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A luta quotidiana pela Democracia

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 73-76)

No Portugal da Expo´98, os comportamentos racistas são mais evidentes e as violações aos Direitos Humanos por parte das forças de segurança continuam. Não se trata de uma opinião minha, mas de três notícias dos jornais que apenas justapus. As denúncias e os alarmes vêm de um estudo sobre racismo nos países da União Europeia e do relatório da Amnistia Internacional (AI).

Felizmente já não estamos no tempo em que tais informações eram consideradas subversivas e pura e simplesmente riscadas a azul, cor da censura. Isso não quer dizer que tais notícias possam ser, ou sejam, encaradas de forma tranquila e pacífica pelos responsáveis políticos. Prova disso é que os nossos governantes e outros políticos deixam a terceiros a tarefa de o recordar. Quando houve uma primeira denúncia do trabalho infantil em Portugal, num órgão de comunicação social europeu, caiu o Carmo e a Trindade contra tamanha ofensa à honra nacional. Passados uns anos a política de combate ao trabalho infantil tornou-se um desiderato internacional, no quadro do qual tive a satisfação de saber que Portugal era o único País que reconhece o problema no seu espaço de soberania. A minha satisfação não se deve, evidentemente, ao facto da existência e persistência de um fenómeno que hipoteca irremediável e irreversivelmente não apenas o futuro das crianças envolvidas como a qualidade de vida das suas famílias e de todo o País. Satisfaz- me antes saber que não serão mais mobilizados recursos do Estado com o fim de encobrir e negar as evidências, contribuindo assim para a subsistência de fenómenos indesejados mas complexos e difíceis de lidar. O Estado português fica assim, portanto, mais disponível de recursos e em melhores condições morais para lutar contra o trabalho infantil.

Porque é que o mesmo não sucede com a violação dos Direitos Humanos ou o Racismo?

Não faltam apelos de alguns altos responsáveis nesse sentido: recordo-me do PR denunciar a situação calamitosa das prisões e pedir debates a esse respeito. A AI lembrou que formação académica sobre Direitos Humanos está actualmente a ser dispensada aos candidatos a empregos nas forças de segurança. Espera, assim, que com o tempo a situação actual possa ser paulatinamente melhorada.

A vontade das elites do poder, há que reconhecê-lo, é insuficiente para transformar o mundo naquilo que eles próprios possam desejar. E os responsáveis que disso tenham consciência, a noção das limitações do seu poder pessoal para representar os desejos de toda a sociedade, são humildes e devedores. Sabem que, de certa forma erradamente, a maioria da população considera o poder como descendente das antigas lanças dos guerreiros ou

do chicote do capataz: “seus desejos, senhor, são ordens”. É que habituada a observar aqueles que se desenrascam pela vida, entre a fidelidade canina, a inveja, a maledicência e a baixa auto-estima e auto-confiança, de forma tão bem sucedida e vivaz na nossa terra que, apesar das grandes mudanças que estamos também a viver, ainda são tomados como modelos do carácter nacional, e habituada a sofrer humilhações de cada vez que sente o impulso de tomar iniciativas expontâneas e independentes, é com dificuldade que se podem seguir raciocínios simpáticos mas filosóficos ou académicos, como este, sobre como poderia funcionar a Democracia.

Uma parte dos poderosos prefere dar prioridade ao uso da sua posição social privilegiada para retirar proveitos próprios. Querem é que não os chateiem e nem se quer aceitam ser incomodados no seu rame-rame burocrática e legalmente defendido por teias que a pouco e pouco e por campanhas, os jornais vão, às vezes, descobrindo. Estou a pensar nas conversas sobre incompatibilidades ou sobre práticas de gestão pouco ortodoxas do ex- comissário da Alta Autoridade Contra a Corrupção.

Os poderosos são-no precisamente porque controlam formas muito diversificadas de acesso a recursos a que os não poderosos, por definição, não acedem. E não será por os jornais denunciarem casos socialmente chocantes, porque se tratam de verbas violentas e inconcebíveis para a maioria da população, que os mecanismos de desigualdade social, particularmente fortes em Portugal, irão deixar de funcionar. Outras denúncias já correram para o mesmo mar.

A Democracia pode ser politicamente estável precisamente porque, embora os discursos e as denúncias, em certas condições, sirvam para acabar com situações negativas, quando as condições ambientais, socioeconómicas, de disposição da opinião pública são adversas, as coisas ficam na mesma. A violência pode, evidentemente, dispersar as teias de pessoas e grupos que se enredaram em alguma situação pantanosa. Apenas esse não é o modo civilizado de fazer as coisas, já que não se conhece situação mais propícia à barbárie que a guerra ou a confusão. O que quer dizer que a estabilidade da Democracia passa por evitar situações de tensão social em que a violência possa ganhar terreno. Há então que mudar alguma coisa para satisfazer (real ou virtualmente, cada um julgará em cada caso) os desejos dos mais aflitos, dos mais pressionados com as dificuldades da vida.

Infelizmente a fase histórica que vivemos é caracterizada por um progresso vivo para alguns e maiores dificuldades para outros: é isso que quer dizer desigualdade. Em relação a alguns casos estamos habituados a pensar são as pessoas que são ruins e que parecem gostar de se atolar ou tolinhos que não sabem como sair das situações negativas em que vivem. Noutros casos, em geral quando se trata de pessoas que nos tocam afectivamente, acusamos o sistema e a sociedade de encurralarem as pessoas, de não lhes oferecerem ou apenas mostrarem alternativas viáveis e positivas.

Em todos os casos, claro, ambas as vertentes, pessoal e social, psicológica e política, têm a sua influência, maior ou menor. E há que, tanto quanto possível sempre, trabalhar conjugadamente em ambas as frentes para melhorar ou apenas aliviar as situações.

Por isso não é bom atacar o sistema em bloco ou as pessoas, como tal. Há que ter ponderação e procurar descobrir, conforme as possibilidades e a situação de cada um, como melhorar a situação. Isso é que é democrático. E a Democracia é avivar a esperança de que tal ponderação pessoal e colectiva é útil, oferece resultados.

Desenvolvi estes longos pensamentos a pensar em como é grave e atentatório da Democracia a situação que a seguir vou contar. Não tanto pelo caso concreto, que ainda assim afectou e afecta a vida, que não é fácil, de um ex- recluso estrangeiro à procura de um lugar na sociedade portuguesa, mas pelas rotinas que deixa adivinhar.

A história conta-se em breves frases: saído da prisão, verificou que não lhe foram entregues todos os pertences que entregara à chegada. A situação não será invulgar. É mais grave porque incluíam documentos pessoais exigíveis pelas autoridades portuguesas para efeitos de fixação eventual de residência. Documentos cuja segunda via se revelou inviável conseguir. Dois amigos acompanharam o ex-recluso, cansado de diligências vãs e de conversas estranhas. Na prisão, de pronto, também já cansado da história, o guarda de serviço mostrou cópia de um registo não assinado que teria encontrado no arquivo a comprovar como tudo tinha sido entregue a familiares, também eles não identificados. Mas, dizia o guarda, porque não estava assinado, o registo que se escondia no arquivo prisional, não responsabilizava o estabelecimento Prisional, nem o guarda, nem o chefe de guardas, nem o Director ...

Queixámo-nos do argumento surrealista e pedimos para falar com alguém superior. Um pouco depois fomos informados que ninguém estava disposto a receber-nos (como somos chatos!) e que, se desejássemos, sugeria a Direcção que se fizesse um registo no livro de reclamações.

Fizemos o registo de reclamação nº 1, por acaso e para verem como lá as coisas funcionam bem. Ainda não fomos presos6 nem informados das acções administrativas que se seguiram por causa disso. Mas, tendo em conta a origem da sugestão, ficámos com a sensação de completa e consciente irresponsabilidade dos “responsáveis”7 prisionais pelas marteladas quotidianas que possam dar na vida democrática deste País.

ANTÓNIO PEDRO DORES

SOS-Prisões Julho 1998

6 É uma graça àqueles e àquelas, que são muitos, alguns até com responsabilidades políticas e sociais específicas,

que julgam, se calhar com razões para isso, que o exercício dos direitos, em especial os de cidadania mas também os burocráticos, como é o caso, pode ser interpretado como uma afronta à autoridade.

7 Recentemente argumentando perante uma Juiz, uma Directora de um estabelecimento prisional, imagino

que por razões jurídicas que não atinjo completamente, não hesitou em declarar a sua irresponsabilidade perante factos eventualmente ocorridos nesse mesmo estabelecimento!?

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 73-76)