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A memória individual: a visita à infância

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 58-73)

Como acabamos de ver, os textos de escrita de si estabelecem uma relação direta com a memória, sendo esta um material produtivo para a criação ou mesmo uma fonte histórica usada em uma narrativa autobiográfica. Le Premier Homme encena o tema da memória ao explorar acontecimentos da infância do protagonista e ao referenciar acontecimentos importantes do passado colonial argelino. Maurice Weyembergh, em Albert Camus ou la mémoire des origines (1998), defende que o apelo à memória está no centro da obra de Albert Camus, não apenas em seus romances, mas também em seus ensaios políticos. Weyembergh cita alguns exemplos, como a valorização das relações entre memória e conhecimento em La Peste, a partir das experiências de Rieux no contexto do “jogo da peste e da vida”:

Mais lui, Rieux, qu’avait-il gagné? Il avait seulement gagné d’avoir connu la peste et de s’en souvenir, d’avoir connu l’amitié et de s’en souvenir, de connaître la tendresse et de devoir un jour s’en souvenir. Tout ce que l’homme pouvait gagner au jeu de la peste et de la vie, c’était la connaissance et la mémoire. (CAMUS, OC T.I, p. 1459)56.

O tema da memória também figura com força em La Chute, obra construída em forma de diálogo no qual a personagem Jean-Baptiste Clamence narra seu passado, baseado em lembranças, a um interlocutor que não tem voz; o que faz com que o texto se transforme em um grande monólogo de caráter confessional. Através do ato de rememoração, o narrador expõe opiniões e ideais, além de confessar seus erros, culpas e vícios do passado Nessa obra, a memória é excesso, é material para a própria narrativa. Em L’homme révolté, seu ensaio mais famoso, a memória aparece como constituinte da revolta genuína, já que é a sua manutenção o que permite o contínuo retorno às origens da revolta. E, finalmente, embora de modo um pouco menos evidente, a referência à memória em L’étranger: “J’ai fini par ne plus m’ennuyer du tout à partir de l’instant où j’appris à me souvenir”57 (CAMUS, OC T. I, p. 1181).

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“Mas ele, Rieux, o que tinha ganhado? Ele tinha ganhado apenas o fato de ter conhecido a peste e dela se lembrar, de ter conhecido a amizade e dela se lembrar, de conhecer a ternura e de ter que um dia dela se lembrar. Tudo aquilo que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida, era o conhecimento e a memória”.

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Weyembergh não cita Le Premier Homme como exemplo para comprovar sua tese, no entanto, consideramos que, no manuscrito deixado por Camus, a memória individual está presente em todo o texto a partir dos acontecimentos da infância e juventude rememorados ao longo da narrativa. E por que a infância e temas a ela relacionados, como a escola, as brincadeiras, o bairro, a família, são recorrentes no romance? Justamente pelo fato de que, para Jacques Cormery, retornar à Argélia é revisitar a sua infância e adolescência, pois foi na cidade de Argel que ele passou essa etapa de sua vida. A vida do menino Jacques está ligada a esse espaço argelino e, por isso, as lembranças que serão evocadas pelos objetos, lugares, palavras e pessoas que aí encontrará serão, enfim, a grande referência ao tempo passado. O tema da memória perpassa a narrativa principalmente quando há o deslocamento de interesse da personagem, inicialmente empenhada em conhecer o pai e, em um segundo momento, voltada para sua própria identidade. Nos anexos da edição Gallimard, encontramos a seguinte observação feita por Camus: “Finalement, il ne sait pas qui est son père. Mais lui-même qui est-il ? »58 (CAMUS, 1994, p. 317).

Ao final da primeira parte do manuscrito, Cormery dá-se conta de que, naquela terra, todos eram “o primeiro homem”, na medida em que o fato de não ter um passado constituído enquanto narrativa fazia com que cada indivíduo tivesse que construir a sua história, reconhecendo-se dela protagonista: “(...) cheminant dans la nuit des années sur la terre de l’oubli où chacun était le premier homme, où lui-même avait dû s’élever seul, sans père”59 (CAMUS, 1994, p. 181). A conclusão a que chega a personagem encaminha a narrativa para sua segunda parte, intitulada Le fils ou le premier homme. Em ambas as partes, identificamos referências à infância de Jacques. Ao compará-las, porém, notamos a seguinte diferença: enquanto na primeira, a presença de Cormery adulto faz com que a narrativa opere em idas e vindas, entre passado e presente, por meio de flashbacks e da rememoração de eventos passados, na segunda, a personagem de Cormery adulto desaparece, dando lugar ao Jacques menino. E nessa transição, a narrativa torna-se mais linear. A linearidade é uma característica frequentemente percebida em biografias e relatos históricos, pois estes tendem a respeitar a ordem cronológica dos acontecimentos passados. E na segunda parte há uma narrativa da

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“Finalmente, ele não sabe quem é seu pai. Mas, ele mesmo, quem é?”

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“(...) caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem, onde ele próprio precisara educar-se sozinho, sem pai”. (CAMUS, 1994, p. 174).

infância que respeita a cronologia, o que percebemos, principalmente, por meio do tratamento dado ao percurso escolar do menino Jacques.

Os eventos da infância presentes especialmente através da memória individual ganham espaço na narrativa enquanto possibilidade de acesso ao passado. Em um texto em primeira pessoa, o narrador manipula facilmente as lembranças individuais, caminhando espontaneamente do espaço de sua lembrança para a realidade da narrativa, e passando do tempo passado ao presente. Porém, em um romance em terceira pessoa, como a memória individual pode ser evocada? As lembranças são introduzidas a partir de algo que é externo ao sujeito: um objeto, um elemento da natureza, uma palavra, uma sensação. O início do capítulo quatro é um exemplo de como isso é operado na narrativa em questão. Cormery está no navio prestes a aportar em Argel. Faz um calor forte, típico da região, e os passageiros vão tirar a sesta. Esse simples fato faz com que o narrador evoque um momento da vida do pequeno Jacques, em que era obrigado a fazer a sesta com sua avó:

Mais il faisait trop chaud sur le pont; après le déjeuner, des passagers abrutis de mangeaille s’étaient abattus sur les transatlantiques du pont couvert ou avaient fui dans les coursives à l’heure de la sieste. Jacques n’aimait pas faire la sieste. « A benidor », pensait-il avec rancune et c’était l’expression bizarre de sa grand-mère lorsqu’il était enfant à Alger et qu’elle l’obligeait à l’accompagner dans sa sieste.60 (CAMUS, 1994, p. 41).

Nesse episódio o narrador descreve a seguinte cena: Jacques Cormery se encontra no navio, juntamente com outros passageiros que, tomados pelo calor e logo após o almoço, sentem a necessidade de fazer a sesta. No entanto, informa em seguida que Cormery não gostava da sesta e a explicação encontrava-se em um evento de sua infância: lembra-se da expressão – “A benidor” – usada pela avó que o obrigava a acompanhá-la em seu repouso. Na sequência narrativa, o leitor será transportado do convés do navio à casa da infância de Jacques. Mas antes de nos determos nela, valeria a pena observar como o narrador constrói anteriormente a aproximação com a personagem, até conseguir chegar à imagem do espaço da infância.

Ele descreve a presença de Cormery no navio através de seus sentidos, explorando sensações como o calor que a personagem sentia no convés, sobre o modo

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“Mas fazia calor demais no convés; depois do almoço, os passageiros, enfastiados pela comida, tinham-se atirado nas espreguiçadeiras da coberta ou fugido para as cabinas para fazer a sesta. Jacques não gostava de fazer a sesta. ‘A benidor’, pensava com rancor, lembrando da expressão bizarra que sua avó usava quando ele era criança em Argel, para obrigá-lo a acompanhá-la na sesta”. (CAMUS, 1994).

como escutava o barulho nesse ambiente, ou como percebia a rigidez da espreguiçadeira. E utiliza-se mesmo do discurso indireto livre para se aproximar ao máximo da perspectiva do protagonista: “Il se leva d’un bond pour couper le ventilateur qui séchait la sueur dans ses pores avant même qu’elle commence à couler sur son torse, il vaut mieux transpirer, et il se laissa aller sur sa couchette (...)”61. Colado às percepções de Jacques Cormery o texto passa quase imperceptivelmente do espaço do navio para a casa da infância. Como observamos na sequência do trecho abaixo:

Les trois pièces du petit appartement d’un faubourg d’Alger étaient plongées dans l’ombre zébrée des persiennes soigneusement fermées. La chaleur cuisait au-dehors les rues sèches et poussiéreuses, et, dans la pénombre des pièces, une ou deux grosses mouches énergiques cherchaient infatigablement une issue avec un vrombissement d’avion. Il faisait trop chaud pour descendre dans la rue rejoindre les camarades, eux-mêmes retenus de force chez eux.62 (CAMUS, 1994, p. 41-42).

A passagem de um cenário presente – o presente na narrativa, do protagonista adulto – para outro do passado é uma estratégia frequente ao longo da obra. Para citar mais um exemplo dessa construção de aproximação temporal realizada a partir da proximidade entre narrador e personagem, tomemos um trecho do último capítulo da primeira parte do romance. Nele, Jacques está no avião de volta a Argel, tinha conversado com moradores da região na qual nascera pouco antes de embarcar e guardava, ainda com certo frescor, todas as histórias lá entendidas.

Jacques maintenant respirait mieux. La première obscurité s’était décantée, avait reflué comme une marée laissant derrière elle une nuée d’étoiles, et le ciel était maintenant rempli d’étoiles. Seul le bruit assourdissant des moteurs sous lui l’entêtait encore. Il essayait de revoir le vieux marchand de caroubes et de fourrage qui, lui, avait connu son père, s’en souvenait vaguement et répétait sans cesse : « Pas causant, il était pas causant. » Mais le bruit l’abrutissait, le plongeait dans une sorte de torpeur mauvaise où il essayait en vain de revoir, d’imaginer son père qui disparaissait derrière ce pays immense et hostile, fondait dans l’histoire anonyme de ce village et de cette plaine. Des détails sortis de leur conversation chez le docteur revenaient vers lui du même mouvement que ces péniches qui, selon le docteur, avaient amené les colons parisiens à Solferino. Du même mouvement, et il n’y avait pas de train à l’époque, non, non, si mais il n’allait que jusqu’à Lyon. Alors, six péniches traînées par des chevaux de halage avec Marseillaise et Chant du départ, bien sûr, par l’harmonie municipale, et bénédiction du clergé sur les rives de la Seine avec drapeau où était brodé le nom du village encore inexistant mais que les passagers allaient créer par enchantement. La péniche dérivait déjà, Paris glissait,

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“Levantou-se de um pulo para desligar o ventilador que secava o suor em seus poros antes mesmo que começasse a lhe escorrer pelo tronco, era melhor transpirar, e deixou-se cair sobre o beliche (...)”. (CAMUS, 1994).

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“As três peças do pequeno apartamento de um bairro afastado de Argel estavam mergulhadas na sombra zebrada das venezianas cuidadosamente fechadas. Lá fora, o calor assava as ruas secas e poeirentas e, na penumbra dos cômodos, uma ou duas grandes moscas cheias de energia procuravam incansáveis uma saída com um zumbido de avião. Fazia calor demais para descer à rua e encontrar os amigos, também eles obrigados a ficar em casa”. (CAMUS, 1994).

devenait fluide, allait disparaître, que la bénédiction divine soit sur votre entreprise, et même les esprits forts, les durs des barricades, se taisaient, le coeur serré, leurs femmes apeurées tout contre leur force, et dans la cale il fallait coucher sur des paillasses avec le bruit soyeux et l’eau sale à hauteur de la tête, mais d’abord les femmes se déshabillaient derrières des draps de lit qu’elles tenaient les unes après les autres. Où était son père en tout ceci ?63 (CAMUS, 1994, p. 172).

No avião, Jacques relembra a história que lhe fora contada sobre a saída dos colonos da França em direção à terra prometida, a Argélia. Mais uma vez, o narrador explora os sentidos do protagonista, explorando principalmente a audição. O barulho do motor ouvido por Jacques o induzirá a um estado de letargia propício para o aparecimento das lembranças. A dinâmica na qual as imagens aparecem para Jacques é associada ao movimento das péniches, embarcações utilizadas pelos colonos na década de 1848 para chegar a Argel. Dessa forma, tanto o barulho do motor, quanto o movimento das embarcações levarão à associação entre presente e passado.

Nesse mesmo trecho, além do deslocamento presente/passado, identificamos também o uso do discurso indireto livre como estratégia do narrador para produzir o efeito de proximidade da personagem. O discurso ouvido por Jacques em Solferino é, no trecho acima, lembrado por ele. Essas falas foram por ele apropriadas e, por isso, são narradas em discurso indireto livre, como se ele se lembrasse daquilo que dissera o médico – “non, non, si mais il n’allait que jusqu’à Lyon”; “bien sûr”. O narrador está tão próximo do protagonista que a pergunta final evidencia um questionamento de Jacques, já que é ele quem está em busca do pai. E, aqui, novamente, a memória de Jacques Cormery aparece através da narração possibilitando o acesso à história do povo

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“Jacques agora respirava melhor. A escuridão inicial tinha-se decantado, refluíra como uma maré, deixando atrás de si uma nuvem de estrelas, e o seu estava agora cheio delas. Apenas o ruído ensurdecedor dos motores abaixo dele o deixava tonto. Tentava rever o velho comerciante de alfarroba e forragem que, este sim, conhecera seu pai, lembrava-se vagamente dele e repetia sem parar: “Muito calado, ele era muito calado”. Mas o ruído o atordoava, mergulhava-o numa espécie de torpor desagradável em que ele tentava em vão rever, imaginar seu pai, que desaparecia por trás dessa região imensa e hostil, misturava-se à história anônima dessa cidadezinha e dessa planície. Alguns detalhes saídos da conversa deles na casa do médico voltavam-lhe à memória com o mesmo movimento daquelas chalupas que, segundo o doutor, tinham trazido os colonos parisienses para Solferino. Seguindo o mesmo movimento, e não havia trem na época, não, não, havia sim, mas só ia até Lyon. Então, seis chalupas movidas por cavalos rebocadores, com a Marseillaise e o Chant du Départ, é claro, tocados pela fanfarra municipal, e a bênção dada pelo clero às margens do Sena, com a bandeira em que tinha sido bordado o nome da cidade ainda inexistente, mas que os passageiros iriam criar por encanto. A chalupa já ia à deriva, Paris deslizava, tornava-se fluida, ia desaparecer, que a bênção divina caía sobre a sua empreitada, e até os espíritos fortes, os homens rijos das barricadas, calavam-se, o coração apertado, as mulheres amedrontadas apoiando-se em sua força, e no porão do barco era preciso dormir sobre as enxergas com o barulho sedoso e a água suja à altura da cabeça, mas primeiro as mulheres se despiam atrás de lençóis que elas seguravam umas para as outras. Onde estava seu pai nisso tudo?” (CAMUS, 1994, p. 166).

argelino, mesmo que isso aconteça de forma inverossímil, já que Henri Cormery não podia estar no meio dos colonos que chegaram à Argélia em 1848.

As descrições dos episódios do passado são feitas com grandes detalhes quanto ao espaço, aos acontecimentos, e à percepção do menino, quando se trata de um acontecimento relacionado à infância. No exemplo da chegada a Argel, verificamos dois elementos que aproximam presente e passado, o calor e a sesta, e a partir deles a lembrança do acontecimento que Jacques viveu com a avó é evocado. O calor e a sesta juntos trazem ao presente os episódios das sestas vividos na infância, a sensação provada pelo garoto. Esse processo de rememoração se assemelha àquele da famosa Recherche du temps perdu, de Proust, na qual uma sensação presente guarda a possibilidade de fazer ressurgir uma experiência passada, e tudo acontece ao acaso – “tout d’un coup, par hasard”. É o caso do célebre episódio da “madeleine” quando, através do paladar, do gosto do bolinho embebido no chá, o narrador se recorda da tia e de Combray.

Il en est ainsi de notre passé. C’est peine perdue que nous cherchions à l’évoquer, tous les efforts de notre intelligence sont inutiles. Il est caché hors de son domaine et de sa portée, en quelque objet matériel (en la sensation que nous donnerait cet objet matériel), que nous ne soupçonnons pas. Cet objet, il dépend du hasard que nous le rencontrions avant de mourir, ou que nous ne le rencontrions pas.64 (PROUST, M.

Du côté de chez Swann 1992, p. 23).

Assim, essa lembrança surge involuntariamente no navio, em direção a Argel, e repousa justamente na semelhança entre dois momentos, duas sensações, a antiga e a atual (DELEUZE, 1974), que possuem uma identidade comum e que, por isso, se ligam de certa maneira na memória do indivíduo.

Apesar do exemplo citado acima, no qual a lembrança é evocada sem que Jacques a buscasse deliberadamente, a postura da personagem ao longo do romance é ativa e voluntária com relação ao conhecimento da memória. Quer dizer, mesmo que haja lembranças que apareçam devido à relação estabelecida entre um objeto presente e sua presença no passado, ou seja, de modo involuntário, a personagem deseja conhecer o passado, ter acesso a ele através da memória. Tal atitude se opõe àquela do narrador proustiano, para quem o conhecimento do passado se dá casualmente, depende de

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“É assim o nosso passado. É tempo perdido que procuremos evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós não suspeitamos. E depende do acaso que nós o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos”.

encontrar ou não determinado objeto. Jacques Cormery, ao contrário, vai em busca do passado. E é justamente o desejo de conhecê-lo que o motiva a retornar a Argel e encontrar pessoas que pudessem ter tido contato com sua família. Pierre-Louis Rey bem sinalizou tal diferença entre ambas as personagens:

[...] o narrador da Recherche limita sua investigação à sua própria existência: em nenhum momento, por exemplo, ele está preocupado com aquilo que seu pai ou sua mãe foram antes de seu nascimento, e se o romance oferece raras imersões no passado, esse passado poético e distante serve apenas para coroar com seu prestígio os nomes da aristocracia. [...] O procedimento do Premier Homme é , ao contrário, de uma ponta à outra, voluntário, os tempos são fortemente aí provocados por um dever de memória, e é em função dessa resolução que a ordem dos tempos é sabiamente abalada no romance.65

A junção do calor com a sesta dos viajantes implica a lembrança de uma expressão característica da infância de Jacques – A benidor –, a qual, por sua vez, provoca repulsão e faz emergir a imagem da avó autoritária obrigando-o a dormir. Tal hábito ficara tão associado a essa circunstância que, mesmo adulto, não conseguia deitar-se após o almoço. Adriana Kanzepolsky, observa, ao discorrer no artigo “O fundo da língua”, publicado no livro Em primeira pessoa, sobre a importância da linguagem nas memórias de infância, o papel fundamental das marcas linguísticas e das palavras no discurso sobre a infância. Elas são, inúmeras vezes, incorporadas da fala do outro, das várias vozes que pertencem ao tecido traçado pelo adulto sobre sua infância.

[...] a infância não se expande como seda, mas conta-se na textura dessas vozes recuperadas do passado, e digo vozes no sentido de sons, mas também no sentido de chamados. E quando digo textura penso na relação que essas palavras trazidas da oralidade estabelecem com a escrita atual [...] (KANZEPOLSKY, 2009).

Nesse caso, a fala da avó está de tal modo incorporada às memórias de Jacques que suas palavras, recuperadas do passado, provocam desconforto quando lembradas pelo adulto. Nesse caso, observamos que a memória individual é formada não apenas pelas impressões do sujeito, mas também pelo discurso do outro, pelas palavras do outro

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 58-73)

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