiente natural a fonte de dados necessária. Penso que o mergulho que tenho feito na Comunidade do Sertão do Valongo se tornou importante ponto de contato entre a pesquisa acadêmica e o mundo real onde os valonguenses se encontram. Li, reli e li de novo e outra vez os materiais escritos sobre o tema buscando o sentido entre as abordagens e coletando-as para minha escrita. Entendo que a exploração que fiz desvela alguns aspectos acerca do grupo que ainda não foram abordados por outros pesquisadores..

(13) !13. Dentro da coerência de um estudo qualitativo, face ao objeto de estudo selecionado, foi realizada uma Revisão Bibliográfica, na qual busquei discutir os temas a partir dos registros disponíveis em livros que discutem construtos da sociologia crítica, religião e causas africanas e quilombolas, artigos científicos das bases de dados SciELO Scientific Eletronic Library Online e Google Acadêmico, com a utilização dos descritores “quilombola”, “quilombos” , “Santa Catarina”, bem como Dissertações e Teses. A partir da minuciosa revisão da literatura e estudo dos textos selecionados em diálogo com o referencial teóricocrítico na área é que foi possível lançar luz sobre os conceitos em questão. Necessitei na caminhada da pesquisa analisar documentos que se mostraram pertinentes à compreensão do tema pesquisado, visto que os mesmos complementam os dados obtidos por meio da revisão da literatura (LUDKE e ANDRÉ, 1986). São duas as fontes documentais analisadas na pesquisa. A primeira é um conjunto de documentos oficiais da organização adventista na região administrativa do Paraná e Santa Catarina, entre os anos de 1925 a 1941, período que a pesquisa teve acesso para efetuar a busca de votos administrativos que tivessem relevância para esse levantamento. Os documentos estavam preservados e foi realizada uma investigação neles, tendo sido selecionados seis votos que foram descritos e analisados no segundo capítulo da pesquisa. A segunda fonte de documentos foi encontrada por meio de uma extensa busca na Revista Adventista, que é o órgão oficial da denominação no Brasil, cujas edições mensais estão preservadas e digitalizadas desde 1906, quando começou a sua publicação, contando também com ferramentas de busca. O recorte de tempo foi feito entre os anos de 1935 a 2013 e foram analisados oito reportagens sobre os crentes do Valongo nessas publicações. As análises estão apresentadas no segundo capítulo do trabalho. Para montar o quadro teórico principal de análise, busquei respaldo na sociologia crítica brasileira contida em obras de Florestan Fernandes (2007, 2008 e 2013) que dedicou boa parte de seus escritos para discutir as questões do negro e sua conturbada contribuição no processo de formação e desenvolvimento de nossa sociedade. Na verdade, ele inaugurou “[…] uma nova interpretação do Brasil, um novo estilo de pensar o passado e o presente” (IANNI, 1996, p. 25). Fernandes foi o principal teórico a desmistificar o imaginário popular, que via o país como isento de problemas raciais, um verdadeiro paraíso de igualdade. Sua denúncia apontou verdades inquietantes e significou uma contribuição enorme para que o Brasil iniciasse um longo e ainda inacabado processo de reparação diante de toda a discriminação.

(14) !14. vivida pelo negro nessas terras. Utilizando a base do seu pensamento, minha pesquisa se apresenta como elemento questionador no sentido de refletir sobre uma possibilidade de amarração dos três elementos propostos (liberdade, religião e identidade) dentro de uma comunidade quilombola fortemente marcada pelo apego a uma crença. Os três capítulos do trabalho podem ser assim descritos: No primeiro abordei o tema da liberdade, questionando se foi um ideal libertatório que provocou o surgimento da comunidade do Valongo. Como contexto necessário, procurei mostrar se o conceito de liberdade já estava presente na formação dos antigos quilombos, espaços onde se juntavam os negros que fugiam dos seus senhores e formavam essas comunidades, que eram frentes de resistência diante dos horrores praticados pelo escravismo no Brasil. Tratei também da liberdade oficial cedida aos escravos a partir da Lei Áurea, em 1888, e seus complexos desdobramentos sociais para a população negra presente em todo o território brasileiro. Oficialmente estavam libertos, mas até que ponto se encontravam ainda presos às garras da discriminação? Se essas populações foram empurradas para a periferia nacional durante décadas, a partir de que fatores esse quadro começa a se reverter na segunda metade do século 20? Diante da exposição desse contexto, selecionei aspectos históricos da formação da comunidade do Valongo, ocorrida à época imediatamente posterior à abolição. Seu minúsculo mundo, iniciado a partir de três famílias que se juntaram naquela terra insalubre, apresenta-se como expressão de liberdade? O segundo capítulo é onde fiz uma análise do fato religioso na comunidade, trazendo a importância da religião para o centro do debate. Para isso, minha pesquisa procurou investigar as fontes disponíveis e buscou apontar como, ao longo do tempo, tem sido pensado o mundo valonguense, sublinhando a invisibilidade proporcionada pelo território, as nuanças da discriminação enfrentadas na vizinhança e a mudança histórica ocorrida no Sertão na década de 1930, com a migração do grupo ao adventismo. Reuni questionamentos acerca do fato de uma comunidade de negros inserir-se numa Igreja constituída à época essencialmente por imigrantes alemães e analisei documentos históricos inéditos da Igreja na região sul, bem como as buscas efetuadas no principal veículo de comunicação escrita que a denominação possui no país, a Revista Adventista. Nesses documentos apontei indícios da importância da fé para o cidadão valonguense. Fora das fronteiras denominacionais, as análises mostraram percepções de diferentes pesquisadores que já fizeram levantamentos sobre o Valongo..

(15) !15. No terceiro capítulo me ocupei em investigar as influências da liberdade e da religião como possíveis construtores da identidade valonguense. A discussão do tema identidade envolve uma grande complexidade, mas as percepções extraídas a partir daquela microsociedade podem fornecer algumas reflexões válidas para a Academia. Busquei também as pistas deixadas nos levantamentos existentes para verificar se a religião foi para aquele grupo fator de coesão solidária ou de alienação e acomodação. Existe no Valongo uma espécie de coexistência positiva entre a liberdade e a religião, gerando uma identidade comunitária que pode ser vista como uma silenciosa contra-cultura às lógicas existentes hoje na sociedade? O esforço para a preservação da cultura identitária de povos como o do Valongo pode configurar-se como necessária, visto que esses micromundos são detentores de saberes que, mesmo sendo ancestrais, ainda podem se constituir em fontes de reflexões para a pósmodernidade? Foi a existência desses questionamentos e de outros contidos no interior do texto, que moveu cada etapa dessa pesquisa. O acurado estudo que fiz deles fez com que se levantassem outras questões que, entendidas como relevantes, apontam para novos levantamentos que se fazem necessários no sentido de provocarem outras reflexões acerca do tema. .

(16) !16. 1 A LIBERDADE COMO CONTEXTO DA GÊNESE DO SERTÃO DO VALONGO A moldura deste capítulo se dá com o tema da liberdade, inferido como fator preponderante para o início da comunidade quilombola Sertão do Valongo e, num plano mais amplo, também elemento decisivo para milhares de grupos formados por ex-escravos em todo o território brasileiro. É necessário pontuar inicialmente que o conceito de liberdade como conhecido e vivenciado hoje em grande parte dos países, é um valor relativamente recente para a sociedade, fazendo parte das mudanças estruturais que vêm ocorrendo em todo o mundo nos últimos dois séculos. Qualquer análise superficial do paradoxo existente entre liberdade e escravidão pode esconder elementos históricos e adulterar a compreensão de ambos os conceitos. Para se ter uma ideia, calcula-se que por volta de 1772, apenas 5% da população mundial era constituída de indivíduos livres (ENGEMANN, 2006), fato que fornece uma certa perspectiva do que a liberdade significa como conquista humana. Discutir o tema da liberdade a partir de um quilombo pode parecer paradoxal. Entretanto, uma percepção extraída dos estudos de Leite (2008, p. 966) acerca do assunto abre uma possibilidade que não deve ser desprezada. Para ela: Quilombo e liberdade são, portanto, contrafaces de uma mesma realidade histórica. De um lado, as situações de força arbitrária e incontestável em que os ‘senhores’ impunham sua vontade por meio de atitudes explícitas ou dissimuladas, brandas ou violentas. De outro, as reações de escravos e libertos, explícitas, sutis, violentas ou não, às diversas situações e regimes de autoridade.. Ora, nenhuma história pode ser entendida corretamente sem que se avalie o contexto que a envolve, pois é o contexto que fornece elementos específicos de compreensão que não são possíveis de outra forma. Sendo assim, é válida essa observação inicial acerca da liberdade, para que se verifique, pelo menos em parte, o cenário que cerca a gênese do sujeito dessa pesquisa, fator indispensável para o seu desenvolvimento e também para as reflexões pretendidas. É necessário que se leve em conta as inúmeras e diferentes facetas, sejam elas as grandes marcas de um dado ocorrido, ou mesmo minúsculas situações aparentemente despretensiosas, mas que se configuram como de vital importância para a compreensão de um fato histórico..

(17) !17. No presente capítulo será abordado o nascimento da comunidade quilombola do Sertão do Valongo, datado da última década do século 19, época imediatamente posterior à assinatura da Lei Áurea. Porém, como já dito acima, nenhuma história existe à parte das circunstâncias todas que a cercam e é por isso que se torna necessário que se faça uma breve análise do cenário que envolvia o Brasil no período anterior e também posterior a este, a fim de que um pouco do contexto seja explicitado. O tema da liberdade aparecerá como elemento emoldurador para toda a contextualização pretendida. A construção do texto se dará a partir de fontes bibliográficas selecionadas, pesquisadas e devidamente alinhadas ao objetivo proposto, buscando atribuir coerência aos fatos que serão abordados. Ao ser analisada, a pequena comunidade pode levantar questões que são de um âmbito infinitamente maior e permite, no dizer de Arruti (1977, p. 11), “[…] jogar luz sobre grupos sociais antes pensados como irrelevantes ou residuais, mas que, alçados ao estatuto de objetos dignos e pensados em sua positividade abrem novos campos de análise”. De fato, por décadas a fio, milhares de comunidades quilombolas estiveram legadas ao esquecimento nacional e somente após muitas denúncias de setores da sociedade é que as políticas governamentais iniciaram um conjunto de ações que trouxeram novamente ao palco do cenário brasileiro a questão desses povos que foram, na visão de muitos estudiosos, desconsiderados e esquecidos enquanto cidadãos. Localizados quase sempre nas periferias das zonas urbanas ou em recantos escondidos, os quilombos estiveram literalmente à margem da sociedade. Mas essa marginalidade pode ser percebida também no seu sentido simbólico, na falta de atenção dada a essas populações. Na percepção de Silva e Souza (2013, p. 2): “As discussões ligadas à questão racial junto à sociedade brasileira ganha visibilidade e ênfase na década de 1990, ultrapassa o mundo acadêmico e ganha espaço na agenda política do Estado”. Se muito antes disso já se denunciava a discriminação e a desigualdade que atingia esses povos, as ações mais concretas só podem ser observadas a partir desse período. Somente em 2004, por meio do Programa Brasil Quilombola, que reúne ações sociais a partir de diversos Ministérios, (RODRIGUES, 2010), é que efetivamente se organiza uma política que visa cuidar dos interesses quilombolas. É dentro desse cenário de discussões que se encontra o Valongo. Dos antigos quilombos, frentes de resistência ao regime escravagista do passado, hoje são consideradas quilombolas as comunidades que formam grupos étnico-raciais, segundo.

(18) !18. critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas e com ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, conforme Decreto nº 4887/03. Essas comunidades possuem direito de propriedade de suas terras consagrado desde a Constituição Federal de 1988. Foi somente a partir dos avanços sociais conquistados pela Constituição de 1988 que “o Brasil passou a ser reconhecido como um país multicultural e multiétnico” (JORGE e BRANDÃO, 2012, p. 84). Durante o período em que se escrevia a Carta Magna do País os movimentos negros estiveram articulados, reforçando “[…] a ideia de reparação, da abolição como ‘um processo inacabado’ e da ‘dívida’, em dois planos: a herdada dos antigos senhores e a marca que ficou em forma de estigma, seus efeitos simbólicos geradores de novas situações de exclusão” (LEITE, 2008, p. 969). Os reconhecidos avanços conquistados naquele período desencadearam novas atitudes com relação ao problema histórico apontado. Em diferentes tipos de levantamento de dados, a Fundação Cultural Palmares (FCP) chegou a mapear 3.524 comunidades quilombolas nos estados brasileiros. Rodrigues (2010) fala de estimamativas que contam cerca de 5 mil comunidades. Partindo dessa perspectiva, foi criada em 2007 a Agenda Social Quilombola (ASQ), cujo objetivo é articular as ações no âmbito do Governo Federal, por meio do Programa Brasil Quilombola (PBQ), entendido por Rodrigues (2010, p. 271) como um “conjunto de medidas descentralizadas entre instituições governamentais […]”. Elas, na verdade, não definem por completo a questão, apesar de o programa apresentar-se como abrangente e ter como meta promover ações federais, estaduais e municipais, bem como aquelas que envolvem organizações diversas da sociedade civil. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição reza: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo ao Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 2012, p. 155). Essas “comunidades negras rurais habitadas por descendentes de escravos, cujos habitantes vivem geralmente do cultivo da terra […]” (CASTELLS, 2006, p. 4) são parte integrante do cenário brasileiro e o reconhecimento oficial de cada uma delas constitui-se em grande conquista social para esses grupos minoritários. No ano de 2004, o povo do Valongo obteve a Certidão de Autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura, Governo Federal (CASTELLS, 2007), sendo oficialmente considerada remanescente das Comunidades dos.

(19) !19. quilombos. Esse documento (ANEXO 1) foi publicado no Diário Oficial da União Nº 237, em 10 de dezembro de 2004 e é considerado como um dos principais comprovantes que uma comunidade quilombola pode conquistar e é ele que abre as portas legais para os trâmites que culminam na legalização das terras onde moram (SILVA, 2010).. 1.1 O IDEAL DA LIBERDADE COMO PARTE DA HISTÓRIA. O mundo do Valongo é parte minúscula desse grande Brasil que Florestan Fernandes (2007, p. 11) disse ser “definido por suas gentes de cores e costumes tão distintos” e são essas gentes que constroem narrativas que, de tão significativas que se tornam, podem ser fontes geradoras de estudos e aprendizados, não importa quanto tempo passe. Os sujeitos dessa pesquisa se constituíram como um povo após 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, passo importante, mas não definitivo para a libertação dos milhões de negros africanos escravizados pelos quatro cantos do país. Iniciar o processo de libertar os escravos provocou uma sequencia de efeitos não previstos, causando uma grande turbulência nacional que será mencionada nesse trabalho. Foi no efervescente caldo cultural desse período que um grupo composto por alguns negros recém libertos da escravidão, se juntaram numa estreita faixa de terra no interior de Santa Catarina, na tentativa de formar uma comunidade livre da opressão branca (TEIXEIRA, 1990). Olhando-se para o tempo muito anterior a esse, verifica-se que o tema da liberdade , sendo parte integrante da história humana, assumiu um relevante significado especialmente a partir da revolução francesa, ocorrida em 1798, e que provocou, segundo Guimarães (2011) diferentes desdobramentos políticos e ideológicos em todo o mundo ocidental por meio do lema que evocava a liberdade, igualdade e fraternidade como valores fundamentais para o novo tempo que se inaugurava e que mudaria para sempre os contornos das sociedades que adotaram políticas baseadas nesses postulados. Entretanto, essa tríade conceitual continha em seu âmago uma variedade de significados para diferentes indivíduos ou populações, sendo que, para os povos escravizados, a simples luta pela sobrevivência básica, se constituía em força primeira de enfrentamento do cotidiano. A já corriqueira expressão sonho de liberdade com a qual se identifica o tempo férreo da escravidão oficial, não tinha um sentido tão prático.

(20) !20. para aqueles que nasciam e morriam sob os grilhões. As mudanças iniciadas no século 18, e que as sociedades ocidentais do século 21 herdaram, também trazem o eco da revolução do século 17 na Inglaterra, onde se fundam os pilares do Estado de direito, cuja estrutura visa proteger os direitos fundamentais dos cidadãos (GUIMARÃES, 2012). A questão da liberdade aflora, inevitavelmente, ao discutir-se quaisquer aspectos ligados à escravidão que imperou no Brasil e em outras nações por tempo demasiado longo, pois, como apontou Florestan Fernandes (2007, p. 90) em seus estudos, os negros, depois de livres, foram considerados por importantes segmentos da sociedade brasileira como uma espécie de “câncer importado”, que a coletividade precisava extirpar para poder desenvolverse como nação civilizada. Ou seja, não se pode avaliar de forma simplificada o longo tempo decorrido entre os eventos descritos acima. O modelo escravagista brasileiro, sedimentado ao longo de séculos, não permitiria que os negros fossem cidadãos iguais em decorrência de uma assinatura do governo oficial. Era em tal ambiência negativa e hostil que uma imensa população negra tentaria consolidar o projeto libertatório cedido sim, pela lei que a tirava legalmente dos grilhões, mas que teria de ser conquistada por muitas gerações à frente daquele período. Mattos (2006) analisa que, ao longo do tempo, o Estado tratou de infundir no imaginário popular a imagem dulcificada de uma princesa branca assinando um decreto que tornou livre a população escrava, que era bem tratada e submissa. Essa distorção da realidade foi difundida através dos livros de história entregues às escolas e estudados como fato e somente houve alguma mudança quando as pesquisas denunciaram a existência de um sistema violento e cruel e, em contraponto a ele, a resistência dos escravos, especialmente através dos quilombos. Por sua própria natureza é o ideal de liberdade que se contrapõe a toda forma de opressão, mesmo que tardiamente. Numa percepção extraída do pensamento de Russell (1977, p. 16), pode ser encontrada uma pista de como o ideário da liberdade pode ser gestada enquanto se processa a opressão: Homens e mulheres, em sua grande maioria, em tempos normais, passam a vida sem jamais examinar ou criticar, como um todo, suas próprias condições ou as do mundo em geral. Acham-se trazidos a determinado lugar na sociedade e aceitam o que cada dia apresenta, sem qualquer esforço de pensamento além do que é exigido para o momento imediato. Quase tão instintivamente quanto as feras da selva, buscam satisfazer as necessidades do momento, sem muita previsão, e sem considerar que mediante suficiente esforço todas as condições de suas vidas poderiam ser transformadas..

(21) !21. Alguns, guiados pela ambição pessoal, fazem um esforço de pensamento e vontade necessário para situá-los entre os membros mais afortunados da comunidade; mas pouquíssimos dentre estes estão seriamente interessados em garantir para todos as vantagens que procuram para si mesmos. Apenas alguns homens raros e excepcionais têm esse tipo de amor para com a humanidade em geral, que os faz incapazes de suportar pacientemente o grande volume de mal e sofrimento, seja qual for a relação que possa ter com suas próprias vidas. Esses poucos, movidos por sofrimento solidário, irão procurar, primeiro no pensamento e depois na ação, alguma via de escape, algum sistema novo de sociedade pelo qual a vida possa tornar-se mais rica, mais plena de alegria e menos cheia de males evitáveis do que é atualmente.. Essa declaração serve de carapuça perfeita para retratar, em primeiro lugar, a condição de absoluta miserabilidade, quase sempre passiva, pela qual viveram milhões de escravos de norte a sul do Brasil. Tão absoluta era a opressão que não havia forças necessárias para que fosse esboçada qualquer reação, a não ser aquela que era imposta pelo momento imediato. Em segundo lugar, percebe-se que é graças ao nascedouro de certa “via de escape” ao sofrimento, ocorrido solidariamente, que pode enriquecer a vida social das nações e, quem sabe, evitar certos males sociais que causam danos por vezes irreparáveis a povos inteiros. Parece que não importa quão esmagador seja o mal imposto, alguma forma de liberdade sempre poderá brotar de suas entranhas. 1.2 A LIBERDADE COMO EXPRESSÃO ESSENCIAL DOS ANTIGOS QUILOMBOS Observar o mundo valonguense no presente move o pesquisador ao inevitável exercício de lançar um olhar ao passado desse povo e do que significou o que seus antepassados viveram, apesar de grande parte de sua história haver se perdido no tempo, e impulsiona o estudioso ainda a fazer uma conexão com a literatura disponível que retrata os tempos férreos da escravidão e a liberdade que se seguiu a ela. Freitas (1984, p 19, 20) analisa a era escravagista brasileira com uma reflexão muito clara: Aos africanos se impôs no Brasil a escravidão em sua forma pura. O escravo constituía, na sua mais absoluta forma, uma propriedade total e ilimitada do amo, privado de quaisquer direitos e submetido a uma relação absoluta de dependência. Não tinha existência civil, vale dizer, não era pessoa natural capaz de direitos e obrigações.. Talvez seja sob a luz da escravidão que pode ser entendida de forma mais clara o valor da liberdade para aqueles que experimentaram as duas realidades díspares..

(22) !22. O escravismo no Brasil se estende por um período que vai do século 16 até a segunda metade do século 19, ou seja, quase quatro séculos, e estava espalhado por todo o território nacional em variadas proporções. Ele modelou a sociedade brasileira durante esse período e também para muito além dele. Estima-se em até 15 milhões de negros que foram tirados à força da África e trazidos ao Brasil por meio dos diversos portos, numa operação que o poeta Oliveira Silveira denominou de “parto forçado”. Mesmo não havendo dados precisos, onde os números são amplamente contestados, é certo que a nação brasileira foi a maior importadora de escravos de toda a América. Moura (1989, p. 6) afirma que “o número exato de negros entrados no Brasil durante todo o período escravagista não está definitivamente esclarecido e não acreditamos, mesmo, que isso venha a acontecer”. Ainda assim, suas pesquisas apontam que, por volta de 1820, nenhuma região do Brasil contava com porcentagem inferior a 27% de escravos entre seus habitantes (idem). Durante décadas, até a segunda metade do século 20, havia uma tendência entre os historiadores brasileiros de se referirem aos escravos trazidos da África como sendo pertencentes meramente a pequenas tribos espalhadas pelo continente. É somente graças às investigações mais recentes, frutos de pesquisas que procuram levantar erros históricos para que possam eventualmente desencadear formas de reparação, que a nação se dá conta de que os fatos não são apenas aqueles contados oficialmente. As pesquisas de Weiduschadt, Souza e Beiersodorf (2013) apresentam dados acerca desses povos, mostrando que se tratavam, muitas vezes, de sociedades dotadas de organização eficiente e hierarquia funcional, contando com instituições e tecnologias. Elas tinham suas formas de governo, figuras reais e sistemas religiosos complexos, além de divindades que eram reverenciadas. Trazidos ao território brasileiro, essas populações se viram igualizadas na categoria de escravos ou de mercadorias. Durante todo o período em que vigorou a escravidão, o comércio de comprar e vender pessoas era um negócio atrativo e gerador de lucros que não se pretendia abandonar. Aqueles que comercializavam escravos obtinham vantagens lucrativas que chegavam a 500% nas transações (SILVA, 2009). Todo esse processo visava transformar antigos cidadãos africanos, donos de uma cultura, em objetos para uso literal daqueles que tinham condições para a aquisição. A imagem retratada na Figura 1 é um cartaz anunciando a venda de um lote de escravos. Ela retrata uma ideia de como o mercado funcionava no Brasil:.

(23) !23. Figura 1 - Leilão de escravos. ! Fonte: Vitorino, 2000, p. 8, apud Silva, 2009, p. 49. Essa imagem do processo de coisificação do negro não é único, mas apenas expressão de uma realidade corriqueira. Os estudos de Weiduschadt, Souza e Beiersodorf (2013) apontam para o fato de que, em toda a longa trajetória da humanidade, nenhuma história de deslocamento forçado foi mais impactante que aquele ocorrido com os africanos para as Américas. Populações inteiras, milhões de pessoas, foram reduzidas à mera condição de mercadoria, objetos que foram.

(24) !24. negociados. Toda essa diáspora não foi apenas um deslocamento físico de indivíduos, mas envolveu questões muito mais profundas, como as de identidade. Os séculos vindouros testemunhariam um complexo panorama de conflitos em decorrência desses eventos, cuja ressonância continua reverberando na segunda década do século 21 e provavelmente seguirá sendo tema de investigação, crítica e reflexão nas décadas que se seguirão. Sem dúvida, era uma situação que hoje pode ser apontada como alarmante, mas que só pode ser pesquisada corretamente com o devido distanciamento do tempo, posição na qual a pesquisa se encontra no presente. Durante séculos esses homens e mulheres provaram o terrível gosto do modelo escravagista. Eles foram sistematicamente rebaixados de sua condição de seres humanos e silenciados de forma opressora e humilhante. Além dos pesados castigos impostos ao africano escravizado, existia toda sorte de humilhações desumanizantes e de abuso sexual por parte dos senhores que os possuíam como objetos. Mesmo sendo eventualmente criticada na antiguidade, a escravidão foi considerada, até o final do século 18, aproximadamente, como procedimento lícito e não como um mal que necessitasse ser erradicado (FREITAS, 2011). Toda a violência praticada contra o negro estava amparada pelo manto do Estado e mesmo da Ciência, que elaborava complexas teorias para provar a inferioridade dos negros e poder, assim, justificar o seu jugo. Coutinho (1966, p. 239) lembra que: “O comércio da venda de escravos é uma lei ditada pelas circunstâncias às nações bárbaras para seu maior bem, ou para o seu menor mal”. Encontra-se aí uma ideia da longeva tradição brasileira de aceitar a escravidão como fenômeno comum da sociedade. A expressão usada por Cardoso (1962) de que o negro era visto como “não homem” evidencia certa síntese do caráter das relações sociais que cercavam o Brasil escravagista. O aquilombamento cresceu como uma das formas de resistência a esse modelo vigente. Traçando um perfil do movimento que ganhava corpo e que terminaria por minar completamente o poder, Moura (1989, p. 9, 10) diz que “[…] os escravos negros, para resistirem à situação de oprimidos em que se encontravam, criaram várias formas de resistência, a fim de se salvaguardarem social e mesmo biologicamente, do regime que os oprimia”. A origem dos quilombos remete-se aos rincões africanos, sendo conhecidos como redutos de iniciação à guerra (SANTOS, 2012). Em solo brasileiro eles se configuraram como importantes modelos de reação diante das humilhantes senzalas onde viviam escravizados.

(25) !25. pelos senhores das terra, pois não raramente, os escravos que conseguiam fugir se deparavam com uma espécie de perplexidade sobre o que fazer com a liberdade conquistada pela fuga (FREITAS, 1984). A partir disso pode-se questionar se a liberdade, provocadora de tal perplexidade, seria de fato liberdade. Nesse contexto os quilombos são entendidos como ambientes de refúgio para os escravos fugitivos. Quanto mais aprofundado for o estudo da história dos quilombos no período da vigência da escravidão, mais pode ser percebida a riqueza de aprendizados decorrentes dessas frentes de resistência do passado. Os quilombos eram formados a partir da fuga de escravos e consequente ocupação de terras desocupadas, geralmente isolados, mas também se formavam por doações de terras ou ainda através da compra destas, mesmo durante o período em que imperou a escravidão (PADILHA, 2012). Em seu formato original os quilombos eram pequenos redutos de escravos que conseguiram fugir dos seus senhores e formavam neles ambientes de vida alternativa ao trabalho escravo e ao serem estudados hoje, são verificados como sendo “espaços de resistência cultural e preservação da cultura africana” (PADILHA, 2012, p. 2). Nesses redutos simples os negros encontravam oportunidade para um resgate da língua e da religião deixadas na África. O surgimento desses grupos implicou em forte resistência por parte do regime dominante no país. A partir da metade do século 18 havia ordem para que todo negro encontrado fosse marcado com ferro em brasa com um F de fujão na testa. Nos casos de reincidência, uma orelha lhe era cortada. Entretanto, mesmo essas medidas drásticas não conseguiam impedir a fuga dos escravos e o consequente crescimento dessas pequenas e, a princípio, insignificantes cidadelas de refúgio. Eram nelas que se juntavam os fugitivos que conseguiam romper as barreiras da condição opressora em que viviam. À medida que cresciam em número, os quilombos iam provocando preocupações que chegaram à coroa portuguesa, a ponto de o Rei tentar definir o que significavam: Quilombo era, na definição do rei de Portugal, em resposta à consulta do Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740, ‘toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles’ (MOURA, 1989, p. 11).. A definição, entretanto, era incompleta, mas foi ela quem modelou toda uma geração de pesquisadores brasileiros da temática quilombola, que viam os quilombos apenas como negação do sistema existente. Somente no final da década de 1970 começam a aparecer novas.

(26) !26. possibilidades de entendimento da vida escrava. Pelos novos estudos atribui-se a esses antigos escravos uma vontade de liberdade e essa visão parece captar mais claramente a realidade que se alastrava pelo Brasil afora e que corroía por dentro o regime escravocrata. A fixação dos fugitivos nesses novos espaços, geralmente de acesso difícil, longe dos leitos de rios, era uma forma de defesa contra as buscas empreendidas pelos senhores de escravos para a recaptura dos negros (JORGE e BRANDÃO, 2012). Matoso (1982), em seu livro “Ser escravo no Brasil” reforçou a visão do desejo de liberdade do escravo como sendo não somente ligado à alforria. Essa ruptura de modelo foi fundamental para as discussões que se seguiram acerca do tempo da escravatura (apud ENGEMANN, 2006). Para além da definição oficial via-se que “a organização dos quilombos era muito variada, dependendo do espaço ocupado, de sua população inicial, da qualidade do terreno em que se instalavam e das possibilidades de defesa contra as agressões das forças escravagistas” (MOURA, 1989, p. 34). A rebeldia intrínseca da força quilombola era uma “[…] rebeldia contra os padrões de vida impostos pela sociedade oficial e de restauração dos valores antigos” (CARNEIRO, 1947, p. 14). As palavras da pesquisadora Ilka Boaventura Leite (2008, p. 995, 996) são relevantes: As centenas de insurreições de escravos e as formas mais diversas de rejeição ao sistema escravista no período colonial fizeram da palavra ‘quilombo’ um marco de luta contra a dominação colonial e de todas as lutas dos negros que se seguiram após a quebra desses laços institucionais.. Cabe questionar o que seria da escravidão no Brasil se não existissem esses movimentos que faziam contraponto a ela. Em seus estudos, Leite (2000, p. 338) acentua o aspecto dinâmico desses redutos: “Destruídos dezenas de vezes, reaparecem em novos lugares como verdadeiros focos de defesa contra um inimigo sempre ao lado”. Essa descrição oferece um pequeno vislumbre, onde se escondem lutas jamais conhecidas pelas gerações posteriores porque nunca foram narradas. São realidades que se perderam para sempre em meio a uma história conturbada. À medida que as populações de quilombos cresciam, as tensões aumentavam entre as forças que tentariam manter a escravidão a todo custo e os ideais crescentes de liberdade que, quais faíscas acesas na sequidão do regime vigente, se alastravam a ponto de produzirem focos difíceis demais de serem simplesmente apagados..

(27) !27. Sendo que esses quilombos passaram a significar algum tipo de esperança para negros fugitivos, chegar até essas comunidades, era um projeto arriscado para aqueles que buscavam nelas uma nova possibilidade de vida. Há relatos de sacerdotes católicos afirmando que os negros cometiam o “pecado mortal de desobediência” (CARNEIRO, 1947, p. 6) ao fugirem de seus senhores em direção aos quilombos e eram muitas vezes excomungados pelos religiosos. A questão é que a Igreja Católica medieval contribuiu ideologicamente para a manutenção do regime escravista. Teólogos importantes na história da Igreja, como Santo Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho, viam com normalidade a escravidão e a encaravam como instrumentos de correção para o ser humano, “ferramentas de controle e punição dos homens marcados pelo pecado original” (VAINFAS, 1986 apud FREITAS, 2011, p. 2652). No Concílio de Toledo ocorrido em 693 definiu-se que as igrejas possuíssem pelos menos dez escravos e determinou-se ainda que as igrejas que não tivessem esse número de escravos deveriam ser subordinadas àquelas que conseguiam tê-los e essa prática aparentemente perdurou por séculos (ENGEMANN, 2006). A carta enviada pelo reitor do colégio jesuíta de Luanda, Padre Luis Brandão, ao colega Alonso de Sandoval, missionário no Brasil, é bastante reveladora. A data da escrita é de 1611 e nela encontramos: Nunca consideramos este tráfico ilícito. Os padres do Brasil também não, e sempre houve, naquela província, padres eminentes pelo seu saber. Assim, tanto nós como os padres do Brasil compramos aqueles escravos sem escrúpulos […]. Na América todo escrúpulo é fora de propósito […]. É verdade que, quando um negro é interrogado, ele sempre pretende que foi capturado por meios ilegítimos […]. É verdade que, entre os escravos que se vendem em Angola nas feiras, há os que não são legítimos […]. Mas estes não são numerosos e é impossível procurar estes poucos escravos ilegítimos entre os dez ou doze mil que partem cada ano do porto de Luanda. (BOXER, 1981, p. 47 apud FREITAS, 2011, p. 2653).. Essa carta revela um pouco da força esmagadora de manipulação existente. Era visão corrente dos religiosos que a escravidão era resultado do pecado e que os negros deveriam suportá-la como forma de redenção. Sendo assim, os escravos deveriam, não apenas conformar-se com o jugo, mas serem gratos por ele, pois através dele poderiam ser conduzidos ao paraíso eterno (ENGEMANN, 2006). Então, não é exagero afirmar que o clero e os senhores-de-escravos haviam desenvolvido um sólido sistema de terror que visava sufocar quaisquer propósitos de rebeldias.

(28) !28. por parte dos escravos, garantindo dessa forma o funcionamento adequado do sistema em vigor (FREITAS, 1984). Reprimir qualquer aceno de liberdade era tarefa primeira do poder opressor oficial e todos os meios possíveis seriam empregados para o cumprimento da inglória tarefa. No entendimento de Florestan Fernandes (2013, p. 57): “A resistência escravista se apegava a motivos estritamente egoísticos, pois viam no escravo uma inversão de capital e um instrumento de trabalho que deveria ser espremido até o bagaço”. Cada quilombo que nascia se constituía em clara brecha que se abria por dentro do regime escravista e que haveria ainda de destruí-lo. É exatamente nesse contexto tensionado que a história registra sobejamente o nascimento e crescimento do maior e mais importante dos quilombos, o dos Palmares, entranhado nas matas interioranas do que hoje é o estado de Alagoas, e de Zumbi, tido hoje como seu herói maior, que se tornou um símbolo da saga do negro brasileiro em busca da liberdade. De acordo com Carneiro (1947, p. 11): “A floresta acolhedora dos Palmares serviu de refúgio a milhares de negros que escapavam dos canaviais, dos engenhos de açúcar, dos currais de gado, das senzalas, das vilas do litoral, em busca da liberdade e segurança […]”. A existência do Quilombo dos Palmares sintetiza, de certa forma, um ideal libertatório que nunca deixou de existir entre os milhões de negros assaltados brutalmente nas imensas florestas da África, levados sob condições miseráveis em navios negreiros que singravam os mares e espalhados pelo Brasil afora nas terríveis condições impostas pela escravidão aqui reinante. De fato, “Palmares foi a maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina. Durou quase cem anos e, durante esse período, desestabilizou regionalmente o sistema escravocrata” (MOURA, 1989, p. 38). Sem dúvida, esses anos todos de resistência foram marcados por um número sem fim de histórias, contadas e recontadas nas décadas subsequentes ou perdidas para sempre da memória popular. É possível que jamais se conheça todas as nuanças do que acontecia naquele período turbulento, mas é certo que houve inúmeras tentativas do poder dominante no sentido de esmagar esse estado clandestino, que era tido como um pedaço da África existindo no nordeste brasileiro. Se Palmares era visto como uma espécie de Estado, é porque os historiadores encontram indícios de que ali existia uma forma de governo tida como organizada e complexa, sob a liderança de Zumbi em seu período final. É dito que “Os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram.

(29) !29. considerados livres, mas os escravos raptados e trazidos à força, das vilas vizinhas, continuavam escravos” (CARNEIRO, 1947, p. 42). Essa parece ser uma informação relevante: ex-escravos podiam fazer de gente de sua própria raça, novos escravos, repetindo, assim, os mesmos modelos opressores existentes no sistema oficial. As leis podiam ser tão rígidas no quilombo quanto aquelas impostas pelos brancos que eram donos de escravos. Quando se lembra que: “Se algum escravo fugia de Palmares eram enviados negros no seu encalço e, se capturado, era executado pela ‘severa justiça’ do quilombo” (idem, p. 42), podese ter uma pálida ideia de como a liberdade pode encontrar dificuldade em florescer adequadamente, mesmo sob condições aparentemente favoráveis a ela. O fortalecimento crescente de Palmares deveu-se a uma série de fatores convergentes que são analisados por Moura (1989, p. 41): Aproveitando-se da impenetrabilidade da floresta e também da fertilidade das terras, da abundância de madeiras, e da caça, da facilidade da água e de meios de defesa, foram-se aglomerando, reunindo novos membros e aumentando consequentemente o número de foragidos.. Carneiro (1947, p. 31) explicita que: “Nas matas os negros encontravam todos os elementos necessários à sua vida” e durante décadas sobreviveram a todas as inúmeras investidas que tinham como finalidade extirpar a existência daquele grupo de resistência. Freitas (1984, p. 173) acrescenta em sua pesquisa: A revolta palmarina ocupa um lugar único nessa história. Não foi apenas a primeira, mas, também, a de maior envergadura. No decurso de quase um século os escravos da então capitania de Pernambuco resistiram às investidas das expedições continuadamente enviadas por uma das maiores potências coloniais do mundo.. Esse “lugar único” ocupado por Palmares na história foi reforçado pelos estudiosos que trouxeram à luz inúmeros fatos relevantes acerca da valentia e determinação desse povo que insistia em sobreviver. No transcorrer dos anos, quando novas derrotas são impostas pelo Quilombo ao Estado, as investidas se tornam mais acentuadas. Para sufocar Palmares “uniram-se a Igreja, os senhores de engenho, os bandeirantes, as estruturas do poder colonial, as tropas mercenárias, criminosos com promessa de liberdade e, finalmente, toda a estrutura escravista” (MOURA, 1989, p. 61). Era apenas uma questão de tempo para que o sonho de liberdade sintetizado por aquela revolta fosse finalmente sufocado, o que de fato aconteceu, com o massacre liderado por Domingos Jorge Velho em 20 de novembro de 1695, que não poupou.

(30) !30. sequer velhos ou crianças, na tentativa de varrer para sempre todo o ideal representado pelos súditos de Zumbi, o maior dos ícones do grande quilombo. A morte do líder pretendia significar o fim de um ciclo e a permanência indefinida da escravidão e, para cumprir esse intento, os requintes de crueldade que festejaram a derrota de Palmares não poderiam ser poupados. Freitas, (1984, p. 167) narra que, “[…] depois de morto, o general negro fora castrado e o pênis enfiado na boca; haviam-lhe arrancado um olho e decepado a mão direita”, e mostra ainda o pretenso coroamento da retumbante vitória: “Salgada com sal fino, a cabeça seguiu para Recife, onde o Governador Melo e Castro mandou espetá-la em um chuço no lugar mais público da cidade” (idem, p. 167). Entretanto, se o fim de Palmares marcou o término de um ciclo, ele não se traduziu no esperado fim do sonho de liberdade, mesmo que ela só fosse possível após mais de duzentos anos depois da derrocada do simbólico quilombo. Soares (1999, apud MATTOS, 2006, p. 168, 169) acha que, quando esses fatos vieram à tona houve uma importante inversão na história oficial onde o negro Zumbi, líder do mais importante quilombo do Brasil, “[…] tornou-se, no lugar da princesa, o verdadeiro herói da população negra brasileira”.. 1.3 A LIBERDADE A PARTIR DE 1888 E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA OS EXESCRAVOS Diante do que se expôs até aqui como breves recortes de fatos históricos, convém reafirmar que a conquista da almejada liberdade por parte do escravo jamais pode ser pintada em tons róseos, visto que a simples promulgação da lei de 1888 que o livrava das algemas significou apenas um passo a mais no longo processo que se desenvolvia no decorrer das décadas e mesmo séculos que o precederam. Calheiros e Stactler (2010, p. 136) mencionam em seus estudos que, ainda em 1850, quando os homens ligados ao poder escravizador perceberam que os rumos da abolição eram inevitáveis, criaram a Lei n. 601, instituindo “a propriedade privada como única forma de acesso a terra, impedindo esse direito a negros e mulatos”. Décadas mais tarde as famílias que se juntaram no Sertão do Valongo desconheciam todo esse contexto, mas estavam, sem o saberem, presos a essas amarras institucionais. Porém, mais que isso, iniciavam ali uma trajetória que os conduziria a algo muitas vezes.

(31) !31. maior que o estreito horizonte que vislumbravam enquanto se instalavam nas terras úmidas e indesejadas daquela região. E a partir daquele micro território experimentariam a vivência da liberdade numa terra que era sua. As pesquisas e observações feitas por Florestan Fernandes se constituem em um grande acervo de informações relevantes e auxiliam as pesquisas do presente, no sentido de desmistificar muitos conceitos que são, na verdade, distorções da história. Nos anos que se sucederam à Lei Áurea, os negros foram, via de regra, transformados em ‘párias’ da sociedade. Para Fernandes (2007, p. 66): Na verdade, a abolição constitui um episódio decisivo de uma revolução social feita pelo branco e para o branco. Saído do regime servil sem condições para se adaptar rapidamente ao sistema de trabalho, à economia urbano-comercial e à modernização, o ‘homem de cor’ viu-se duplamente espoliado. Primeiro, porque o ex-agente de trabalho escravo não recebeu nenhuma indenização, garantia ou assistência; segundo, repentinamente, em competição com o branco em ocupações que eram degradadas ou repelidas anteriormente, sem ter meios para enfrentar ou repelir essa forma mais sutil de despojamento social.. É deveras importante essa reconfiguração, segundo a qual a revolução foi levada a efeito “pelo branco e para o branco”. Para ele: “A abolição ocorreu em condições que foram verdadeiramente ‘espoliativas’, do ponto de vista da situação de interesse dos negros. Eles perderam o único ponto de referências que os associava ativamente à nossa economia e à nossa vida social” (idem, 2007, p. 56). Doravante, massas imensas de escravos recém-libertos teriam que encontrar seu novo espaço na sociedade e esse é apenas parte do cenário encontrado para a formação de comunidades desses “párias”, à semelhança daquela existente no Sertão do Valongo, sujeito do presente estudo. De acordo com uma pesquisadora: “A ocupação do campo, embora estratégia de sobrevivência, também contribuiu para a invisibilidade desses grupos étnicos” (CASTELLS, 2006, p. 420). Provavelmente a invisibilidade não era tão somente buscada e pretendida por esses ex-escravos. Ela era parte de um processo social, nem sempre inconsciente, porém sua meta era invisibilizar os antigos escravos, pois, como aponta Fernandes (2007, p. 62): “Apesar de seus ideais humanitários, o abolicionismo não conduziu os ‘brancos’ a uma política de amparo ao negro e ao mulato”. As consequências disso foram desastrosas e se espalharam em todo o tecido social do Brasil. Para Leite (1996), essa invisibilização funcionou como mecanismo de negação do negro, tentando legar ao esquecimento essas populações no reforço do mito da igualdade racial no país..

(32) !32. Após o 13 de maio de 1888 defensores de primeira mão do abolicionismo e exescravos criaram a Guarda Negra, que pretendia ser uma força de resistência em favor da liberdade recém cedida às populações escravas. Era o temor real de que o processo sofresse alguma reversão por parte daqueles que não se conformavam com a nova realidade nacional. O medo de uma reescravização não era infundado, visto que muitos interesses foram contrariados pelos ideais abolicionistas. Na pesquisa de Mattos (2006, p. 108) encontra-se registrado que: “Após a lei, e durante alguns anos, os ex-senhores continuaram a se organizar politicamente demandando indenização pela perda de sua propriedade em escravos”. Existia agora toda uma conjuntura de demanda por uma mão de obra que se configuraria doravante sob outras condições que não aquelas regidas pela escravidão. A tese defendida por Guimarães (2011) aponta para o fato de que o período imediato da abolição até a criação do Estado Novo em 1930, foi marcado pelas tentativas dos escravos libertos de sentirem-se parte da nação brasileira, e foram essas tentativas que esbarraram em fortes questões raciais presentes no seio da sociedade. Apesar de tudo, a mudança desencadeada a partir da abolição produziu efeitos que se fizeram sentir ao longo de toda a história ulterior a ela. Vista sob a ótica do presente, distanciada há mais de 120 anos do fato, sua realidade pode ser melhor pesquisada e objetivada, pois conta com a ajuda dos acontecimentos históricos que marcaram a sociedade brasileira desde então. Na visão sociológica de Fernandes (2008, p. 32): As sociedades humanas sempre se encontram em permanente transformação, por mais ‘estáveis’ ou ‘estáticas’ que elas pareçam ser. Mesmo uma sociedade ‘estagnada’ só pode sobreviver absorvendo pressões do ambiente físico ou de sua composição interna, as quais redundam e requerem adaptações sociodinâmicas que significam, sempre, alguma mudança incessante, embora esta seja com frequência pouco visível […].. Essas “pressões” mencionadas por Florestan Fernandes envolviam, provavelmente, todos os substratos da sociedade, pois suas realidades práticas estavam presentes em todo o vasto tecido social brasileiro. O Brasil pós-escravagista careceu, sem dúvida, de grandes processos adaptativos para fazer frente à nova conjuntura posta, e os ecos dessa pressão adaptatória ainda podem ser sentidos pelos quatro cantos do país. Analisando a complicada situação do homem que foi liberto da escravidão e fazendo uma crítica severa à realidade que sua extensa e frutífera.

Referências

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