• Nenhum resultado encontrado

3. O DEVIR DO ACONTECIMENTO

3.2. QUEM ERA MARIELLE FRANCO?

3.2.3. Vida acadêmica

15 ? BBC. Rejeição da família, pedido de casamento e luto: a história de amor interrompida de Marielle e Mônica. BBC, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43558653>. Acesso em: 5 de maio de 2019.

Marielle começa a se afastar das estatísticas da maioria da população negra e periférica quando cursa a graduação em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e, posteriormente, a pós-graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A faculdade surge nos planos de Marielle de forma mais concreta com a criação do primeiro curso pré-vestibular popular do Complexo da Maré, que a preparou para o vestibular. Na ocasião, ela havia abandonado os estudos para se dedicar à filha e trabalhar — Marielle voltou ao mercado de trabalho como recreacionista três meses após o nascimento da filha.

Após ser aprovada no vestibular, obtém uma bolsa integral por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni16). O desconto de 100% na mensalidade é que possibilita que ela possa fazer o curso. O desenvolvimento de sua carreira acadêmica esbarra muitas vezes nas diferenças de classe e origem social que ela observa entre colegas e professores. A formação política oferecida pelo curso preparatório para o vestibular e a imersão nos estudos de feministas e de intelectuais negras serve como um escudo para Marielle. Ela conta que usava a experiência como favelada, que ela exibe com orgulho para fazer valer suas opiniões em um contexto racista, classista e machista, como costuma ser o acadêmico:

Fui sempre reivindicando esse lugar de favelada. Eu queria ser chamada, eu queria ser identificada. Eu já trabalhava, eu dava aula em outras favelas. Eu queria apresentar, ressignificar o título. E depois fui disputar bolsa, fui disputar espaço. O debate da negritude nesse momento não estava colocado, a questão racial como algo importante. Eu pego um departamento de Ciências Sociais depois de ter passado a Lélia Gonzalez. Mas eu só fui entender isso depois de ter aula com uma outra professora negra que foi a Aparecida, porque em uma outra aula que eu tive de gênero e raça a professora não citou a Lélia Gonzalez como diretora daquele departamento. O apagamento e a negação das nossas histórias vêm por vários âmbitos.17

No mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), quando já era filiada ao PSOL, Marielle manteve o interesse em refletir sobre possibilidades de melhoria de vida para moradores das favelas. A pesquisa que conclui em 2014, “UPP: a redução da favela a três letras”, consiste em uma análise teórica e crítica ao contexto de perseguição policial instaurado nas favelas a partir de políticas de

16 Idealizado pelo Ministério da Educação, no primeiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa Universidade para Todos (ProUni) foi criado em 2004, pela Lei nº 11.096/2005, e tem como fim conceder bolsas de estudos integrais e parciais para estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior.

17 Bate-papo com Marielle Franco – parte 1. Canal Mayara e Yasmin. Canal Marias do Brejo, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=swKLU6ZI5MI>. Acesso em: 27 nov. 2020.

segurança. A sobrevivência é o pano de fundo da discussão sobre a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que formava o carro-chefe do projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro no governo de Sergio Cabral, que instituiu polícias comunitárias em favelas, principalmente na capital do estado, com a promessa de desarticular quadrilhas, para extinguir desses territórios os chamados estados paralelos, comandados por milicianos e traficantes. Como ação, as UPPS tiveram início em 2008. Conforme Franco (2004), essa política mobilizava a opinião público por meio da promessa de combater as drogas e a violência. Dessa forma, essa política se baseava na contradição de utilizar o recurso ideológico da apelação pela paz para utilizar a ação violenta da polícia nas favelas.

Com a conquista do título de mestre, Marielle adentrou ao grupo que ela própria chamava de bonde de intelectuais da favela, uma “nova geração que fez pré-vestibular comunitário, e se constituiu como Mestres e Doutores18”.

Imagem 10 — A flamenguista Marielle com a irmã e a filha no Maracanã

Fonte: Foto publicada em mídia social de Marielle

Embora aliasse condições pouco comuns aos sujeitos em geral, incluindo a reunião de características físicas favoráveis, como carisma e beleza, além de inteligência e dedicação, Marielle reivindicava uma filiação ancestral negra como fonte de aprendizado. Como apregoou a ativista e feminista Jurema Werneck sobre o movimento de mulheres negras, nossos passos vêm de longe, frase que tornou-se lema e que parece também incidir sobre a narrativa que Marielle constrói sobre si.

De referências, eu tenho muitas, mas certamente é impossível a gente não ter referência na mãe. Minha mãe é uma mulher forte. Mas também tenho que falar da minha tia, da prima, da avó. Essas mulheres foram sempre as preteridas pelos

18 FRANCO, Marielle. A redução da favela a três letras: UPP. UFF, dissertação. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/2166/1/Marielle%20Franco.pdf>. Acesso em 27 de abril de 2019.

irmãos, por exemplo, estudaram menos ou concluíram seus estudos depois ou ficaram no Nordeste, porque elas têm origem lá. O êxodo familiar foi primeiro dos homens, para tentar a vida, e depois das mulheres. Com isso, você perde tempo, qualificação, poder econômico. Do âmbito familiar, tem minha mãe, Marinete, minha prima que é meio que uma tia, a Solange, que também foi mãe nova e tem toda essa experiência da mulher negra se entendendo no mundo. A minha avó, oriunda de quilombola ali na Bahia da Traição, nesse lugar onde se pega indígenas e negros, nessa formação social do Brasil de resistência e sobrevivência, sendo curandeira, sendo religiosa, criando 11 filhos.19

A formação em Ciências Sociais e a pós-graduação propiciam uma situação de diferenciação de Marielle com relação aos sujeitos que partilham com ela a mesma pertença racial e social. No entanto, o ponto fora da curva de Marielle vem com a conquista de seu primeiro cargo eletivo em 2016 com 37 anos.