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Participar no debate em favor da Justiça

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 126-128)

A gravidade da situação da Justiça em Portugal já começou a ser debatida em público. Os políticos de maiores responsabilidades no País mostraram recentemente o seu desagrado e apelaram ao debate. Entendo ser obrigação da nossa Associação procurar participar nesse debate de interesse nacional, na modéstia das nossas possibilidades.

A Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento é estritamente areligiosa e apolítica e não representa outros interesses que não sejam os dos seus associados. Os actuais associados, um ano depois do início das actividades, são menos do que gostaríamos que fossem mas estão activos na procura séria de assumir posições fundadas na vida difícil das vítimas mais directas dos disfuncionamentos do Sistema Prisional português e nas dúvidas sobre o sentido de justiça que permite que tais realidades persistam. Não se conhece melhor sistema de justiça do que aquele que é independente dos restantes poderes sociais. Porém, tal autonomia não pode ser tal que se torne autista relativamente a outros valores civilizacionais, como sejam os princípios dos Direitos Humanos e do estado de Direito. Não nos satisfaz o facto de noutras partes do mundo as situações prisionais serem mais degradantes que entre nós, pois poderemos olhar noutras direcções e verificar realidades mais condignas. Temos, isso sim, que fazer o nosso próprio caminho, com os homens e mulheres reais que sofrem, justiçados pelos crimes que cometeram. A eles temos obrigação de deixar partas abertas para a dignificação pessoal e social, sob pena de seremos coniventes na construção de um gueto social, de uma sociedade paralela, que não pára de se avolumar, principalmente como consequência da guerra à droga.

Não queremos ser os defensores daqueles entre nós que cometeram actos anti-sociais ou que produziram vítimas. Queremos apenas chamar a atenção que a vingança, mesmo quando é produzida e legitimada por sistemas respeitáveis, não é um sentimento civilizado. O exercício da cidadania, da tolerância e da solidariedade pede-nos respeito e entendimento mesmo pelas situações humanas mais degradantes.

Porque sabemos que tais situações são próprias da vida humana, mas que são eventualmente episódicas, queremos ajudar quem quiser acabar com qualquer episódio mais indigno da sua própria vida. É nossa primeira tarefa combater os estigmas que procuram — barbara e cinicamente — perpetuar condições degeneradas, afectando, indiferenciadamente, os que querem reorientar a vida e aqueles que se misturam com os eles, procurando beneficiar da solidariedade que sempre acontece para manter comportamentos anti-sociais.

Claro que é praticamente mais fácil e menos dispendioso fechar as portas e os sentidos para os problemas da moral social e deixar um ou vários corpos de especialistas a tratar dos nossos problemas, que assim passam a ser um problema deles. Mas, como tudo na vida, mais tarde ou mais cedo virá o tempo de mudar a forma de tratar problemas que até certa altura pareciam estar a ser suficientemente bem resolvidos. A hora da Justiça, e em particular do Sistema Prisional, a que a nossa Associação está tradicionalmente mais ligada, parece estar a chegar. Cabe-nos assumir as nossas responsabilidades cívicas e participar nesse debate. Estamos de acordo: Portugal precisa de uma melhor Justiça!

Por isso decidimos fazer sentir às autoridades como um perdão parcial de penas seria um sinal de esperança que facilitaria o debate necessário. O princípio do castigo prisional é, precisamente, a noção de que a restrição da liberdade é algo de penalizante para qualquer indivíduo. Teoricamente é suposto ser este o único castigo legítimo nas sociedades modernas actuais. Na prática, e inevitavelmente, toda uma série de torturas e humilhações (de gravidade muito variável) acompanham a situação. Quando se trata de alguém que se nos tornou odioso, é satisfatório sabê-lo a sofrer e somos até capazes de pedir mais — como muitas vezes vemos na TV. Quando, ao contrário, são nossos amigos temos outra atitude, mesmo quando condenamos os crimes cometidos. A orientação da civilização ocidental permite-nos imaginar que, um dia, as penalizações para os actos criminosos possam ser mais humanas, i.e. mais satisfatórias para os amigos dos condenados, de quem se espera que ajudem à sua recuperação social.

O Estado moderno, de resto, tem, neste campo, responsabilidades e valências que, em Portugal, estão praticamente descobertas. São conhecidas as críticas à inoperância do Instituto de Reinserção Social. E aqui, num sistema tão importante para a Segurança dos cidadãos quanto a qualidade e quantidade de polícias, não se ouviu o clamor que há dois anos alguns observadores classificaram de histeria securitária. Isso revela objectivamente um entorse repressivo no conceito de segurança usado pelo Estado português, que devemos denunciar e combater.

A expressão escrita dos sentimentos de quem vive no sistema prisional pode parecer, e é, radical. Mas é, não só uma catarse necessária para quem sofre as iniquidades do sistema, como pode ser um bom pretexto para o exercício da cidadania. A futura integração social dos reclusos passa também pelo melhoramento das suas capacidades expressivas, que devem ser estimuladas e não reprimidas. É certo que por razões de formação, percurso e situação pessoal muitas das expressões usadas podem chocar. Mas a arte, os programas de televisão ou os artigos jornalísticos também chocam e nem por isso a democracia deixou de fazer o seu caminho. Sem tais choques é que a democracia não cresceria. Quem abusar da liberdade de expressão deve ser reprimido? Admitamos que sim. Mas terá que ser o sistema judicial a julgá- lo, sob pena de subversão dos princípios fundamentais da democracia.

Num país com o dinamismo social do nosso, à procura do seu lugar perto dos outros povos europeus, transformações rápidas da vida pessoal e social são vulgares. Mesmo assim temos dos mais baixos índices de criminalidade da Europa, em termos quantitativos mas principalmente em termos qualitativos. Só se compreende a maior taxa de encarceramento e de duração média de reclusão por uma desadaptação em os modos institucionais de tratar os desvios sociais e as novas realidades. É que se é verdade que as tendências anti-sociais crescem à medida em que os controlos sociais tradicionais se dissolvem, também é verdade que a maior quantidade e diversidade de oportunidades de inserção social dos indivíduos pede-nos uma moral mais tolerante e actividades de orientação social mais presentes. De preferência por iniciativa da sociedade civil emergente, já que as estruturas tradicionais têm mostrado alguma dificuldade em acompanhar as mudanças sociais muito rápidas que estamos a viver.

Para finalizar quero congratular-me pela iniciativa de pedido de Gabinetes Jurídicos nas prisões, citada no SOS de Março, por iniciativa do E.P. de Alcoentre e pela actividade de Malam Seide no sentido de empreender um processo de desenvolvimento social do bairro em que voltou a viver. São coisas como estas que dão ânimo e justificam o esforço da ACED para entrar no debate público sobre a Justiça em Portugal, e nos permitirão levar a um resultado útil a ideia de uma convergência de esforços para a mudança do sistema prisional.

ANTÓNIO PEDRO DORES

SOS-Prisões Abril 1998

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 126-128)