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A visita de Yeti 8 à sala presidencial

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 82-85)

“Releve-se sobretudo a cultura da responsabilidade (deixada por Cavaco Silva e seus governos). Foi a partir das maiorias do PSD que se pôs fim a um infernal ciclo de instabilidade que fazia com que, em Portugal, a culpa morresse sempre solteira”

José Manuel Durão Barroso, em Diário de Notícias, 18 de Agosto de 1997

“ A ética da responsabilidade carece de uma verdadeira revolução cultural (...) a todos os níveis, a nível pessoal e profissional”

António Vitorino, em Diário e Notícias, 23 de Agosto de 1997

Um lapso de informação embaraçou o Presidente dos portugueses. O Ministro da Justiça diz que é grave, mas que lapsos destes são uma tradição, procurando assim desmobilizar a oposição. Promete que episódio semelhante não mais voltará a acontecer. Mas tendo em conta que há cerca de um ano o Provedor de Justiça apontou como uma das deficiências do Sistema Prisional a ausência de informação sobre os presos, e de então par cá não se conseguiu avançar nesse domínio, o que nos garante que daqui para a frente será diferente?

O Estado, costuma dizer-se, não está vocacionado para determinadas actividades, em particular aquelas que pedem eficácia de procedimentos. A lógica burocrática do Estado, segundo a velha teoria weberiana, é construída para garantir certos objectivos fundadores da Democracia e do Estado de Direito (por ex: igualdade de tratamento de todos e de cada um dos cidadãos, obediência hierárquica à autoridade legítima). Donde decorre uma certa rigidez e demora no funcionamento dos mecanismos do Estado que a actividade privada dispensa, mais vocacionada que está para atingir objectivos com o máximo de economia, mesmo correndo o risco de ultrapassar direitos estabelecidos, sem se vincular a processos de decisão democráticos.

O Estado português foi construído ao arrepio das garantias que Weber verificou serem o próprio fundamento normativo do Estado alemão. Pelo contrário, a seguir à Segunda Grande Guerra, com a vitória dos Aliados, Salazar travestiu o Estado Novo de Democracia parlamentar, manipulando a Lei e o Direito de forma grotesca. Com o 25 de Abril muita coisa havia de mudar. Mas muita outra foi tão difícil de expurgar que continua a ameaçar-nos quotidianamente. Tal como na história de Asterix, pode dizer-se que as prisões, em Portugal, passaram incólumes pelo processo de democratização do Estado — ainda incompleto noutras áreas, mas nem sequer começado nas prisões. Com a diferença que em vez de simpáticos personagens de BD, em ambientes putrefactos como estes desenvolvem-se personalidades típicas do regime anterior, simbolizadas pelo Remédios do Herman: para além do autoritarismo e da contradição entre públicas virtudes e vícios privados, encobertos em supostas razões de segurança do Estado, faz-se da Lei letra morta, reclamando-a para legitimar repressão, repressão e repressão, mesmo pondo em risco direitos humanos elementares dos reclusos. Segundo tais mentes desactualizadas e distorcidas, tal é a única forma de reintegração conhecida. Veja-se a inoperância do Inst. de Reinserção Social e de qualquer dos serviços sociais das prisões, incluindo serviços médicos, educativos ou simplesmente alimentares. Veja-se a recorrente ocorrência de casos de mortes, noticiadas nos jornais como mal explicadas pelas autoridades. Leiam-se as intenções do actual governo em atacar em primeiro lugar os problemas das instalações - degradadas de mais 30 anos de inactividade política nesta zona de penumbra que mancha a sociedade portuguesa. Repare-se como, ao contrário do que aconteceu no campo das forças policiais - não muito distante do campo prisional, mas sob a tutela de outro Ministério — só agora os funcionários dos serviços prisionais se aperceberam que as mudanças indispensáveis dificilmente se farão por iniciativa político-burocrática. Começaram a reclamar publicamente contra “acções de propaganda demagógica para fazer querer que o sistema prisional está a mudar consideravelmente”. Bem hajam e que saibam seguir as pisadas dos sindicalistas da Polícia. É a única esperança que nos resta de civilizar os serviços prisionais, dada a inoperância política do governo e da oposição perante a situação reconhecidamente calamitosa das prisões.

É que em Portugal, como nos ensina Boaventura Sousa Santos, entre a letra do Direito e as práticas quotidianas vai uma longa distância — como todos pudemos verificar recentemente nos casos da TAP com os pilotos, da indústria farmacêutica com os médicos. Isso tem sido politicamente tolerado pelas diferentes tutelas partidárias, durante todos estes anos, e continua a sê-lo. É efectivamente muito incómodo para os políticos, como nos mostra a série “Sim, sr. Ministro”, confrontarem-se com os poderes e interesses instalados. Tal falta de vontade política tem consequências: Os portugueses estão sujeitos a um sistema policial que tem manchado de sangue muitas famílias e algumas vezes o nosso desejo de nos apresentarmos como um País respeitador dos Direitos Humanos. Neste campo, com todas as dificuldades previsíveis e com a ajuda da luta sindical dos polícias, alguma coisa tem vindo a mudar. No caso das prisões, desde relatório do sr. Provedor de Justiça, tão contestado pelo Ministério da Justiça, que já apontava como uma das lacunas graves do Sistema Prisional a completa falta de informação sobre os reclusos, nada foi feito para atacar o problema.

Que o erro do sr. Presidente possa servir para que a reserva de informação burocraticamente organizada possa ser violada — quem ignora que até os Juizes, tão ciosos das suas prerrogativas, no caso dos Tribunais de Execução de Penas se limitam a ratificar as instruções dos Serviços Prisionais, em vez de exercer efectivamente, como seria de esperar, a Justiça? Talvez dessa forma os direitos dos reclusos deixem de ser violados impunemente, talvez a vida dos funcionários possa ser dignificada, talvez as responsabilidades passem a ser assumidas.

Mais uma vez Portugal sai humilhado por manter vivas relíquias dum passado que preferimos esquecer, mas que emergem bastas vezes, demasiadas vezes, na vida dos portugueses. Desta vez foi atingido um símbolo do Estado. A oposição grita. O governo não se mostra preocupado. Pela nossa parte apelamos a um debate nacional capaz de produzir uma convergência de esforços da opinião pública, dos órgãos de comunicação social, dos sindicatos dos trabalhadores dos serviços prisionais, de organizações cívicas e de personalidades para pressionar a indispensável mudança do Sistema Prisional português.

ANTÓNIO PEDRO DORES

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 82-85)