• Nenhum resultado encontrado

4. A INDIVIDUAÇÃO DO ACONTECIMENTO

4.2. A NARRATIVA JORNALÍSTICA DOS ACONTECIMENTOS

da temporalidade. Em meio ao fluxo de deslocamento da temporalidade, que é ininterrupto, a narrativa jornalística organiza o acontecimento em uma experiência temporal, possibilitando associações de um acontecimento do passado com a realidade e os problemas do presente. Conforme Babo-Lança (2011), os media se impõem como um espaço que instaura e institucionaliza um ponto de reconstrução da memória coletiva, pois os veículos de comunicação são dispositivos de configuração de significados e narrativas da realidade. Desse modo, cabe a aproximação dos jornalistas com os historiadores, ambos profissionais produtores de discursos que formam, erguem e transmitem a memória social (BABO-LANÇA, 2011).

Sodré (2009) percebe o acontecimento tal como um corte no tempo, um elemento diferenciador. Ele destaca o papel do tempo e da singularidade para a configuração do acontecimento. Fazendo analogia com a reflexão de Walter Benjamin sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, Sodré propõe pensar o acontecimento como uma obra de arte que se pauta pela atualidade e se singulariza, produzindo seu próprio discurso e “aqui e agora”. Isso significa compreender que o acontecimento se torna reconhecível por sua identidade em qualquer tempo, apresentando conteúdo e significação próprias.

Para Sodré (2009, p. 91), o “acontecimento representa o fenômeno factual que se singulariza — “uma aparição” — pela produção jornalística”. Na rotina, os acontecimentos marcam o ritmo do sistema informativo. E é por meio do enquadramento midiático que se constrói o acontecimento, pois são selecionados, enfatizados e apresentados:

(...) é uma modalidade clara e visível de tratamento do fato, portanto, é uma construção ou uma produção de real, atravessada pelas representações da vicissitude da vida social, o que equivale a dizer tanto pela fragmentação às vezes paradoxal das ocorrências quando pelos conflitos em torno da hegemonia das representações (SODRÉ, 2009, p.37).

A ordem e a ruptura são características tanto dos acontecimentos quanto do jornalismo (ZAMIN, 2017). Isto é, a prática jornalística é pautada por fatores como notabilidade, imprevisibilidade, relevância, além de situações como morte, infração, conflito e violência. O acontecimento, nesse sentido, é um rompimento com a seriação esperada no dia a dia. No entanto, uma vez que o jornalismo trabalha com os acontecimentos atípicos, que são incorporados na prática cotidiana, esses acontecimentos se tornam o que o autor chama de acontecimentos típicos atípicos. Tais acontecimentos revelam conflitividade, ou seja, desvelam problemas públicos.

sobre a experiência ao mesmo tempo que ele próprio conduz uma forma de experimentar o ocorrido. “Logo, o acontecimento torna-se acontecimento jornalístico por uma construção discursiva que busca estabelecer o contexto da sua emergência, explicar-lhe o sentido” (ZAMIN, 2007, p. 49).

Os acontecimentos típicos atípicos podem ser percebidos no jornalismo em questões de natureza violenta, como crimes e tragédias; pelo seu impacto no coletivo; pela sua vinculação com o sistema político, ou ligação com a política institucional; por questões de território; por serem gerados por campos problemáticos e desvelarem outros problemas públicos. Esses acontecimentos chamam a atenção dos meios de comunicação assim como produzem desacomodação sobre o jornalismo, fazendo com que os media tenham de se reconfigurar diante de sua realização e interpretação na cobertura. Outro efeito é o envolvimento do jornalismo na conflitividade do acontecimento, pois a cobertura se torna dependente de sistemas e instituições políticas.

Charaudeau (2006, p. 5) critica a estratégia narrativa operada pela mídia para encobrir as causas de acontecimentos, tornando-os, muitas vezes, inexplicáveis. A imprensa opera nesse encobrimento essencializando causas e atores, uma vez que “as causas são apresentadas de maneira global e os atores, como entidades abstratas, como se se tratasse da essência das coisas que existem na natureza”. As responsabilidades e o contexto são diluídos em leituras generalizantes.

Com relação à análise das repercussões midiática de crimes, Antunes (2012) estabelece duas categorias para os acontecimentos: os crimes de pequena notação e os merecedores de distinção. Há, no jornalismo, casos de violência que são mais noticiados e aqueles que, por outro lado, permanecem invisibilizados. Para Antunes (2012), existe uma identidade acontecimental da violência da qual o jornalismo é testemunho. A cobertura midiátíca opera identificando a violência como eventual, reiterativa ou extraordinária. No entanto, conforme Antunes (2012, 285), a cobertura normaliza a violência e a limita a uma experiência social e coletiva. “O destaque na cobertura de megacrimes só faz em alguma medida produzir outras formas de esquecimento público e midiático para casos semelhantes”. Sobretudo quando o alvo de violência é oriundo de grupos vulneráveis, estigmatizados ou desprestigiados, a violência é normalizado no testemunho jornalístico e as biografias dos alvos somem do noticiário, como se não tivessem importância.

Vaz e Lissovsky (2014) identificam estratégias de generalização dos fatos noticiados com o deslocamento da identificação do agressor, como alguém comum que

pode cometer um crime, para a vítima, tendo em vista que “o que aconteceu a ela poderia ter acontecido comigo, apenas circunstâncias aleatórias o impediram” (VAZ e LISSOVSKY, 2014, p.100).

Vaz e Lissovsky enfatizam que sentir-se uma vítima virtual é parte da experiência contemporânea de compartilhamento de notícias de crimes. Como característica de nosso tempo, a emergência do papel da vítima tem relação com as expectativas de consumo e prazer dos sujeitos. Por isso, é comum notícias trazerem reclamações de sujeitos sobre o clima de insegurança ou sobre a impossibilidade de ir a locais de socialização e consumo por medo da insegurança.

O futuro é outro elemento essencial nessa construção, pois as atitudes em sociedade são tramadas a fim de programar vantagens e/ou benefícios, bem como evitar malefícios. Exemplar desse fenômeno, que Vaz e Lissovsky chamam de administração do presente e cuidado de si, é nosso comportamento com a comida, no qual ingerimos algum alimento ou o evitamos a fim de preservarmos a saúde.

Junto com o medo, a noção de risco manifesta-se como um processo contemporâneo de subjetivação. Nesse sentido, ainda conforme Vaz e Lissovsky (2014), o direito ao risco aflora como figura do direito, aumentando a potência sobre a responsabilidade da ação humana. Assim, acredita-se que uma decisão ordinária do passado leva ao futuro, estabelecendo uma relação quase direta entre a decisão e o sofrimento.

Esse paradigma do risco aumenta a noção de liberdade e de responsabilidade dos sujeitos, assim como estipula expectativas sobre o papel do estado e também de terceiros, que passam a ser aceitos mais facilmente em rótulos como o de bandidos. “Como o “direito ao risco” supõe não ser exposto a riscos em virtude da ação de terceiros, o Estado é ordinariamente convocado como aquele que poderia ter evitado que outros nos colocassem em risco” (VAZ e LISSOVSKY, 2014, p.101-102). Entretanto, com casos flagrantes de falha do estado especialmente na missão de garantir a segurança dos cidadãos, a esfera pública torna-se um espaço menos receptivo às escolhas individuais e coletivas e mais afeito a decisões soberanas.

Os acontecimentos de morte são uma categoria específica de acontecimentos, que engendram comoção e repercussão jornalística específicas. Berger (2011) pontua que, como a morte é um acontecimento esperado, ela só se torna narrável dentro do escopo jornalístico se a pessoa morta é proeminente ou se a morte carrega alguma característica do inesperado ou que se situa para além da normalidade. No caso de acontecimentos que

envolvem feminicídio, outra característica é a atualização da cultura patriarcal, que culpabiliza as vítimas ou naturaliza o comportamento dos assassinos.

O poder de revelação que todo acontecimento contém, aponta, no caso dos assassinatos de mulheres, para o campo problemático das relações de gênero, revelando, ao mesmo tempo, o claro-escuro dos sentimentos humanos e o tempo histórico sombrio que os ancora e sustenta. (BERGER, 2013, p. 239).

Interessada sobre o noticiário de conflitos, como a exposição de acontecimentos bélicos pela TV e pelo fotojornalismo, Sontag (2003) refuta a ideia de que a representação permite às pessoas conhecer a realidade. Sontag compreende que a representação não dá conta da experiência, isto que é, ela é crítica à ideia de que é possível mobilizar as pessoas em torno da dor dos outros meramente por visibilizar o horror via quaisquer tipos de imagens, especialmente por meio do conteúdo noticioso.

Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo, parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros. (SONTAG, 2003, p. 95)

Hall (1997) entende que pensamos a cultura por meio de nossas práticas de significação. A interpretação é feita a partir do que compreendemos. Para Hall, toda representação se estabelece a partir de uma forma de compreender o mundo, que inclui como são afetadas por nossas experiências em sociedade.

A representação é uma imagem mental (DUCROT & TODOROV, 1998), que aparece para os usuários do signo na atividade de atribuir significado. Hall (1997) aponta o papel central da língua na representação de significados e conceitos, pois sistematiza uma forma de pensar a cultura. As práticas de significação passam por um trabalho simbólico, em que a interpretação é feita a partir do que compreendemos. Para Hall, toda representação se estabelece a partir de uma forma de compreender o mundo, que inclui como são nossas experiências em sociedade.

A leitura das representações diz respeito às “maneiras pelas quais formas e símbolos podem ser usados para significar e sugerir outras coisas além deles” (GOMBRICH, 1996, p. 9). Para representar o desconhecido, conforme Gombrich, é necessário operar sobre o que é familiar, mesmo que distanciando-se do real. Também é comum que, na representação de imagens, a transferência seja mais da função do que da forma do objeto.

Sontag (2003) alerta que a representação não dá conta da experiência, isto que é, refuta a ideia de que a representação permite às pessoas conhecer a realidade. Sontag é crítica à ideia de que é possível mobilizar as pessoas em torno da dor dos outros meramente por visibilizar o horror via quaisquer tipos de relatos, imagens e vídeos, e especialmente por meio do conteúdo noticioso.

Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo, parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros. (SONTAG, 2003)

Uma das metáforas que Bergson (2011) utiliza para descrever os processos de memória é a da porta entreaberta. O passado seria um todo que acompanha nossos corpos em uma duração contínua que se conserva em si mesma. As lembranças seriam mensageiras que vêm de contrabando do inconsciente, passando justamente por essa porta. Para Bergson, a memória aparece não como totalidade do passado, mas como um esclarecimento da situação presente. “Uma lembrança, à medida que se atualiza, sem dúvida tende a viver numa imagem” (BERGSON, 2011, p. 49). Assim, a memória faz surgir representações do passado para o presente, em imagem de acúmulo e sobreposição.

Vogel (2013) postula que o acontecimento constitui uma imagem da memória, cujo sentido é aberto e polissêmico. “O acontecimento seria, assim, ocasião de experiência, confronto entre sujeito e mundo, nas vicissitudes da história” (VOGEL, 2013, p. 72). A leitura das feições do acontecimento varia conforme o contexto e quem o lê.