• Nenhum resultado encontrado

História de uma cabala judicial

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 131-133)

No dia de encerramento desta edição (15 de Novembro) vou ser ouvido em audiência de julgamento, onde sou acusado, pelo director-geral dos serviços prisionais, de alegada “denúncia caluniosa”.

Trata-se do 2º acto de uma fase encenada pelo Senhor Celso Manata, cujo primeiro acto ocorreu em Novembro de 1996. E, naturalmente, vou ali disposto a desmascarar a pandilha autoritária responsável por inúmeros desmandos cometidos nas cadeias portuguesas. E denunciar as prisões como autênticos campos de extermínio!

Confesso que não me surpreendeu este processo. Ocorre na razão inversa em que as queixas contra funcionários e responsáveis prisionais são paulatina e organizadamente arquivadas pelos senhores magistrados do Ministério Público.

Em 5 de Outubro de 1996 sou transferido por razões que desconheço (mas que não são difíceis de imaginar..) do Hospital de Caxias para o E.P. de Vale de Judeus. Um mês e meio depois, a 15 de Novembro, pela calada da noite, sou removido para o pavilhão de segurança do E P de Paços de Ferreira. Acusado de “pôr em causa a ordem e a segurança” do EP de Vale de Judeus, sou colocado em “medidas especiais de segurança” (artºs 222º e 115º da Lei 265/79), isolado da restante população prisional, com correspondência censurada, sujeito a uma só visita semanal de familiares directos, sendo igualmente determinado o varejo de arquivos e documentos pessoais e a autêntica devassa da minha vida privada.

Passados poucos dias decidi empreender uma greve de fome (que se prolongou por 30 dias), exigindo o levantamento das “medidas especiais de segurança” e a minha transferência para um EP da área de Lisboa, onde residem os meus familiares e amigos. Posteriormente, decidi apresentar uma queixa- crime contra o director-geral, onde o acusava de abuso do poder. De realçar que o ulterior inquérito interno não provou que eu, de facto, tivesse posto em causa “a ordem e segurança” do EP de Vale de Judeus.

Como é prática corrente, a minha queixa veio a ser arquivada, o que originou a queixa então apresentada, contra mim, pelo Sr Manata. Para além da queixa- crime, o director geral entendeu por bem exigir-me uma indemnização cível. Ficamos, assim, a saber que a honra e a dignidade do Sr Manata valem oitocentos contos, valor pedido na referida acção.

O responsável-mor das cadeias, pelos vistos, ficou muito traumatizado com a minha queixa. O que não deixa de ser estranho, pois em Junho de 1996, directamente num dos canais da televisão, foi apelidado de “mentiroso” pelo senhor Provedor da Justiça e, pelo que se saiba, não intentou contra este

acção criminal ou processo cível. É provável que os “traumatismos” e as “ofensas” do Sr Manata estejam sujeitas às variações de classe, e particularidades hierárquicas, de quem a profere...

E não são a mim que são imputadas violações dos direitos dos cidadãos, bem pelo contrário., sou perseguido por me colocar na primeira linha de denúncia das tropelias de um sistema prisional à margem da lei. Inversamente, durante este mandato, a instituição que o Sr Manata dirige já foi alvo de duas denúncias, do Conselho da Europa, dos atropelos aos direitos dos detidos, de dois relatórios desfavoráveis sobre a situação das prisões, promovidos pelo senhor Provedor da Justiça, de dezenas de queixas promovidas pela ACED e outras organizações, e de vários apelos do senhor Presidente da República ao debate democrático sobre o que se passa nas prisões portuguesas.

Conforme já tivemos ocasião de, por várias vezes, denunciar, existe uma política orquestrada de intimidação e silenciamento de associações e cidadãos que têm a coragem de denunciar os crimes cometidos em nome da autoridade do Estado. Os serviços prisionais são um pântano de iniquidade, corrupção e prepotência. São sistemáticas as perseguições a actividades cívicas, utilizando poderes legalmente conferidos pelo Estado para outros fins. È aberrante o incumprimento da legislação em vigor. São muito comuns os castigos a presos por “razões” ideológicas. Comuns os espancamentos arbitrários para “prazer” de sádicos fardados e para ”acalmar” doentes do foro psiquiátrico.

Absolutamente generalizada a negligência médica, com a contaminação massiva de reclusos, bem como medicamentos fora de prazo. Revelador o uso de transferências consecutivas como punição de espírito crítico e o direito à indignação. Total obstrução das liberdades democráticas. Violação permanente da intimidade dos reclusos e da sua correspondência.

Pelo modo como funcionam, pela perspectiva dos seus dirigentes e por uma política penitenciária reaccionária e desfasada no tempo, as prisões são autênticos centros de extermínio instituídos à sombra da autoridade do Estado. Ao não cumprirem os fins para que, aparentemente, foram criadas, nomeadamente a recuperação e a ressocialização, manifesta-se improcedente qualquer possibilidade de reforma. Assim sendo, é pertinente o debate sobre uma outra sociedade, onde as prisões tivessem o destino que merecem – a sua abolição!. Seguramente que, na audiência de julgamento se irá assistir a um debate entre a moral e a ética. Uma moral acobertada nas leis que nos são impostas. È o nosso ser mais profundo, a nossa mais generosa humanidade e cidadania em confronto com uma justiça ao serviço dos ricos, dos poderosos e dos sicários da repressão do Estado.

Por várias vezes tenho sido condenado, já fui arguido em vários processos, mas este tem novos contornos porque põe em evidência a legitimação (por via judicial) de um poder penitenciário autoritário, perverso, com 25 anos de atraso histórico.

Sou alvo de condenação porque sou contra o sistema. Repito-vos que sou inimigo da vossa ordem. E que, enquanto tiver um hálito de vida vos combaterei. Desprezo a vossa ordem, desprezo a parcialidade das vossas leis, desprezo a vossa autoridade assente em preconceitos morais e de classe. Sou um homem estruturalmente livre. Orgulho-me de pertencer a uma associação de cidadãos que fazem defesa dos princípios, da ética e da coerência a sua forma de estar na vida.

Se a intenção é calarem, enganam-se! Não me calam, não me submetem, não me institucionalizam!

ANTÓNIO ALTE PINHO

SOS Prisões Dezembro 99

No documento Vozes Contra o Silêncio (páginas 131-133)