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PRESERVAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

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3. A LIBERDADE E A RELIGIÃO COMO CONSTRUTORES DA IDENTIDADE

3.3 PRESERVAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

Em seus estudos de Doutorado, quando analisa aspectos da condição humana nesse tempo de globalização, Carvalho (2008, p. 3) afirma que: “Nesse caos desorganizado os homens parecem estar perdendo o sentido da vida, da própria identidade”. Sua declaração encontra eco em muitos outros pesquisadores que estudam essas questões na atualidade. Muito antes de Carvalho, os apontamentos do Sociólogo alemão Max Weber já fazia críticas severas à situação encontrada em seus dias, no declínio do século 19 e nos primeiros anos de século 20. Em 1903, em seu livro: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber (2004, p.48) disse:

Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas da ação econômica.

O que essa pesquisa pretende nesse tópico é apresentar certos lampejos de traços identitários dos cidadãos valonguenses que, forjados a partir da liberdade e da religião, apresentam-se como únicos, diferenciados e que, portanto, merecem ser preservados, pois aparentemente não estão amarrados às lógicas impostas pelo capitalismo reinante, sendo

assim uma identidade social propícia a reflexões. Pelo visto nas referências bibliográficas pesquisadas, apesar de não haver intencionalidade para tal, o que se apresenta entre os valonguenses é um certo contraponto silencioso ao modelo vigente, marcado pelo estilo de vida existente naquele território.

Na percepção de Santos (2012, p. 88): “A identidade de um povo se constrói basicamente em dois sentidos: primeiro, diferenciando-se do que lhe é exterior, isto é, dos outros povos ou nações; segundo, definindo o que somos ou que deveríamos ser”. Aqui está uma pista importante para a pesquisa. O modelo de identidade valonguense, que este estudo não dá conta de aprofundar-se devidamente, diferencia-se do exterior ao Sertão, e não poderia ser diferente, visto que determinadas características encontradas ali não se repetem, como é o caso de uma comunidade quilombola praticante do adventismo. Sendo fenômeno único no Brasil, construiu-se ali também uma identidade única. Sem dúvida, essa questão é merecedora de novos estudos.

Uma outra declaração webariana ganha importância nessa discussão. Para o sociólogo:

O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais. Essa inversão da ordem, por assim dizer, ‘natural’ das coisas[…] é estranha a quem não foi tocado por seu bafo (WEBER, 2004, p. 47).

É uma metáfora interessante, visto que, dificilmente, e mesmo na ambiência do Sertão, pode-se viver a sociedade sem ser tocado por esse “bafo”. Preservar, portanto, culturas de povos como o quilombo valonguense e outras inúmeras sociedades espalhadas no território brasileiro, apresenta-se como uma questão importante, pois essas minúsculas gentes podem representar verdadeiros movimentos de uma contra-cultura silenciosa frente às lógicas do capitalismo do século 21. Pesquisá-los é uma tarefa legada à Academia enquanto motivada a fazer com que suas pesquisas apontem caminhos que possam ser viáveis para a melhor condição da vida humana.

Enquanto existe uma percepção de desmoronamento de vários elementos geradores da coesão social, onde valores que eram sólidos foram sendo derretidos por processos nem sempre compreendidos (BAUMAN, 2001, apud CARVALHO, 2008), a existência de lugares onde a vida social ainda é compartilhada de maneira diferente daquela experimentada pela cultura massificada gera interesse, pois entende-se que esses lugares são espaços também

viáveis para o desenvolvimento humano. As observações mais recentes acerca do Valongo dão conta de que não estão alheios ao mundo que os cerca. As suas casas possuem televisão, vários moradores portam telefones celulares, os jovens se esforçam para estudar na cidade próxima e a Prefeitura local mantém uma pequena escola dentro da comunidade. Ou seja, há sinais de que não estão completamente fechados às novidades do seu tempo, apenas vivem suas próprias lógicas e parecem adaptar suas práticas elementares àquilo que julgam como sendo possível de integração ao seu modo de vida simples.

De que forma o cidadão do Valongo lida com sua identidade individual e sua identidade enquanto grupo não é uma questão para a qual essa pesquisa encontrou alguma pista e permanece em aberto, visto que há sempre uma tensão entre esses dois aspectos nos estudos acerca da identidade.

Para Faria e Souza (2011, p. 37):

Identidade se revela como invenção e não descoberta; é um esforço, um objetivo, uma construção. É algo inconcluso, precário, e essa verdade sobre a identidade está cada vez mais nítida, pois os mecanismos que a ocultavam perderam o interesse em fazê-lo, visto que, atualmente, interessa construir identidades individuais, e não coletivas.

Sendo verdade essa afirmação final, torna-se necessário que se investigue com mais rigor a maneira como nessas comunidades o movimento mostra-se contrário a esse, ou seja, a identidade coletiva, pelo verificado, confunde-se com aquela individual e em certos momentos a força da comunidade é superior ao indivíduo. É, de fato, uma questão que carece de uma investigação específica. É importante observar que: “O habitat da identidade é um campo de batalha. Ela só se apresenta no tumulto. Não se pode evitar sua ambivalência. Ela é uma luta contra a dissolução e a fragmentação, uma intenção de devorar e uma recusa a ser devorada” (FARIA e SOUZA, 2011, p. 37). Como se pode falar em preservação da identidade para um povo se os teóricos da área se referem a ela como carregada de tensão? Nas palavras de Boaventura Souza Santos (2001, p. 107, apud Coutinho, Krawulski, Soares, 2007, p. 31), “cada um de nós é uma rede de sujeitos em que se combinam várias subjetividades […]. Somos um arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas”.

Se o tumulto onde se constrói a identidade não pode ser evitado, diversas estratégias são utilizadas para se desenvolver maneiras de agir dentro do ambiente social onde se habita.

Segundo Levi (1997, p. 175, apud ENGEMANN, 2006, p. 33): “A estratégia, nesse caso, é coletiva e visa à manutenção das posses ou do bem-estar de seus membros”. Analisando as realidades vistas no Valongo, entende-se que as estratégias usadas para a sobrevivência do grupo estiveram mais ligadas ao bem-estar, visto que todos os estudos apontam que aquele povo tem baixa ligação com as questões pertinentes às posses materiais. Para Hall (1999, p. 29), “à medida em que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social”. Não se sabe até que ponto a forma coletiva vivida como estratégia de sobrevivência e manutenção por esse povo tenha gerado nele certo comportamento, que já foi apontado nos estudos como sendo desinteressado ou pouco ligado aos interesses de desenvolvimento, visto, por exemplo, nos procedimentos legais de documentação das suas terras, ainda hoje carregados de pendências e deixados de lado.

Pesquisar na literatura disponível acerca da identidade valonguense se configura como tarefa difícil de ser realizada, visto que nas fontes existentes o termo identidade quase não é mencionado especificamente. Entretanto, é possível percebê-la quando se faz uma busca mais profunda, especialmente nas entrelinhas dos muitos textos produzidos acerca deles. Para que se busque uma compreensão mais apurada dessa identidade, é preciso que se lance mão do conceito de tática e para isso os escritos do historiador francês Michel de Certeau servem perfeitamente ao propósito. Para Certeau (1998, p. 35): “O caminhar de uma análise inscreve seus passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito tempo”. É nesse parâmetro que essa pesquisa se inscreve.

Em seus estudos, Certeau (1998, p. 39) discute as lógicas encontradas nos jogos de estratégias que os seres vivos praticam, e que na verdade são astúcias milenares que podem ser observadas em peixes que se disfarçam para escapar dos predadores naturais ou de insetos que se camuflam para atacar uma pequena presa. No âmbito da atividade humana, ele diz que “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. É exatamente essa espécie de “invenção” que pode ser verificada enquanto tática valonguense de viver sua identidade peculiar em meio à sociedade onde está inserida a sua comunidade. Se essas maneiras não forem percebidas, qualquer compreensão que se pretenda desses grupos sociais estará incompleta.

As observações feitas por Certeau (1999, p. 39) estavam ligadas primeiramente ao uso “astucioso”, não autorizado, que os consumidores faziam dos produtos disponibilizados pelos fabricantes e ele o ampliou para o comportamento geral dos indivíduos e povos em diferentes situações. Ele percebeu que as pessoas encontravam maneiras próprias de utilização dos bens adquiridos, e eram maneiras geralmente bem distintas daquelas impostas pela ordem do fabricante. Essas táticas, segundo ele, estão presentes nos movimentos humanos e são elas que “reorganizaram clandestinamente o funcionamento do poder” (idem, p. 40). Elas são, na verdade, uma espécie de “trampolinagem […] e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais” (idem, p. 79). Ou seja, aquilo que o poder público deseja ou impõe que o valonguense viva, não corresponderá necessariamente àquilo que será vivido pela comunidade. Mesmo no aspecto religioso, essa lógica poderá ser encontrada também. Ao longo do tempo, o modo de viver a religião adventista dentro do quilombo pode não ser exatamente aquele imaginado pelos líderes adventistas para aquele grupo. A identidade valonguense como povo se fez, então, a partir de táticas criadas por eles mesmos e que dão a eles um formato específico, como é, de acordo com Certeau, o caso das sociedades em geral. A própria adesão ao adventismo pode ter se convertido em tática de inclusão no mundo dos brancos.

Certeau (1999, p. 92) menciona certos esquemas que se operam na literatura, mas a partir de sua inferência a isso, pode ser dito que semelhante maneira de fazer também pode ser vista no espaço do Valongo. Segundo ele: “Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele ai instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos imprevisíveis”. Ora, cabe questionar aqui as referências encontradas em outras pesquisas sobre os valonguenses, onde há indícios de certa crítica preconceituosa ao modo de vida optado pela comunidade. Seriam apenas acomodados por causa da religião que escolheram, ou fizeram opção para si de um modo de vida que lhes é viável e funcional, dentro dessa pluralidade característica dos tempos atuais? Gonçalves e Silva (1998, p. 103) parecem ter entendido o valor da pluralidade revelada no seio de comunidades quilombolas ao viver suas práticas culturais com liberdade na “[…] maneira peculiar de dançar, louvar os Orixás, a Alá ou a Cristo, preparar quitutes, festejar, trabalhar, viver e construir o conhecimento”.

Eles metaforizaram a ordem dominante: faziam-se funcionar em outro registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificaram-no sem deixá-lo. Procedimentos de consumo conservavam a sua diferença no próprio espaço organizado pelo ocupante.

Essa descrição mostra novamente aspectos da tática, que é a “arma do fraco” (idem, p. 101). Ela encontra sentido no caso do Sertão, onde a vida funciona sob outro registro, que não aquele imposto pela ordem social dominante, pelas lógicas capitalistas praticadas na sociedade. Pode ser dito que os valonguenses fazem, como descrito no pensamento de Engemann (2006, p. 33), um “uso diferenciado dos elementos econômicos, sociais, políticos e culturais presentes na realidade na qual se inserem”. Poderia acrescentar-se a esses elementos também aqueles religiosos que são ali encontrados. Ao desenvolver um próprio uso diferenciado de tudo aquilo que cerca sua realidade, uma identidade é formada dentro do território valonguense. Castells (2007, p. 73) lembra, ao falar da identidade negra daquele povo que “[…] se reafirma, por sua vez, a sua condição de diferentes, mas de iguais no sentido de participação da identidade nacional”.

Ao desenvolver a discussão até aqui, cabe questionar, a fim de continuá-la. Seriam realmente, como aponta a pesquisa, a liberdade e a religião fatores essenciais na construção de uma identidade nos valonguenses? É bem provável que outros estudiosos possam apontar elementos diferentes desses a partir de novos levantamentos feitos, entretanto, pelo que se pesquisou na literatura disponível, poder-se-ia dizer que a hipótese apresentada pode ser testada e apresenta elementos de validação, cujos argumentos acerca da liberdade e da religião foram apresentados, respectivamente, nos primeiros capítulos do trabalho. Com a costura que está sendo realizada dentro dos aspectos da identidade, pretende-se apresentar uma contribuição, ainda que pequena, para a continuidade da discussão no espaço acadêmico, tendo em vista o entendimento de que, os estudos sobre os quilombolas valonguenses, ainda estão longe de se esgotarem.

Em seus estudos sobre identidade, Stuart Hall (1999, p. 12) percebeu que:

A identidade […] preenche o espaço ‘interior’ e ‘exterior’ - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.

É exatamente no lugar objetivo do Sertão, onde os valores ligados à liberdade, deixados como herança pelos fundadores da comunidade, bem como os elementos da religião vivenciados pelos herdeiros dos fundadores a partir da década de 1930, estão de tal forma internalizados que se tornaram parte do cidadão do Valongo, que seria impossível separá-los. Tais processos podem ser comparados ao que Coutinho, Krawulski e Soares (2007, p. 31) identificaram como sendo “[…] rupturas nas trajetórias identitárias ao longo da vida […]”, mas afirmam que estas quebras “[…] são resignificadas através de novos processos de identificação […]” (idem). É a partir dessas verificações que se pode afirmar que a mudança de rumo religioso ocorrida naquelas terras quilombolas significou uma ruptura positiva no lugar, com efeitos duradouros sobre seus moradores, internalizada de tal forma, que preencheu um espaço existente e deu contornos à sua identidade cultural.

Não se pode deixar de mencionar que todo o processo de identidade do indivíduo se torna cada vez mais, no dizer de Hall (1999, p. 12), “[…] provisório, variável e problemático”. Os três termos usados pelo pesquisador apontam para as dificuldades existentes quando se estuda o tema. Sendo provisório, captar um fragmento da identidade do indivíduo requereria um determinado momento propício, mas ele é variável, então sua essência escapa ao observador. Por fim, sendo problemático como Hall apresenta, a identidade está sujeita a revisões constantes e, ainda assim, continua sendo um aspecto não completamente compreendido. O pesquisador Michael Pollak (1992, p 204) coloca variáveis a essa discussão que devem ser levadas em conta. Segundo ele:

Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.

Para o interesse da pesquisa, caberia examinar que formas de negociação foram usadas pelos cidadãos do Valongo com os outros exteriores ao seu mundo. Se eles encontravam hostilidade na proximidade do território e aceitação longe dali, na ambiência da irmandade da Igreja que os acolhera, é provável que isso tenha exercido forte influência no sentimento religioso e também identitário dessas pessoas. Estaria o referencial de aceitação desse povo ligado mais aos irmãos de fé que a outras pessoas fisicamente mais próximas a eles? É mais um desafio que esse espaço não dá conta de apresentar alguma resposta.

Outra observação apresentada nas pesquisas de Hall, (1990, p. 13) é que: “[…] dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em direções diferentes, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. Toda essa efervescência identitária provoca crises em diferentes momentos da vida do indivíduo ou de um grupo social e o valonguense, ainda que não entenda o significado de tais conceitos, vivencia também os seus efeitos no cotidiano dentro dos limites do Sertão. E também vale dizer que a identidade de um povo apresenta, via de regra, essas contradições com as quais os indivíduos que são parte desses grupos sociais se debatem frequentemente. Mais adiante ele mostra que “[…] as sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente” (idem, p. 14).

Na ambiência do Sertão, longe das discussões acadêmicas sobre temas para eles complexos e até incompreensíveis, os valonguenses tocam sua existência de forma tida como simples, provavelmente com pouca diferença do que viveram seus antepassados recentes. Mesmo que ainda não tenham sido feitos levantamentos in loco acerca de sua identidade enquanto povo, os dados apresentados aqui apontam pistas que podem ser relevantes para outras investigações. Há indícios deixados em outras pesquisas de que desejam continuar a existência no território que herdaram dos primeiros moradores, ou seja, usufruírem da liberdade que têm, ao modo deles, sem muita interferência do governo em seu destino.

Para o Teólogo José Comblin (1998, p. 7), “a liberdade não é inata, não é expontânea. É um dom de Deus e uma vocação que se busca com paciência e perseverança durante a vida toda”. É através dessa liberdade que desfrutam da religião que abraçaram. Observando sua prática religiosa, que é apontada nesse texto como segundo elemento construtor da identidade daquele povo, Guimarães e Reis (2008, p. 177) perceberam que:

A igreja propicia formas de sociabilidade. As festas dos valonguenses são principalmente religiosas. Também há viagens para encontros entre grupos religiosos de outras localidades, alternativas para visitar outros lugares, divertir-se e conhecer pessoas.

Esse tipo de convivência observado na comunidade não parece mostrar-se como algo alienante, senão como um espaço encontrado por esses descendentes de escravos para o fortalecimento dos seus laços. E de acordo com o filósofo Roger Scruton (apud HALL, 1999, p. 48):

A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo e faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo - como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação de algum arranjo ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar.

Aparentemente, essa intuição do autor tem validade para uma pequena comunidade, como a encontrada no Valongo, onde, diante da situação de relativo isolamento, tal identificação propicia uma coesão grupal para os indivíduos, fornecendo-lhe elementos necessários ao bem estar.

Pesquisando o quilombo, a Antropóloga Cleidi Albuquerque (2008, p. 219), apresentou em um artigo sobre a estética encontrada ali, uma percepção bastante pessoal. Disse ela:

Na comunidade do Valongo não há um discurso nativo para a Estética como existe para a Religião, para o Trabalho ou para o Estudo. Mas quero aqui mostrar que lá existem, tanto em ações cotidianas como excepcionais, uma atitude de cuidado com coisas, situações. Mais ainda, há em relação a muitas dessas coisas e situações, um esmerado cuidado, um consistente e até prazeroso esforço que transcende a ações e atitudes meramente organizativas para a manutenção da própria vida, uma busca estética.

Essa atitude percebida como sendo de esmerado cuidado com as coisas e situações por parte do cidadão valonguense, seria tão somente um comentário elogioso feito pela pesquisadora, ou se refere a algo mais entranhado no jeito de ser do povo do Sertão? Mais adiante ela afirma que “[…] esta postura não quer negar a existência de contradições, confrontos, frustrações, conflitos, pois tudo isso é inerente a toda dinâmica social” (idem). Então temos aí um elemento da identidade valonguense, ligado a uma estética simples, porém carregada de cuidados com relação às coisas.

Observa-se, portanto, que o jeito de viver do povo valonguense se constitui num minúsculo recorte de uma verificação mais ampla, percebida em outras partes, onde se apresenta “uma articulação ‘saudável’, entre o modo de vida tradicional, às culturas ‘antigas’ e a industrial moderna” (ibidem, p. 222). Para que uma articulação assim seja feita e se mostre válida, o pesquisador Lévi-Strauss indica caminhos a serem trilhados. Ele mostrou que:

Desde o renascimento, compreendeu-se que nenhuma civilização pode

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