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5. O ACONTECIMENTO ANTROPOFÁGICO

5.3. INSCRIÇÃO NA MEMÓRIA COLETIVA E DESACONTECIMENTALIZAÇÃO

5.3.3. A mártir

Marielle como mártir é simbologia de alguém que se devotou e morreu por uma

causa. É vítima e símbolo das opressões históricas que ela combateu. Sua aproximação com o divino possibilita pensar em um legado e em pessoas que por terem trabalhado ou convivido com Marielle são consideradas representantes dela, em um processo de transferência da força de representação.

Bauman (2007) descreve os mártires como “pessoas que enfrentam desvantagens esmagadoras”. O mártir sabe que carrega uma verdade indesejada e, por isso, sua morte se transforma em “significação de um testemunho de que há verdades que não podem ser caladas por gargantas grosseiras, não importa em que número” (BAUMAN, 2007, p. 57-58).

Diferentemente da heroína, de quem se espera uma vitória, a mártir vive por sua morte, que é um desfecho esperado e inevitável diante do poder das forças contrárias ao seu ideal. Suas características humanas a distanciam do divino. Sua narrativa dialoga com a de outros sujeitos históricos vencidos como Tiradentes, que representam uma vitória moral que não efetua imediatamente a mudança social reivindicada. A mártir é lembrada como alguém que tentou moralizar sua sociedade e alterar estruturas desfavoráveis à sua coletividade.

Como mártir, Marielle é aquela que se sacrificou pelo coletivo e cuja verdade não pode ser calada, como pontua Bauman. Em cartazes, palavras de ordem como “Marielle somos todas nós” enfatizam a representação de Marielle como a mártir que se tornou símbolo da causa que defendia, da causa feminista, antirracista, LGBT+, antiviolência e pró-direitos humanos.

Fonte: Facebook

Como mártir, Marielle se aproxima de figuras históricas como Zumbi dos Palmares, que, mesmo assassinado e vencido, se transformou em símbolo de resistência contra a escravização do povo negro no Brasil. Também a trajetória política e intelectual de Marielle Franco permite que ela seja inserida em um contexto de resistência aos processos de desigualdade, silenciamento e marginalização impostos a mulheres negras no Brasil.

A atuação de Marielle coaduna com a tradição do que Carneiro (2019) descreve como enegrecimento do feminismo, uma transferência de várias gerações de mulheres negras que dinamizam o feminismo, incluindo pautas que dão conta não só das desigualdades de gênero, mas de desigualdades raciais e econômicas que afetam as mulheres e estruturam a sociedade brasileira. Pensar a contribuição de mulheres negras ao feminismo é essencial para entendermos esse movimento e aqueles que decorrem dele no trabalho contra as diversas formas de opressão.

Imagem 33 — Tweet da deputada Talíria Petrone

Fonte: Twitter

A necessidade de continuidade do discurso da mártir é representada no postulado de legado, como no tuíte citado. A missão de dar continuidade à verdade da mensagem

de Marielle é atribuída às suas assessoras eleitas deputadas estaduais, Renata Souza, Mônica Francisco e Daniela Monteiro. Talíria Petrone, autora do tweet, descreve as correligionárias como “três sementes que brotaram do asfalto”. A ideia de uma semente é evocada diversas vezes quando se fala na representação de Marielle, aludindo à sua capacidade de inspirar outras mulheres por meio de sua trajetória e seu discurso que se mantêm em evidência.

O legado de Marielle Franco se baseia na lembrança de sua história de superação e engajamento que são inspiradores para a construção de novos quadros, que ganham projeção na cobertura midiática durante o pleito eleitoral de 2018. Reconhecendo a visibilidade do acontecimento Marielle, diversos atores e veículos de comunicação se interessam pela cobertura da campanha de mulheres negras e também da eleição de assessoras parlamentares de Marielle.

Imagem 34 — Montagem com fotos de eleitas nas eleições de 2018

Fonte: Facebook

Nessa montagem, na qual são destacadas as eleições de mulheres negras para o Congresso Nacional e para Assembleias Legislativas, a palavra de ordem “Marielle virou semente” é utilizada para estabelecer uma relação de causa-efeito entre o acontecimento Marielle Franco e a vitória de mulheres negras. Mesmo que elas tenham subjetividades e trajetórias políticas diferentes, é como se Marielle fosse um atrator que une a todas. Essa união se dá pela racialização desses corpos e seu lugar incômodo na democracia. Esse elemento explica que figurem como herdeiras de Marielle mesmo parlamentares mais experientes que ela, que conquistaram espaço na política antes dela e em outros partidos, como as septuagenárias Leci Brandão — cantora, compositora e deputada estadual de São Paulo pelo PCdoB — e Benedita da Silva — deputada federal do Rio de Janeiro e liderança histórica do PT local.

A força de Marielle Franco é transmitida à sua coletividade. Aqui, o acontecimento

antropofágico mostra sua força por produzir novas pautas e uma atração sobre tudo que

lhe atravessa, independentemente do grau de relação — algumas eram assessoras de Marielle, outras correligionárias como a primeira mulher trans eleita deputada estadual de São Paulo Érica Malunguinho, que possui suas pautas e dificuldades de acessar a cidadania de forma diversas e específica —, da hierarquia de importância — algumas foram eleitas para a Câmara dos Deputados e outras para os parlamentos estaduais, enquanto Marielle era uma vereadora de capital — e temporalidade — algumas já possuíam trajetória política de êxito antes do acontecimento Marielle Franco.

A transmissão da força do acontecimento Marielle também aparece em cartazes de divulgação como o do Emancipa, rede de educação política do PSOL. A noção de mártir reaparece nas palavras de ordem “Marielle somos nós”, que aludem às pautas da vereadora e sua capacidade de exercer a política em prol dos direitos das mulheres.

Imagem 35 — Mosaico com material de divulgação do PSOL em diferentes estados

Fonte: PSOL

As palavras de ordem “Não vão nos calar” ou “Mulheres não serão interrompidas”, inspiradas por discursos de Mariele, irrompem em material do partidos como discursos de negação à violência contra Marielle e de gênero, aproximando-se do que poderíamos chamar de conteúdo motivacional. Uma tragédia é transformada em motivação para que outras ações dentro e fora do partido possam ser conduzidas, na tentativa de afastar eventual sentimento de derrota e conformismo.