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5. O ACONTECIMENTO ANTROPOFÁGICO

5.3. INSCRIÇÃO NA MEMÓRIA COLETIVA E DESACONTECIMENTALIZAÇÃO

5.3.5. Produto de consumo

72 UOL. Placa de Marielle foi quebrada para restaurar a ordem, diz Flavio Bolsonaro. UOL, 2018. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/04/placa-de-marielle-foi- quebrada-para-restaurar-a-ordem-diz-flavio-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 20 set. 2019.

A imagem de Marielle passa a representar uma mensagem vendável, uma

commodity, assim como suas frases se tornam slogans. O consumo ocorre pela

necessidade de atender uma demanda comercial genérica ou para fortalecimento de células partidárias, ações sociais e entidades assistenciais.

Os usos mercadológicos do acontecimento Marielle demonstram seu grande impacto social, tendo em vista que são um indicativo de poder sobre indivíduos e instituições (WEBER, 2013). Da mesma forma, é um demonstrativo de sua força e sua hibridização entre a política e a mídia e transformação em espetáculo. Nessa escalada de antropofagia cultural, seu consumo se torna inevitável para a repartição de lucros financeiros e institucionais.

Imagem 38 — Bottons, camisetas e blocos de anotações alusivos a Marielle

Fonte: Sites de compra Elo e Mercado Livre

A apropriação da imagem de Mariele pela cultura também surge em processos de produção de novos discursos sobre o seu assassinato, como no campo da moda. Apresentado em 26 de abril de 2019 na São Paulo Fashion Week, o desfile do estilista Ronaldo Fraga apresentou reproduções de imagens de Marielle em um sapato, no qual era desenhado um alvo sob a testa da parlamentar. A outra peça era uma bata em que costuras saíam do rosto de Marielle fazendo referência aos quatro tiros que a atingiram na cabeça e rosto.

Fonte: G1

O desfile não passou sem polêmica pelos olhos de ativistas e especialmente pela família de Marielle, que, por meio de Anielle, manifestou-se contra a tentativa de protesto de Ronaldo Fraga. A irmã de Marielle criticou em tuíte a utilização da imagem de Marielle sem consulta à família: “Alguém falou com algum membro da família para usar a imagem dela assim? Não que eu, irmã, saiba”.

Ronaldo Fraga entrou em contato com Anielle e prometeu doar as peças à família, atenuando o descontentamento. Fraga detalhou em entrevistas, posteriormente, sua intenção com a produção.

A coleção de 165 itens tinha 3 peças que faziam referência à Marielle. Não era uma homenagem, mas ela é forte. Mais do que eu imaginava, até, e ela acabou se tornando o foco de tudo. Mas queria dizer que o tiro ali (representado numa camisa), não está na Marielle, está na coleção inteira, e em todos nós. Falando para uma elite branca da primeira fila do desfile, eu acho que tem um momento que não cabe metáfora. Você tem que ser direto na fala. Eu estou pagando o preço por isto. Se você me perguntar se eu teria feito a coleção se eu pudesse voltar no tempo? não, não faria. Não teria feito, porque a discussão esvaziou o debate. E o que estou vendo é um fogo amigo. Porque estava falando justamente o que a turma que está me acusando diz.73

Enfatizando sua percepção sobre o debate racial no Brasil e a necessidade de expressar engajamento com essa causa, ele afirmou: “Se Portinari fosse pintar o Guerra e Paz hoje, com certeza não iria ignorar o genocídio de negros e pobres nesse país”74. Viúva de Marielle, Mônica Benício demonstrou preocupação com a comercialização da

73 O GLOBO. ‘Se pudesse voltar no tempo, não faria’, diz estilista que estampou Marielle Franco na São Paulo Fashion Week. O Globo, 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/se-pudesse-voltar- no-tempo-nao-faria-diz-estilista-que-estampou-marielle-franco-na-sao-paulo-fashion-week-23633026>. Acesso em: 03 de abril de 2019.

74 VEJA. Irmã critica estilista por expor imagem de Marielle sem licença no SPFW. Veja, 2019. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/cidades/marielle-ronaldo-fraga-spfw/>. Acesso em: 03 de abril de 2019.

imagem e seu possível esvaziamento simbólico nesse processo, especialmente quando envolve uma militante de esquerda com discurso marxista. Mônica foi precisa: “Não quero que se transforme no Che Guevara brasileiro”, fazendo menção ao uso de imagem do guerrilheiro argentino em estampas.

Em meio à polêmica do SPFW 2019, o estilista comparou Marielle aos ativistas antirracistas e líderes políticos Nelson Mandela, do movimento anti-apartheid sul-africano, e Martin Luther King, que militou pelos direitos civis dos afro-americanos nos Estados Unidos até seu assassinato em 1968.

Queria deixar claro que quando fiz esse trabalho foi pensando e acreditando na Marielle como um Martin Luther King ou um Mandela. Mas eu errei, porque as pessoas de um afeto mais próximo estão vivas e com a ferida aberta. Então, eu vejo que temos aqui uma oportunidade de ampliar o debate, mas as pessoas têm retornado de imediato à dor com ódio, e com ódio não tem debate. É o que vemos nas redes sociais.75

As representações de Marielle são apropriadas em produtos, que apresentam reproduções da imagem da parlamentar, de seu semblante e silhueta. O produto vem acompanhado da mensagem de verdade de Marielle, da sua corporalidade, do seu visual que exalava beleza e empoderamento. Com uma camiseta ou um bottom, se reconstitui o sorriso de Marielle ou seu olhar cheio de esperança. Também seu nome, completo ou apenas “Marielle”, é apropriado nos produtos, como símbolo de força, revolta, ativismos.

75 O GLOBO. ‘Se pudesse voltar no tempo, não faria’, diz estilista que estampou Marielle Franco na São Paulo Fashion Week. O Globo, 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/se-pudesse-voltar- no-tempo-nao-faria-diz-estilista-que-estampou-marielle-franco-na-sao-paulo-fashion-week-23633026>. Acesso em: 03 de abril de 2019.

Imagem 40 — Venda online de camisetas com estampa alusiva a Marielle

Fonte: Google

Com preços variados, as camisetas são vendidas pelo partido PSOL e por associações, que costumam anunciar que os recursos serão revertidos para a família ou para causas defendidas pela parlamentar. A maioria das camisetas anunciadas na rede, no entanto, é comercializada em lojas, sem que haja preocupação com o direcionamento desses recursos oriundos do lucro da venda.

Além da foto de Marielle e do nome da parlamentar usado em slogans, a placa criada em homenagem à vereadora tem sido utilizada para a venda de camisetas, canecas, placas em alumínio, imãs de geladeira, bordados.

Imagem 41 — Produtos com a imagem da placa de homenagem a Marielle

Fonte: Sites de compra Elo e Mercado Livre

homenagem, insólita, por meio de um sanduíche. Nesse caso, a ideia de antropofagia é novamente acionada, ainda que no seu sentido literal. A homenagem culinária, no entanto, gerou controvérsia e não foi consenso.

Imagem 42 — Lanche comercializado em Belo Horizonte com suposta homenagem

Fonte: G1

Outro produto comercializado após a morte de Marielle Franco é a dissertação da vereadora, lançada nacionalmente pela n-1 edições em 7 de novembro de 2018. A publicação recupera a pesquisa de Marielle sobre as UPPs, que está disponível para download gratuito na biblioteca online da universidade.

Imagem 43 — Capa do livro póstumo com a dissertação de Marielle

Fonte: n-1 edições

A publicação da dissertação de Marielle, que pode ser encontrada online, possibilita que o arquivo digital do estudo circule como livro, transformado em objeto de desejo capaz de circular em ambientes físicos, como livrarias e bibliotecas comunitárias. Também associa a vereadora à marca da editora, que se comprometeu a reverter a maior parte do lucro para a família de Marielle. Com o intuito de favorecê-los, a venda do livro

demonstra como o trabalho e imagem da vereadora se tornaram produto a serviço de variados interesses mercadológicos.