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Prisões: a (im)possibilidade de reformas

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 89-95)

As experiências penitenciárias (todas elas) têm sido votadas ao fracasso. Os crimes não aumentam nem diminuem, seja qual for a moldura penal aplicada. Bem pelo contrário, existem casos, como em alguns estados dos EUA, em que o agravamento das penas veio aumentar o número de crimes.

A reincidência, independentemente da natureza e da factualidade dos “processos reintegradores”, nunca verificou nenhuma tendência para a redução. Precisamente porque a prisão embrutece e mata todas as capacidades humanas conducentes à adaptação à vida comunitária. Efectivamente, o encarceramento (objectivamente contra a natureza humana) gera fenómenos de revolta contra a “ordem social”. Sendo certo que podem ser implementadas algumas reformas, traduzindo-se em melhorias pontuais na vida dos reclusos, o que efectivamente é verdade é que a “melhoria” do sistema prisional só encontra uma resposta eficaz: a sua dissolução!

Compreensivelmente, vários cidadãos “honestos e livres” nos colocariam a questão: então como combater o “crime”? As causas da delinquência residem, fundamentalmente, em enormes desequilíbrios sociais. De um lado, a mais inumana das misérias, do outro, luxo e ostentação provocatória.

A História ensina-nos que, a prisão, ao invés de impedir a ocorrência de manifestações anti-sociais, bem pelo contrário, multiplica-as de forma absolutamente assustadora.

As prisões improvavelmente poderão ser espaços de socialização, pois a sua natureza é a antítese da vivência em comunidade. Toda a sua ambiência é artificial, e a expressão mais evidente da sua estrutura é direccionada para a repressão, anulação e esmagamento do indivíduo enquanto ser humano. Há várias formas de questionar os sistemas penitenciários. Pela nossa parte, não dissociamos as prisões do contexto social em que se integram.

O “crime” é uma característica da sociedade de classes. É o domínio de uma classe parasitária (e sedenta de rapina), sobre a imensa maioria dos que vivem o seu trabalho (e engordam quem detém o poder), que gera bolsas de exclusão. A maioria dos delitos são constituídos por “crimes” contra a propriedade. Se se abolisse a propriedade privada, a prática desses crimes extinguir-se-ia completamente. A partir do momento em que a propriedade fosse pertença de todos (e não de patrões e/ou do Estado), não passaria pela cabeça de alguém que um indivíduo se fosse roubar a ele próprio. Os próprios crimes contra as pessoas, como é o caso dos homicídios e agressões, têm na sua génese disputas por questões de propriedade e/ou problema de capital ou de utilização de bens comuns.

Os chamados “crimes passionais” podem ser considerados de natureza patológica, tendo nas suas mais remotas causas os conceitos dominantes no que concerne ao amor, à sexualidade, e à situação da mulher na sociedade. Numa sociedade sem classes, onde o desempenho de todos fosse direccionado para o bem estar comum, os casos de limite de elementos anti-sociais (como assassinos compulsivos ou sádicos) teriam uma única resposta: pura e simplesmente seriam banidos do núcleo populacional onde residem, votados ao desprezo de todos.

Ao contrário da cultura Judaico-cristã – assente no dogma do “pecado original” – nós, os que defendemos uma sociedade solidária e sem exclusões, consideramos que o ser humano é estruturalmente bom, e que são as circunstâncias e os antagonismos sociais que fazem com que as pessoas enveredem por “caminhos desviantes” (para utilizar uma expressão tão do agrado dos “criminólogos”).

Como é apanágio das “pessoas de bem”, já parti do princípio que o sistema “recuperava” (efectivamente) os que ultrapassavam a fronteira da legalidade. Cedo me desfiz dessa vã ilusão, embora convencido da possibilidade de reformas e da “bondade” individual de alguns responsáveis. Tenho hoje uma outra visão: não só não se vislumbra nenhuma possibilidade de reforma, como é já em si uma impossibilidade e perpetuação de um sistema assente no ódio e na arbitrariedade da punição. Que legitimidade têm uns para condenar os outros? Que diferença fundamental existe entre a perversidade da punição e a prática do delito? Apenas uma: enquanto a segunda é resultado individual, a primeira resulta da institucionalização de um fenómeno contra a natureza humana.

É evidente que, partindo-se desses pressupostos, não se pode concluir ser adequado virarmos costas a qualquer reinvindicação de reformas. Aliás, a nossa consigna fundamental de uma Reclusão com Direitos é, já em si, uma manifestação reformista e, até, contraditória, na medida em que, num contexto de privação de liberdade, a reinvindicação de direitos confronta-se com fenómenos que são a sua própria negação umbilical.

Movemo-nos, como já referi, num terreno contraditório. Mas, é um caminho necessário. O desenvolvimento da História não é uma coisa linear, bem pelo contrário, os caminhos das civilizações são feitos de desvios e sucalcos, são em si o reflexo da própria luta de contrários. Obviamente que qualquer intervenção de matriz social, terá de se desenvolver por etapas e ciclos históricos.

O que é absolutamente fundamental é a compreensão de que a nossa intervenção, no meio prisional, não se pode cingir a uma visão redutora, pois correríamos o risco de nos transformarmos numa associação filantrópica e “humanitária”. Bem pelo contrário, a nossa associação deve, cada vez mais, libertar-se do colete de forças do “proteccionismo” aos presos, ganhá-los para a luta social, intervindo horizontalmente na manta de retalhos da exclusão, e construindo corrente para uma intervenção política de novo tipo.

No fundo, trata-se de transformar o “activismo” associativo em militância política directa, intervindo na sociedade, comparticipando (com outros movimentos e organizações fora do sistema) no processo de transformação social que urge empreender. Só fora das prisões poderemos encontrar respostas para os problemas que se vivem no seu seio.

Parece-me ter sido esse o caminho que apontamos em Abril de 97, por altura da fundação da ACED. Circunstancialismos de vária ordem têm impedido de o seguir. Agora, que caminhamos para o nosso segundo aniversário, penso ser a hora de voltarmos às “origens”... ou, pelo menos, de retomarmos um debate que a urgência de inúmeras tarefas e/ou o nosso comodismo levaram a adiar.

CÁRCERE DE SINTRA, 19 DE AGOSTO DE 1998 ANTÓNIO ALTE PINHO

DA LIBERDADE E DA DEMOCRACIA

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja Aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

Onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém De nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

Conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, O vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto O que vos interesse para viver. Tudo é possível,

Ainda quando lutemos, como devemos lutar, Por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

Ou mais que qualquer delas uma fiel Dedicação à honra de estar vivo. Um dia sabereis que mais que a humanidade Não tem conta o número dos que pensaram assim, Amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

De insólito, de livre, de diferente, E foram sacrificados, torturados, espancados E entregues hipocritamente à secular justiça,

Para que os liquidasse com suma piedade e sem efusão de sangue.

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, A uma pátria, uma esperança, ou muito apenas À fome irrespondível que lhes roía as entranhas, Foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

E os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, Ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras Por serem de uma classe, expiaram todos

Os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência De haver cometido. Mas também aconteceu

E acontece que não foram mortos. Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

Aniquilando mansamente, delicadamente,

Por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, Foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

Há mais de um século e por violenta e injusta Ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, Que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

E de amor. Mas isto nada é, meus filhos. Apenas um episódio, um episódio breve, Nesta cadeia de que sois um elo ( ou não sereis )

De ferro e de suor e sangue e algum sémen A caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém Vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa – essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto Não é senão essa alegria que vem

De estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez Alguém está menos vivo ou sofre ou morre Para que um só de vós resista um pouco mais

À morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente,

Sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, E sobretudo sem desapego ou indiferença,

Ardentemente espero. Tanto sangue, Tanta dor, tanta angústia, um dia

- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga – não hão-de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável. Serão ou não em vão ? Mas, mesmo que o não sejam,

Quem ressuscita esses milhões, quem restitui Não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado ? Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes Aquele instante que não viveram, aquele objecto

Que não fruíram, aquele gesto De amor, que fariam « amanhã». E, por isso, o mesmo mundo que criemos Nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

Que não é só nossa, que nos é cedida Para a guardarmos respeitosamente Em memória do sangue que nos corre nas veias,

Da nossa carne que foi outra, do amor que Outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

Que política para a ACED?

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 89-95)