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II. A prosódia materna na perspectiva lingüístico-discursiva e a interface

2.2 A linguagem do corpo: os movimentos e o tocar na interação

Sabemos que os recursos não-verbais ou não-lingüísticos utilizados no processo interativo podem vir ou não acompanhados de vocalizações. Podemos observar, ao analisar os episódios interativos entre mãe-crianças gêmeas, cega e vidente, uma diversidade de recursos não-verbais, que indica significativa dimensão da linguagem não-verbal. Entre esses recursos, podemos mencionar: os gestos, como o gesto de apontar, os movimentos corporais, as expressões faciais, posturas, o direcionamento do olhar e o toque, ou melhor, o gesto de tocar, que tende a ser dimensionado nos episódicos interativos entre a díade mãe-criança cega. Considerando a existência dessa diversidade de recursos não-lingüísticos, torna-se relevante enfocar essas possibilidades da linguagem do corpo. É o que pretendemos, neste tópico. Em relação ao gesto de apontar, Cavalcante (1994) realizou estudo do tipo longitudinal bastante significativo, considerando a transição do período pré-lingüístico à aquisição da linguagem verbal da criança.

A autora (op. cit.) concebe o gesto de apontar como elemento de um processo de co-construção diádica e sugere que a trajetória gestual realiza-se por meio de um processo de construção social. Ao observar esta trajetória, Cavalcante (op. cit.) constata uma diversidade na configuração física do gesto de apontar. Além do gesto de apontar convencional (extensão de braço e dedo indicador em direção a um objeto) e do apontar exploratório (apontar convencional com o dedo indicador tocando no objeto que o gesto discrimina), já mencionados na literatura, a autora evidencia outras configurações físicas deste gesto, ampliando suas tipologias morfológicas. Descreveremos abaixo algumas das outras formas que o gesto de apontar assumiu no decorrer das interações, conforme os dados encontrados pela autora.

- Apontar com dois dedos: o dedo mediano acompanha o dedo indicador na posição

semifletida.

- Apontar com três dedos: o dedo indicador encontra-se estendido e os dedos mediano

e anelar acompanham o gesto na posição semifletida.

- Apontar com toda a mão: todos os dedos da mão estão estendidos em direção a um

objeto, mas o dedo indicador permanece em posição de maior extensão em relação aos demais.

- Insistência gestual: envolve o apontar convencional em cadeia, ou seja, um após o outro, em direção ao objeto discriminado.

Estas configurações serão importantes nas análises dos episódios interativos entre a díade mãe-criança cega e a díade mãe-criança vidente.

Numa perspectiva semiótica, Rector e Trinta (1990) desenvolveram um estudo acerca dos movimentos corporais. De acordo com esses autores, os movimentos corporais

verdadeiramente significativos são aprendidos, pois o ser humano só os adquire no decorrer de sua vida social.

No período pré-lingüístico, em geral, a comunicação acontece por meio do corpo, cujos movimentos traduzem necessidades fisiológicas, carências afetivas, sinas de reconhecimento, entre outros. Com a aquisição da linguagem falada, essas manifestações continuam a acontecer (Ibidem).

Acreditamos que uma comunicação realizada por meio do corpo envolve uma gama de manifestações não-verbais como o sorriso, ao reconhecer alguém ou como demonstração de satisfação em relação a determinada situação, por exemplo, expressões faciais variadas de acordo com o contexto afetivo, gestos, acenos com a mão “dar tchau”, meneios com a cabeça para um lado e para o outro, ao negar e para cima e para baixo, indicando afirmação, etc. Ao estudar a comunicação humana, em particular os movimentos significativos do corpo, Rector e Trinta (1990) apontam trabalhos característicos, dentre os quais nos deteremos em alguns que consideramos pertinentes. Entre eles, encontram-se a proxêmica, denominada pelo antropólogo norte-americano Edward Hall, a qual se dedica a estudar o espaço (distância) que os interlocutores ocupam nas interações; a cinésica e a tacêsica, as quais descreveremos melhor a seguir.

A cinésica é a disciplina responsável pela descrição das posições e da movimentação do corpo humano, na comunicação interpessoal (Ibidem).

Rector e Trinta (op. cit.) afirmam que essa disciplina parte de determinados pressupostos, alguns dos quais apresentamos:

- nenhum movimento ou expressão facial é destituído de significado no contexto em que ocorre;

- a postura corporal, o movimento e a expressão facial são padronizados, ou seja, culturalmente determinados;

- os movimentos corporais possuem valor comunicativo.

A análise cinésica envolve sobretudo movimentos faciais, em particular o movimento dos olhos, posturas corporais, isto é, a maneira e a posição dos corpos estabelecidos pelos sujeitos e a gesticulação (RECTOR; TRINTA, op. cit.).

Rector e Trinta (1990) compartilham com Locke (1997) a idéia de que o rosto é o mais expressivo instrumento da comunicação não-verbal. Corraze (1982) acrescenta que a face é um meio desencadeador social privilegiado.

Para Locke (op. cit.), o rosto humano desempenha papel ativo no processo comunicativo quando este ocorre por meio do contato face- a- face entre os interlocutores,

uma vez que a estrutura do rosto identifica o falante e o interlocutor, fornecendo, a cada um deles, a informação mais importante da interação social.

Locke (op. cit.) volta-se ao seu trabalho intitulado The role of the face in vocal

learning and the development of spoken language (1993) e reafirma a importância do rosto no

processo comunicativo, descrevendo algumas contribuições e papéis do rosto na comunicação, já descritos pelo próprio autor no referido trabalho. Listaremos abaixo contribuições e papéis do rosto descritos por ele:

- o rosto revela o estado emocional e a aprovação do falante em relação ao interlocutor; - pode reforçar, aumentar ou contradizer, de maneira não intencional, a mensagem nominal; - é capaz de transmitir informações em relação aos aspectos do ambiente que comandam a atenção do falante;

- assinala o desejo de dominar ou ceder;

- transmite, através de recursos não verbais, como movimentos de cabeça, sorrisos, olhares, franzir da testa, bocejo, etc, as reações dos interlocutores às mensagens faladas.

Vale salientar que as expressões, informações ou mensagens variadas que o rosto é capaz de transmitir ao interlocutor na interação dependem do canal e da percepção visual para serem compreendidas. Então, como ficaria o papel do rosto para uma criança cega, que não pode contar com o canal visual? Continuaria a apresentar a importância destacada por Locke no processo comunicativo? Neste caso particular, podemos afirmar que o rosto não poderia ser considerado o mais expressivo canal da comunicação não-verbal, uma vez que o canal visual encontra-se inativo. Neste caso, outras vias de comunicação devem ser privilegiadas, como mostraremos neste capítulo.

Além dessas contribuições acerca do rosto no processo interativo, apresentadas por Locke em seu trabalho nomeado acima, o autor (1997) sugere que há uma harmonia entre os movimentos faciais e a voz, que tendem a tornar-se um sistema unificado.

Locke (1997) observa que o bebê apresenta um interesse ativo pelos movimentos faciais e pela voz humana. Por meio de suas ações, o bebê é capaz de influenciar os aspectos prosódicos e a expressão facial produzida pelos tutores.

Voltando a refletir sobre o caso de uma criança cega, a partir das considerações apresentadas por Locke (1997), outras questões chamam-nos a atenção: será que essa criança também é capaz de influenciar, de alguma forma, a expressão facial de seus tutores, de sua mãe? Ou será que, como não dispõe do sentido da visão, volta a sua atenção para a voz materna, influenciando-a em suas características prosódicas? Procuraremos responder tais questionamentos no decorrer da análise dos episódios interativos entre a mãe e a criança cega.

De acordo com Kerbrat-Orecchioni (1990), que se insere na perspectiva da Lingüística Interacional21, a comunicação humana é multicanal, uma vez que faz uso de um material comportamental constituído não apenas por palavras, mas também por gestos, inflexões, olhares, mímicas, etc. Para Rector e Trinta (1990), os sentidos humanos (visão, audição, tato, olfato e paladar) servem efetivamente para a comunicação social e são considerados parte integrante de toda a comunicação do corpo.

Considerando as observações apresentadas pelos autores acima, poderíamos pensar que, na falta, ausência ou funcionamento inadequado de algum canal comunicativo, como, por exemplo, o visual, a comunicação pode tornar-se efetiva por meio de outros canais, como a audição e o tato. A audição possibilita detectar sons emitidos, permite que o indivíduo reconheça a voz do interlocutor e as características prosódicas da fala, como entonações, variações de altura e de velocidade, etc. O tato favorece o contato físico com o interlocutor e com os objetos externos. Como já apresentamos no começo do capítulo os parâmetros prosódicos e as características prosódicas da fala materna, que podem ser percebidos pela audição, voltar-nos-emos neste momento, às contribuições do tato no processo interativo.

Montagu (1988) afirma que o significado original do termo tato está relacionado ao sinônimo de toque, contato, ou seja, ao ato de tocar ou encontrar.

De acordo com os papéis que desempenham no comportamento, o autor (op.cit.) distingue três formas de toque, o social, o passivo e o ativo. O toque social envolve o tocar em situações sociais, o qual estimula os vínculos sociais, a dependência e a integridade social. O toque passivo está relacionado ao contato da pele do sujeito com um agente externo, como por exemplo, uma superfície áspera que é deslizada sobre dedos imóveis. Enquanto o toque

ativo envolve o ato do contato pele-objeto, a exploração e a manipulação efetuadas pelo toque

do indivíduo. Neste tipo de toque, tem-se a estimulação dos sistemas receptores nos músculos, tendões e articulações, ou seja, o sistema cinestésico. É este último tipo de toque que iremos registrar nos episódios interativos entre a díade mãe-criança cega, a díade mãe-criança vidente e entre a tríade mãe-crianças cega e vidente.

Segundo Rector e Trinta (1990), o estudo da comunicação pelo tato é chamado de tacêsica. Os autores dizem que o tato envolve a capacidade de tocar e sentir objetos externos. O toque é a primeira forma de que os seres humanos dispõem para comunicar. Montagu (1988) concorda com esta idéia quando diz que a pele é considerada o primeiro meio de

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A Lingüística Interacional surge primeiramente, na França, e algumas teorias contribuíram para seu surgimento como a análise do discurso, as gramáticas textuais e as teorias pragmáticas, sob sua duas formas essenciais: lingüística da enunciação e teoria dos atos de linguagem (KERBRAT-ORECCHIONI, 1990).

comunicação do ser humano. Considerando a evolução dos sentidos, pode-se afirmar que o tato ou sistema tátil foi o primeiro a surgir e a entrar em atividade, ou seja, a se tornar funcional no ser humano. Montagu (1988) afirma que as primeiras percepções do bebê sobre sua realidade são realizadas por meio da pele.

O tato, embora possa variar estrutural e funcionalmente com a idade, permanece como fundamento sobre o qual se assentam os demais sentidos. No parto, o tato é o sentido que se encontra mais desenvolvido no bebê. Apesar de os demais sentidos estarem funcionando e desempenhando seu papel cada vez mais importante em sua percepção e comunicação com o mundo externo, principalmente com a mãe, nenhum deles é tão básico quanto o tato (MONTAGU, op. cit.).

Nota-se que, nos primeiros meses após o nascimento, as percepções táteis, visuais, auditivas, gustativas estão sendo organizadas pelo o bebê. A partir disso, ele começa a diferenciar-se do mundo. “A diferenciação do si- mesmo em relação ao mundo dos objetos é uma conquista notável e para sua consecução o tato desempenha um papel de destaque” (Ibidem: 242).

Estudos sugerem que a criança necessita ser tocada, levada ao colo e acariciada para que seu desenvolvimento seja saudável. Os contatos físicos e a estimulação rítmica que acompanham os movimentos corporais, o toque suave das mãos, do colo, as carícias, os cuidados e a proteção nos braços favorecem experiências essenciais de tranqüilização para o bebê. “O ser humano pode sobreviver a privações sensoriais extremas de outra natureza, como a visual e a sonora, desde que seja mantida a experiência sensorial da pele” (Montagu, 1988, p. 106).

Enquanto sistema sensorial, a pele é, em grande medida, o sistema de órgãos mais importante do corpo. O ser humano pode passar a vida toda cego, surdo e completamente desprovido dos sentidos do olfato e do paladar, mas não poderá sobreviver de modo algum sem as funções desempenhadas pela pele (Ibidem: 34).

De acordo com o autor, o contato corporal com a mãe possibilita ou favorece o primeiro contato da criança com o mundo; por meio deste, a criança participa de uma nova dimensão da experiência, a do mundo do outro (MONTAGU, 1988).

É este contato corporal com o outro que favorece a fonte essencial de conforto, segurança, calor e crescente aptidão para novas experiências e a base disso tudo está na amamentação (Ibidem: 102).

Pode-se dizer que a amamentação constitui o fundamento para o desenvolvimento posterior dos relacionamentos sociais humanos e que a comunicação que o bebê recebe através do calor da pele da mãe representa a primeira experiência social de sua vida (MONTAGU, op. cit.).

O bebê responde pela primeira vez a uma estimulação tátil quando esta se dá ao redor da boca. Isto pode justificar por que as primeiras comunicações com o mundo exterior são realizadas de maneira gradual, pelo bebê, por meio dos lábios, como ocorre durante a amamentação (MONTAGU, op. cit). Talvez também justifique o fato de que nos primeiros anos de vida, é comum observarmos que a criança manipula e explora os objetos colocando-os na boca.

Além disso, Montagu (op. cit.) afirma que o balançar do próprio corpo está relacionado a uma forma de satisfação substituta para a necessidade de estimulação por movimentos passivos que normalmente seria obtida com a mãe, que carrega o filho em contato com o corpo.

Com o balançar da cadeira de balanço, a cada mudança de posição, o bebê, deitado no ventre da mãe, toma consciência de diferentes movimentos. “A estimulação inicial, contida nos movimentos suaves da cadeira, facilitar-lhe-ão aprender a equilibrar-se sobre seus próprios pés” (MONTAGU, op. cit., p. 165).

Assim, uma estimulação tátil adequada durante a infância é de bastante importância para o desenvolvimento saudável do comportamento do sujeito.

Para Montagu (op. cit., p. 127), “ver é uma forma de tocar à distância, mas tocar fornece a verificação e a confirmação da realidade”. Diante dessa afirmação poderíamos voltar-nos às observações de Rector e Trinta (1990) que dizem que é a visão que permite a percepção à distância, enquanto que o tato é um sentido de proximidade.

Quando a experiência visual é inadequada, o tato acrescenta a dimensão ausente e completa a experiência (MONTAGU, op. cit.). Diante dessas reflexões, observamos a relevância do toque, em especial, para a criança cega, uma vez que na ausência do canal visual, o toque, possibilita que a criança “olhe”, sinta, conheça, por este outro sentido, a realidade, o mundo que a cerca.

Gostaríamos de destacar que nosso estudo situa-se no campo da aquisição da linguagem, mais precisamente na perspectiva estrutural proposta por De Lemos e seguidores (Scarpa, Cavalcante, etc). Porém, há poucos estudos inseridos nesta perspectiva que abordam a linguagem não-verbal, dessa maneira, reportamo-nos a autores inseridos em outros campos

(semiótica, lingüística interacional, etc) que se dedicam à linguagem do corpo, ou seja, à linguagem não-verbal.

Vimos, ao longo desse capítulo, a prosódia materna e os recursos da linguagem não-verbal na interação mãe-criança. Em relação a estes últimos, destacamos o papel do toque no processo interativo, uma vez que desempenha papel relevante na díade mãe-criança cega. Acreditamos que a mãe, ao interagir com seu filho cego, poderá utilizar estratégias com base na voz, ou melhor, na prosódia e no toque da pele, minimizando os efeitos negativos que a cegueira pode trazer à criança em processo de aquisição de linguagem. No próximo capítulo, tocaremos na questão das interações mãe-criança vidente e mãe-criança cega.