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A Memória – Importância e Usos

No documento O MÚSICO E SUA ÓPERA (páginas 30-36)

“A memória se tornou uma obsessão cultural de proporção monumental em todos os pontos do planeta” (HUYSSEN, 2004, p. 18). Trazendo o passado para o presente, busca desacelerar o tempo e dar novo lastro à sociedade, que precisa refletir e evitar o esquecimento. As memórias do século XX nos remetem a atos de genocídio e de extermínio em massa, guerras, depressão econômica, fatos que trouxeram a sensação de desordem e insegurança para com o futuro e nos obrigaram a repensar o mito do progresso permanente e do homem racional. A segunda metade do século XX assistiu a um processo sem precedentes de mudanças na história do pensamento e da técnica. Os conceitos de Homem, de verdade, de razão, conceitos iluministas constituídos e consolidados ao longo dos séculos XV a XVIII, foram colocados em discussão e duramente criticados, assim como a crença no progresso linear do homem.

Ocorreram mudanças nos paradigmas que orientavam o modo de pensar a sociedade e suas instituições. Surge o conceito de pós-modernidade (ou modernidade tardia), primeiro período histórico a nascer batizado, que “produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2006, p. 12). Evitar o esquecimento e refletir sobre a falência do projeto iluminista da humanidade são os motivos iniciais e mais evidentes do chamado “boom de memória”

(HUYSSEN, 2004, p. 42).

Divulgado pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (1924 – 1998), o termo pós-moderno é controverso quanto ao seu significado e à sua pertinência. Teria se iniciado com a morte do mito do progresso e com a impossibilidade de se pensar a história como algo unitário. O pós-modernismo tem seu marco histórico na segunda metade do século XX e aqui significará a perda da historicidade e o fim das grandes narrativas, nas quais os grandes esquemas explicativos da humanidade caíram em descrédito. No campo estético, representa o fim da tradição de mudança e ruptura, o

apagamento da fronteira entre alta cultura e a cultura de massa, e a prática da apropriação e da citação de obras do passado (LIMA, 2004).

O debate entre as perspectivas modernista e pós-modernista é muito controvertido, uma vez que toca o núcleo de pressupostos básicos que se encontram na raiz de nossas tentativas de compreender e lidar com o mundo e a maneira como o experimentamos (JOHNSON, 1997, p. 152).

Em contraposição ao pensamento modernista, marcado pela excessiva confiança na razão e nas grandes narrativas utópicas de transformação social, a descrença no futuro e no desenvolvimento constante e linear são características pós-modernas. Em essência, o movimento moderno argumentava que as novas realidades do século XX eram permanentes e iminentes, que as pessoas deveriam adaptar suas visões de mundo a fim de aceitar que o que era novo era também bom e belo. Mas após a Primeira Grande Guerra, a depressão de 1929, a ascensão do fascismo, a Segunda Guerra Mundial e suas consequências, percebeu-se que nada é absoluto, que lógica, ciência, história e moralidade eram produtos da experiência e da interpretação individual. Tudo é relativo ao indivíduo ou à comunidade que o sustenta. Tidas por opressivas, há a negação de toda verdade universal e o questionamento de toda e qualquer cosmovisão. Neste contexto, dito pós-moderno, surgem, nos anos 1980, eventos relacionados ao cinquentenário do Terceiro Reich de Adolf Hitler, aos quais Huyssen atribui a aceleração dos discursos de memória iniciados nos anos 1960 com a descolonização africana e os movimentos sociais que buscavam histórias revisionistas e alternativas com as quais pudessem se identificar e se contrapor às histórias oficiais que os discriminavam.

Considero importante, aqui, introduzir o leitor à experiência da guerra e da música vivida pelos entrevistados e relatada em suas próprias palavras. Através das narrativas de Devos e Odette, compilei o parágrafo abaixo, no qual reproduzo parte da memória dos meus entrevistados referente à Segunda Guerra Mundial.

Quando começou a guerra, em 1940, não tinha mais nada para comprar. [...]

Então, o pessoal tinha umas privações grandes, [...], quando eles (os alemães) chegaram em Calais, [...], eles compraram tudo que eles queriam. [...] Aí você não tinha mais manteiga, não tinha mais açúcar, não tinha mais pão, não tinha mais nada. Tinha de fazer a fila para receber um pedacinho de pão assim. Bom.

Então o que aconteceu, [...], aí a gente começou a plantar mais, [...], a gente tinha de levantar às cinco horas da manhã, quando começava a clarear no verão, para ajudar, para trabalhar15. Durante a guerra, com a ocupação alemã (em Paris), 1940, [...] foi quando começou a perseguição aos judeus, massacre [...] Então, invadiram a França toda depois. E começaram a perseguição [...], obrigaram [...] os rapazes, que estavam em idade de serviço militar, tinham de servir na Alemanha, nas fábricas para armamento, [...]. O meu irmão mais velho [...] depois ele fez a guerra, mas com 17 anos. Agora, quem sofreu muito foi o pessoal da Alsácia, a família [...] da minha mãe, obrigada a servir de novo no exército alemão, [...], dois primos meus morreram em Stalingrado. Esse ano de 42, 43 foi um massacre na Europa inteira e perseguição muito violenta contra os judeus em Paris. [...] umas colegas minhas que morreram na câmara de gás, entende, colegas minhas foram deportadas [...]. Durante a guerra, o Noël foi diferente porque a família dele veio do norte também, sofreu muito. [...]. Nós ficamos em Paris. O meu pai foi preso como britânico, depois foi solto, mas ele era prisioneiro dentro de Paris16. Os canhões contra avião, tudo isso, fazia um fogo de artifício, (risos). Bom, eu até que eu achava interessante, mas depois, na hora de ir ao colégio [...] tava cheio de gente sem cabeça, sem perna, tudo isso. É, a vida tem esse negócio todo, ahm. [...]. Bom, aí, esse negócio da música, você vê, apesar dessas coisas todas, a gente ensaiava lá em baixo, tudo isso17. [...] durante a guerra, Monsieur Bouffard [...], aí botaram ele chefe da défense passiva, [...] no caso de bombardeio, para ajudar, dirigir a salvação, [...]. Aí tinha ajeitado uma casa, os porões da casa que eram grandes, cheio de saco de areia, lá, contra as bombas, [...], tudo, e ele me dava aula aí, no meio do pessoal, (risos), no meio dos sacos de areia e tudo isso18. [...] em 42 eu tinha 13 anos. Aí eu comecei a tocar por minha conta, [...], porque não tinha mais professor, [...]. Um dia a minha mãe chega da rua, “ah, tem uma vizinha ali, ela escuta você tocar piano e tudo, e a filha dela é cantora, mas ela teve paralisia e ela não pode sair de casa, ela queria que você fosse lá tocar com ela”. [...], aí eu fui lá e ela tinha um Schubert, [...], então eu acompanhava e ela me pagava.

[...], os alemães proibiram de tocar Mendelssohn, porque era judeu. O (Artur) Rubinstein foi perseguido, mas Schubert, [...]. [...] eu tinha largado a flauta, o primeiro professor não deu muito certo, era um cara muito doido assim, estudei meses, [...], me ensinou a soprar só, [...]. Então (a guerra) acabou 45, [...], um ano depois da liberação de Paris, [...], 8 de maio de 45, [...], 6 de agosto com Hiroshima, que foi uma coisa terrível. [...] Mas, 45, [...], todo mundo se precipitou para o litoral. Com a minha família a gente alugou uma casinha na Normandia, exatamente no lugar onde tinha tido o desembarque dos aliados, [...], estava minada ainda. Mas todo mundo foi, era proibido, mas todo mundo foi pra praia. [...] teve um massacre muito grande ali, tinha minas enterradas [...], os prisioneiros [...] os alemães que tinham de desenterrar. Eu vi uma vaca explodir numa mina. A gente estava na praia, então eu conheci lá um pessoal da minha idade, assim, uns jovens, [...], uma família de músicos, eu toquei um pouquinho de flauta, ele falou: “porque você não recomeça a flauta? Tem um professor que mora perto de você em Paris”. “Bom”, eu pensei, “eu vou lá”19.

15 ND: 253/303 a 328

16 OED: 207/319 a 371

17 ND: 251/172 a 183

18 ND: 250/147 a 160

19 OED: 209/416 a 557

A disseminação geográfica da cultura da memória levanta questões fundamentais sobre a violação dos direitos humanos, justiça e responsabilidade coletiva.

Após 1989, nos países do Leste Europeu, no Oriente Médio e na América Latina com o Chile e a Argentina, as questões de memória e do esquecimento são questões dominantes no âmbito dos debates políticos. Assim, num cenário mais favorável, a cultura da memória está ligada ao processo de democratização e de lutas pelos direitos humanos. Mas também fundamenta políticas chauvinistas e populistas, sendo, portanto, amplas as possibilidades de seu uso político.

Outra característica de nossa época é uso da memória como entretenimento. A indústria cultural reúne memória e trauma, puxa vários passados para o presente e os comercializa. Novas questões são propostas e perguntas são feitas. Haveria, afinal, um excesso de memória na mídia? As memórias comercializadas para as massas são descartáveis? São memórias imaginadas ou são memórias vividas? E, no seu lugar, logo aparecem outras. “O sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável” (NORA, 1993, p. 14).

Assumir a responsabilidade pelo passado, em uma cultura da memória, é uma tarefa perigosa em especial na relação memória/esquecimento. Nesta explosão da informação e da comercialização, quanto mais somos obrigados a lembrar, maior o medo do esquecimento e, paradoxalmente, mais forte é a necessidade de esquecer. A relação memória/esquecimento se transforma e é, mais do que nunca, uma questão política.

O período abrangido pela pesquisa apresenta grandes mudanças sociais, agitação cultural e política e foi no contexto pós-moderno que o Rio de Janeiro recebeu compositores, regentes, instrumentistas e educadores saídos do pós-guerra europeu que passaram a desenvolver sua atividade artística no Brasil - país que Stephan Zweig acreditava ser “ein Land der Zukunft”20.

20 Em tradução livre: “um país do futuro”

O Brasil incrementava sua atuação no cenário internacional estimulado por expectativas reais de desenvolvimento e, no campo das artes, foram criadas importantes instituições de valorização e defesa da classe dos músicos. Passar pelo pensamento de Huyssen e abordar a modernidade e pós-modernidade possibilitou-me contextualizar e compreender a importância da memória e suas implicações nos dias de hoje. Ao aceitar a impossibilidade de produção de qualquer pensamento puramente individual e o caráter social e coletivo da memória ensinado por Halbwachs, pude vislumbrar a importância das narrativas de Odette, Botelho e Devos por seu viés político, trazendo elementos novos e interessantes para a discussão de assuntos relativos à música, às orquestras, à relação músico/maestro e à identidade, experienciada tanto em nível individual quanto grupal.

O homem constrói seu pensamento a partir de sua interação com os demais indivíduos de seu grupo, contextualizado em um momento histórico que lhe apresenta instituições com diversos graus de interferência em seu modo de agir e pensar. A orquestra sinfônica, lugar por excelência de execução da música clássica, é tida, na cultura ocidental, como instrumento altamente refinado e está presente na maioria dos países com desenvolvimento econômico suficiente para mantê-la. Esse lugar de concentração de músicos das mais diversas origens, tanto em relação aos seus locais de nascimento e formação quanto por suas origens sociais e culturais, torna-se possível pela linguagem “universal” da música de concerto, acessível àqueles que se propõem a exercitá-la e dominá-la técnica e artisticamente.

A seguir, discorro sobre os aspectos sociais e institucionais da música e da orquestra para entender sua importância na sociedade e apresentar o ambiente no qual os músicos entrevistados desenvolveram suas relações pessoais e profissionais.

2.2. MÚSICA e ORQUESTRA - aspectos sociais e institucionais

E o tal ditado, como é?

Festa acabada, músicos a pé Músicos a pé, músicos a pé Músicos a pé. 21

Um dia, conversando com Odette sobre minha dificuldade para desenvolver esta seção, ouvi a frase “o músico é um suspeito”. “É suspeito porque sua atividade está relacionada a prazer, e o prazer relacionado a pecado”. Decidi pensar o universo do músico profissional por esse ângulo, sabendo tratar-se de uma atividade ambígua que transita entre o mágico e o cotidiano, que confunde prazer e desconfiança, lazer e trabalho, ludicidade e objetividade, técnica e expressividade. A música em geral é valorizada, mas o músico, não. É um paradoxo, e é nesse paradoxo que se desenvolve a vida de muitos artistas. O fascínio que exercem no palco praticamente deixa de existir ao término do concerto. É essa dicotomia entre exposição e anonimato, que é traduzida por Chico Buarque no trecho da música em epígrafe, “festa acabada, músicos a pé...”

Diante de tamanha subjetividade, conduzo minha reflexão sobre a atividade do músico de forma ampla, buscando fundamentos teóricos e conceituais em antropólogos e etnomusicólogos para entender “why music matters”22 e apresentar alguns aspectos sociais e institucionais que a prática da música ou as diferentes manifestações musicais possuem. Mesmo ciente de que vivemos em uma sociedade ocidental/capitalista, acredito que a música e as demais artes não deixam de ser parte de significados e práticas que atuam no indivíduo em seus diversos níveis – social e individual, abrangendo o emocional e o espiritual. Veio-me à mente a frase atribuída a Jean Cocteau: “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para quê…” que, colocada ao lado da frase de Nikolaus Harnoncourt: “Todos nós precisamos da música, sem ela não podemos viver”23, exemplifica singelamente a diversidade de sentimentos que a arte provoca.

21 Cantando no Toró – Letras e música de Chico Buarque

22 “Why Music Matters” é o subtítulo da introdução do livro de Thomas Turino (2008). Em tradução livre:

“Por que a musica importa”.

23 HARNONCOURT, 1988, p. 17.

2.2.1 A Música - proximidade e desconhecimento

“Musical sounds are a powerful human resource, often at the heart of our most profound social occasions and experience”24. Com essa afirmação Thomas Turino inicia o capítulo “Why Music Matters” (Introduction) de seu livro Music as social life.

Argumenta ainda que “musical participation and experience are valuable for the process of personal and social integration that makes us whole”25. Manifestações artísticas estão presentes em todas as épocas e lugares. Presente na cerimônia, nos ritos religiosos, nas festividades e lutos, na vida doméstica, no trabalho, nos momentos de lazer e de solenidade, a música não se justifica apenas pelo prazer que proporciona; ela nos ajuda a satisfazer diferentes necessidades e maneiras de sermos humanos. Segundo Turino, a arte é necessária e importante para a sustentação dos grupos sociais, para a compreensão das identidades pessoais, para a comunicação espiritual e emocional, para os movimentos políticos e diversos outros aspectos da vida em sociedade.

Fundida, inicialmente, à religião e à ciência em uma forma primitiva de magia, a arte surgiu na vida dos indivíduos em sociedade como “um auxílio mágico à dominação de um mundo real inexplorado” (FISCHER, 1981, p. 19). No contexto do trabalho coletivo, a música mostrou-se essencial, não apenas à sua realização rítmica, mas ao exercer “certo efeito mágico na vinculação dos indivíduos ao grupo” (1981, p. 38), preservando o sentido do coletivo mesmo quando o trabalho era realizado individualmente.

Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem música. Se, como disse, no início dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada copla: Hê, He ayre, heyrá, heyrare, heyra, heyre, uêh.

24 Em tradução livre: “Sons musicais são recursos humanos poderosos; frequentemente estão no centro das nossas ocasiões sociais e experiências mais profundas” (2008, p. 1).

25 Em tradução livre: “A participação e a experiência musicais são valiosas para o processo de integração pessoal e social que nos faz inteiros” (2008, p. 1).

No documento O MÚSICO E SUA ÓPERA (páginas 30-36)