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Construção da Narrativa - a análise estrutural

No documento O MÚSICO E SUA ÓPERA (páginas 97-102)

3 HISTORIOGRAFIA MUSICAL E CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

4 METODOLOGIA e ANÁLISE DAS NARRATIVAS

4.2 A NARRATIVA E SUAS ABORDAGENS DE ANÁLISE

4.2.1 Construção da Narrativa - a análise estrutural

A Análise Estrutural tem interesse no conteúdo do que é comunicado, mas a atenção principal está em como o conteúdo é organizado pelo falante. Esta forma de análise possibilita esclarecimentos além daqueles que podem ser apreendidos apenas pela exposição do conteúdo da narrativa75. A forma como a narrativa é estruturada é importante para a comunicação humana. Assim, a pergunta que o analista faz é: “como a narrativa foi organizada para alcançar os objetivos estratégicos do narrador?”76. O linguista William Labov propõe, em 1972, o modelo estrutural de análise de narrativa segundo o qual a narrativa se constitui em um processo de recapitulação de vivências passadas organizadas em enunciados temporalmente ordenados que remetem a eventos ocorridos de fato. O objetivo da abordagem estrutural é correlacionar as formas de contar a estória às variantes linguísticas (gênero, classe social, escolaridade)77.

Para Labov, a “fully formed narrative includes six elements”78 (Riessman, 2008, p.84): o resumo inicial (abstract), que abre a narrativa com enunciado que a sumariza; a seção de orientação (orientation), que contextualiza o evento; a ação complicadora (complicating action), que é a estória propriamente dita, aquilo que leva a ação adiante; a avaliação (evaluation), na qual o narrador se distancia da ação para comentar eventos e expor emoções; a resolução (resolution), etapa de finalização da série de eventos da ação complicadora, ou seja, da trama; e a coda (coda), que finaliza a narrativa e traz a ação para o presente. Abaixo, ilustro com um segmento da entrevista de Odette as partes da narrativa sugeridas por Labov.

(OED: 201/01 a 16)

01 02 03 04

Cosme:

Odette:

Como foi o seu primeiro contato com a música?

Você estava falando de família, justamente é muito importante porque o meu primeiro contato com a música realmente foi com a família, foi dentro de casa, né?

RE

75 “[...], but attention to the form adds insights beyond what can be learned from referential meanings alone” (Riessman, 2008, p.77). Em tradução livre: “[…], mas atenção na forma traz discernimentos além daqueles que podem ser apreendidos apenas dos significados”.

76 Em inglês: “How are narratives organized – put together – to achieve a narrator’s strategic aims?

(Riessman, 2008, p. 77)

77 O trabalho de Labov é paradigmático, pois é citado, aplicado ou usado como ponto de partida por muitos pesquisadores em distintas áreas do conhecimento, a exemplo da Sociologia e da Saúde.

78 Em tradução livre, “a narrativa completamente formada inclui seis elementos”.

05

Agora tem de falar, por exemplo, como era a minha casa. A minha casa, por exemplo era. Eu nasci a Paris em 1929.

Então, Paris capital da França. Mas a minha casa não era uma casa representativa da França. Por quê?

Porque o meu pai era um caminhante, um andarilho, um aventureiro.

Meu pai era da Ilha Maurício, uma ilha do Oceano Índico.

E o meu pai era uma pessoa assim, morena, mestiça, misturado de indiano com malgache. Quer dizer, Madagascar do lado da mãe. Madagascar é considerada hoje África; era Índia. Então porque a Ilha Maurício no Oceano Índico.

Bem, eu vou falar um pouco assim para explicar um pouco a minha atitude.

(RE)Resumo; (OR) Orientação; (AC) Ação Complicadora; (AV) Avaliação; (RS) Resolução e Coda

Odette abre sua narrativa com um resumo no qual apresenta a sua família como fonte inicial e fundamental para o seu interesse pela música (linhas 02 a 04). Em seguida, passa a utilizar elementos de orientação para contextualizar o evento e a avaliação para comentar e inserir emoção à sua narrativa. Verifica-se, por sua forma de estruturar o relato, que o ponto da narrativa, qual seja, falar sobre o seu primeiro contato com a música, implica uma longa narrativa que apresenta, em detalhes, a sua família através de seções de orientação e avaliação. Odette demonstra, desta forma, que reconhece a importância de seu ambiente familiar em sua formação e em seu direcionamento para a música.

A análise estrutural ajuda a organizar o olhar do pesquisador, mas, quando a pergunta feita possibilita uma resposta mais ampla e aberta, como ocorreu nas minhas entrevistas, o pesquisador pode encontrar dificuldade em definir claramente os elementos estruturais da frase e deve redobrar a atenção, pois, em uma mesma frase, podem estar presentes diversos elementos estruturais. Para Labov, a narrativa é definida como uma sequência de ações, representadas linguisticamente pelo componente ação complicadora. Então, para o autor, o segmento acima não configuraria uma narrativa. Cabe destacar, contudo, que o elemento avaliação, que integra o modelo estrutural proposto por Labov, permite-me identificar como o(a) narrador(a) se posiciona ao contar uma estória, ou seja, é a janela do presente através da qual ele/ela olha para eventos do passado.

A avaliação das linhas 07/08 (Então, Paris capital da França, mas a minha casa não era uma casa representativa da França.), das linhas

16/17 (Bem, eu vou falar um pouco assim para explicar um pouco a minha atitude assim.) e, em especial, a das linhas 09/10 (Porque o meu pai era um caminhante, um andarilho, um aventureiro.), na qual Odette faz uso de adjetivos que projetam discursivamente o seu pai como uma figura ousada, que atravessava territórios e culturas, demonstra que Odette reconhece em si uma identidade multinacional de uma pessoa do mundo que não se identifica com um nacionalismo limitador de uma identidade tipicamente francesa ou parisiense ([...], mas a minha casa não era uma casa representativa da França.). Sua narrativa enfatiza, através dos elementos avaliativos, a riqueza de seu ambiente familiar e sua consciência desta influência em sua maneira de enxergar e se projetar no mundo (Bem, eu vou falar um pouco assim para explicar um pouco a minha atitude.). Percebe-se, desse modo, a dificuldade de estabelecer compartimentos claramente delimitados para os elementos estruturais.

As linhas 09/10 são exemplos da dificuldade de obtenção de uma análise unívoca, pois aqui também podemos observar o elemento orientação incorporado à frase.

Em 1972b, Labov reavaliou as partes estruturais da narrativa e percebeu que a avaliação pode estar presente e junto a outras partes estruturais, pulverizada na narrativa. “For analytic purposes, he keeps narrative segments of longer exchanges intact and closely analyzes their internal structure – components parts of the story and their relationship to one another”79 (Riessman, 2008, p. 84). Para fazer as relações e as referências necessárias, esse pesquisador separava a narrativa em orações e identificava as linhas para facilitar as referências. Nas análises aqui realizadas, segui essa orientação e reuni orações que me pareceram representar um dos elementos estruturais da narrativa (RE, OR, AC ou AV) para melhor visualizar a análise proposta, sem esquecer que a avaliação (AV) pode estar presente em qualquer desses elementos estruturais.

79 Em tradução livre: “Para fins analíticos, ele mantinha longos segmentos da narrativa intactos, analisando sua estrutura interna à procura de sequências e partes estruturais recorrentes e da relação entre essas partes”.

(OED: 204/172 a 189) também cantando árias de ópera e a minha mãe cantando uns lieder em alemão, canção de natal em alemão alsaciano.

Então, as canções populares francesas eu tive acesso na escola, entende? As canções tradicionais do folclore francesas.

Na minha casa, na minha casa, no natal, a minha mãe cantava Stille Nacht em alemão (trata-se da tradicional canção Noite Feliz), aí meu pai cantava coisas em créole e cantava árias de ópera. Então, em pequena eu cantava árias de ópera e de opereta assim, Ne parle pas, Rose, je t’en supplie (Odette canta esse trecho da opereta), Les dragons de Villars80, que ele aprendeu na Ilha Maurício.

Então, um outro assim. Como é que é? Les Cloches digadiga di ga digadiga da81.

Aprendi essas coisas, que eram da França, mas na boca de meu pai que era da Ilha Maurício.

OR

(RE)Resumo; (OR) Orientação; (AC) Ação Complicadora; (AV) Avaliação; (RS) Resolução e Coda

No segmento acima, após discorrer longamente sobre a trajetória de seus pais e sobre o ambiente cultural de sua casa, Odette chega ao ponto da narrativa, ou seja, à sua mensagem central. Essa parte da entrevista, por si só, já responderia à pergunta tradicionais francesas eram também aprendidas na escola. Importante apontar que muitas elocuções, estruturalmente falando, como as das linhas 01 a 03, classificadas, de maneira ampla, como elemento de orientação da narrativa, comportam outras maneiras de classificação e podem funcionar, em determinados momentos, como ação complicadora (Aí a música que eu ouvia...), orientação (dentro de casa, na minha casa não tinha piano) e avaliação (não tinha piano, não tinha rádio, não tinha toca-discos, não tinha nada). A repetição é um recurso de avaliação e a ênfase no “não” demonstra que Odette deseja reforçar o

80 Les dragons de Villars é uma ópera cômica em três atos de Aimé Maillart (1817-1871) composta em 1856.

81 Les cloches de Corneville é uma opereta em três atos composta por Robert Planquette em 1876.

ambiente familiar desprovido de bens materiais, mas rico em informação e cultura.

Nesse ponto, a identificação e a análise da avaliação me foram de grande utilidade, pois através delas percebi como Odette construiu o cenário familiar que funciona como o contraponto daquele que cerca os profissionais, artistas e professores com projeção nacional e internacional do campo da música. É pela negação, construindo o vazio, que Odette enaltece os personagens de sua narrativa, o pai, a mãe e a si própria, como pessoas capazes de superação e conquistas. A sua casa não tinha quase nada, mas a riqueza cultural e humana lhe deu elementos para torná-la a pessoa que é hoje.

(OED: 204/191 a 218)

Então numa ocasião ele resolveu comprar uma clarineta de novo. Ele era perfeccionista, logo tinha que estudar, arrumou professor, método, ele ficava tocando em casa.

Ele tocava umas músicas assim que são músicas de dança tarapapapapapapapapapa pih rah, La Marche des Petits Pierrots que ele aprendeu na Ilha Maurício.

Então eu ouvia umas músicas francesas via Ilha Maurício lá em Paris.

Um pouquinho de sotaque.

Com sotaque, era. A minha mãe só cantava coisas, só cantava em alemão. Porque quando ela, ela falava francês com sotaque germânico muito forte. Meu pai tinha um leve sotaque créole, meio arrastado, mas o francês dele era perfeito. Ele falava francês muito melhor do que a minha mãe. Minha mãe pensava em alemão. Então era o ambiente.

Mas a música, a primeira coisa que eu cantei no colo de

[...] Meu pai deu oportunidade, deu educação, tudo. Isso é muito importante justamente na minha questão com o

(RE)Resumo; (OR) Orientação; (AC) Ação Complicadora; (AV) Avaliação; (RS) Resolução e (CD)Coda

Nesta extensa narrativa, Odette reiteradamente enfatiza a importância do ambiente familiar em sua formação. Todas as ações complicadoras foram enriquecidas pelos detalhes apresentados em grandes seções de orientação, nas quais Odette

contextualiza o início de seu interesse pela música, pontuadas pelo elemento avaliativo.

A coda, com um elemento avaliativo inserido, finaliza esta parte da narrativa. Podemos depreender das avaliações como Odette se alinha e alinha os demais personagens.

Sua mãe, francesa e falante de alemão, lhe transmitiu canções e algo da cultura alemã.

O pai falava bem o francês, se interessava por música, tocava clarineta, e representava um status cultural que foi ratificado por Odette, que é fruto desse conjunto. Finaliza a narrativa sobre como foi o seu primeiro contato com a música, informando que sua educação musical não foi nem tipicamente francesa nem acadêmica, fazendo-nos entender que sua educação excede qualquer rótulo limitador.

Labov abriu o caminho para a pesquisa da narrativa através da abordagem estrutural. Mas este enfoque foi alvo de críticas; dentre elas, a constatação de que este viés descontextualiza a narrativa, tomando-a como uma estrutura autônoma, o que limita a força analítica de sua abordagem e o potencial da narrativa como lugar privilegiado para entender o mundo que nos cerca (BASTOS, 2005). Na verdade, minhas análises subscrevem as perspectivas interacional e experencial de análise de narrativas na medida em que estas perspectivas me possibilitam investigar o processo de coconstrução discursiva das narrativas ao longo das entrevistas, examinando a maneira através da qual os narradores/entrevistados reconstroem suas memórias ao interagirem comigo. De toda forma, como expus acima, acredito que a análise estrutural, complementará, através do elemento avaliação, o material a ser analisado pelo viés interacional, foco de meu interesse para a dissertação.

No documento O MÚSICO E SUA ÓPERA (páginas 97-102)