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4. CAPÍTULO III NARRANDO O PROCESSO METODOLÓGICO DA

4.3 A MEMÓRIA COMO CONSTRUÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVA

A memória não pode ser considerada algo pronto, estático e acabado, pois ela é construída na relação com o outro que nos motiva a rememorar e é, exatamente, através da rememoração que as narrativas dos sujeitos comuns podem dar visibilidade às situações e às experiências por eles revividas e reelaboradas.

A arte de lembrar nunca deixa de ser intensamente pessoal, pois rememorar é um processo individual que se utiliza de instrumentos socialmente criados e compartilhados, e, por essa razão, as memórias podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Assim, pode-se apreender que as memórias são singulares e ao mesmo tempo coletivas e sociais na medida em que manifestam valores de determinadas comunidades em um momento histórico. Em outras palavras, as memórias de cada um

de nós são formadas no encontro com os nossos vários outros, são socialmente constituídas. (GUEDES-PINTO, et. al., 2008, p. 34).

Michael Pollak em seu artigo intitulado Memória e identidade social (1992) destaca que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade individual e coletiva, por ser um fator essencial do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa e/ou grupo social em sua reconstrução de si. Se a identidade social for assimilada à imagem de si, para si e para os outros, existe um elemento dessas acepções que fundamentalmente foge ao indivíduo, em consequência, ao grupo social – este elemento, evidentemente, é o Outro. Consequentemente,

[...] ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referencia aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. (POLLAK, 1992, p. 204).

Este autor assume a ideia de identidade em seu sentido mais superficial, que é o sentido da imagem de si, para si e para o outro, ou seja, a imagem que o sujeito conquista ao longo da vida relativa a ele próprio. A imagem que constrói e apresenta aos outros e a si mesmo, tanto para acreditar na sua própria representação, quanto para ser

percebido da maneira como quer ser percebido pelos outros. (POLLAK, 1992).

Para Ecléa Bosi (2003), a memória é um trabalho, na medida em que rememorar envolve mobilizações intensas dos sujeitos, que requerem esforço e dedicação. A memória é um refazer das experiências passadas exigindo devotamento e esforço daqueles que se voltam às lembranças de um tempo remoto e que, com a ajuda dos materiais presentes em seu entorno atual, esforçam-se em um trabalho consciente de rememoração. Esta autora destaca ainda a relevância do tempo presente no processo de rememoração, e a importância do mergulho na volta ao passado para a re-significação de um movimento que está em pleno processo de análise. Pois,

[...] ouvindo depoimentos orais constatamos que o sujeito mnêmico não lembra uma ou outra imagem. Ele evoca, dá voz, faz falar, diz de novo o conteúdo de suas vivências. Enquanto evoca, ele está vivendo atualmente e com uma intensidade nova a sua experiência. [...] O sujeito se sente crescer junto com a expressão dessa intuição. Psiquicamente e até somaticamente se sente rejuvenescido. O corpo

memorativo recebe um Tônico e uma força inesperada. (BOSI, 2003, p. 44).

A memória oral, distante da forma unilateral para a qual se encaminham determinadas instituições, “faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles”, e é aqui que se localiza sua maior riqueza. Ela não pode alcançar uma teoria da “história nem pretender tal fato: ela ilustra o que chamamos hoje de História das Mentalidades, a História das Sensibilidades”. É também uma ferramenta valiosa se almejamos compor a crônica do quotidiano. Mas é preciso não esquecer que ela “sempre corre o risco de cair numa „ideologização‟ da história do quotidiano, como se esta fosse o avesso oculto da história política hegemônica”. (BOSI, 2003, p. 15).

Os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores manuais, camadas da população excluída da história ensinada na escola, tomam a palavra. A história, que se apóia unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. A literatura conhecia já está prática pelo menos desde o Romantismo: Victor Hugo faz surgir Notre Dame de Paris num quadro popular medieval que a história oficial havia desprezado. (BOSI, 2003, p. 15).

A memória é um trabalho sobre o tempo vivido invocado pela cultura e pelo sujeito. Sabe-se que o tempo não flui de maneira uniforme, o homem tornou o tempo humano em cada sociedade. Tanto as classes sociais quanto as pessoas vivem o tempo de modos diferentes. Existe a noite serena da criança, a noite profunda e breve do trabalhador, a noite infinita do doente, a noite pontilhada do perseguido. Os nossos ritmos de vida foram dominados pela sociedade industrial, que encurvou o tempo a seu ritmo, “racionalizando” as horas de vida. (BOSI, 2003, p. 53). E hoje o que se tem é o

[...] tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo da amizade, o familiar, o religioso... A memória os reconquista na medida em que é um trabalho sobre o tempo, abarcando também esses tempos marginais e perdidos na vertigem mercantil. [...] Mas a rigor, a apreensão plena do tempo passado é impossível, como o é a apreensão de toda a alteridade. (BOSI, 2003, p. 53).

Os estudos baseados nas memórias dos sujeitos expõem diferentes falas, dependendo dos fatores e situações, onde ocorre a recuperação das lembranças. Em muitos casos, aquele que está expondo suas lembranças, não o faz unicamente através da linguagem oral e não expõe somente o assunto que o pesquisador está questionando.

E em meio a este contexto, uma das principais (e mais bonitas) características da memória que está sendo recuperada é sua atemporalidade, pois a memória é ahistórica, e a recuperação das vivências não é feita de forma cronológica, linear, mas, principalmente, através da mistura de acontecimentos de diferentes momentos do passado. (KENSKI, 2000, p. 107-108).

A lógica das lembranças é a da emoção. A narrativa mostra as relações familiares, sociais, culturais..., em um sentido muito mais amplo e complexo do que geralmente foi pedido pelo pesquisador. As ligações entre os fatos, aparentemente anárquicas para o ouvinte, possuem uma coerência interior que não pode ser captada apenas através da leitura e da análise do que está sendo falado. Partindo-se apenas da fala do narrador, já se pode perceber as diversas vozes com as quais ele expõe suas lembranças do passado, o grau de envolvimento emocional com o assunto, os momentos em que deixa que as lembranças tenham voz em suas falas, em verdadeiros retornos ao passado (reproduzindo diálogos, recuperando a linguagem e as expressões que usavam na época) e nos momentos em que mais friamente interpreta a situação ocorrida. (KENSKI, 2000, p. 108).

As vozes, que operam no resgate da memória, vêm expor a intervenção de muitos outros fatores no momento do relato. O primeiro diz respeito à seletividade da memória, visto que esta é seletiva e envolve tanto as lembranças quanto os silêncios e esquecimentos. O que é contado é quase uma reconceitualização do passado de acordo com o momento presente. O espaço da nossa memória é abrangente, e dele só uma pequena parcela é expressa através da linguagem oral. Ainda assim, o que é relatado, manifesta relações entre a singularidade do sujeito e as questões sociais e culturais mais amplas (valores, status, posicionamento...). (KENSKI, 2000, p. 108).

Como já foi dito, os sujeitos não têm em suas memórias, uma visão estática e cristalizada dos acontecimentos que ocorreram no passado. Muito pelo contrário, há diversas possibilidades de se delinear uma versão do passado e transmiti-la oralmente a partir das necessidades do presente. E é exatamente nesse momento,

[...] o da narrativa de uma versão do passado, que as lembranças deixam de ser memórias para tornarem-se histórias. Da mesma forma no relato oral ou escrito das memórias, o sujeito busca construir uma identidade pessoal que, em alguns casos, não é, exatamente, a mesma que ele possuía no passado (e nem sempre ele sabe disso!). O que ocorre, é que, geralmente no momento em que as pessoas vão relatar situações de suas vidas, elas aproveitam para passar a limpo o passado e construir um todo coerente, onde se mesclam situações reais e imaginárias. (KENSKI, 2000, p. 109).

Como bem esclarece Kenski (2000, p. 109), a maneira com que os sujeitos se auto-referenciam na descrição de suas memórias não podem ser consideradas como estatutos de verdade. Na fecundidade e entusiasmo em que se misturam fatos reais e imaginários, sente-se que eles foram construídos a contrapelo, como uma visão do passado a partir do momento presente. Sendo assim, elas servem pouco como História, no sentido tradicional de uma versão de um passado realmente vivido. Contudo, servem muito como memória a serem analisadas e refletidas, pois irão contar muito da pessoa ou situação, não somente do passado, mas, sobretudo, do presente.