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Um romance autobiográfico?

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 48-58)

No capítulo anterior, ao discutirmos a relação que comumente se estabelece entre literatura e real, citamos o gênero autobiográfico como um exemplo no qual ela parece mais evidente. Isso porque ao ler uma autobiografia, o leitor espera que o autor e protagonista assuma um compromisso com a veracidade da história de vida que irá contar. Citamos o caso de Rousseau para exemplificar o engajamento que, supostamente, o filósofo assume para com o leitor de suas Confessions. Desse ponto de vista, poderíamos questionar o uso de matéria ficcional nesse texto, supondo sua intenção de narrar acontecimentos, se não fosse a quantidade de autobiografias ou textos de caráter autobiográfico, sobretudo entre os que foram publicados ao longo do século XX, a partir dos quais colocou-se a questão da “ficcionalização” do eu. Hélène Jaccomard, em Lecteur et lecture dans l’autobiographie française contemporaine, aponta que o gênero é próprio de uma época, e que a autobiografia foi enormemente publicada na França nos anos 90: “trezentas e cinquenta autobiografias fizeram a fortuna de editores em 1990 na França, autores célebres e desconhecidos misturados”41.

Nos anos 1980, principalmente sob a influência da filosofia e da psicanálise, considerou-se a impossibilidade de narrar sobre si mesmo tendo a veracidade como critério, já que a própria identidade do sujeito construía-se na narrativa, através da linguagem – “é o eu quem acaba sendo construído pelo texto”42. Daí a célebre autobiografia de Roland Barthes – Roland Barthes par Roland Barthes –, repleta de imagens de sua infância e juventude e na qual o autor reivindica a ficcionalidade da obra, distanciando-se criticamente do critério de veracidade. Nesse sentido, não seria possível eliminar o caráter ficcional do gênero autobiográfico. É o que aponta Jean-Paul Sartre ao comparar seu romance autobiográfico Les mots (1964) com outras de suas obras:

Penso que Les mots não é mais verdadeiro do que La nausée ou Les chemins de

la liberté. Não que os fatos aí narrados não sejam verdadeiros, mas Les mots é

41

“(...) trois cent cinquante autobiographies ont fait la fortune des éditeurs en 1990 en France, auteurs célèbres et obscurs confondus” (JACCOMARD, 1993, p. 22).

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também uma espécie de romance, um romance no qual eu acredito, mas que se mantém, apesar de tudo, um romance.43

Mesmo que Sartre faça referência a fatos de sua vida, o autor considera a autobiografia da mesma maneira que qualquer outro de seus romances.

A compreensão do eu como identidade construída pelo próprio texto permitiu que o gênero se expandisse e viesse a apresentar outras formas. Fato que resultou em uma profusão de termos e classificações para tratar os textos de escrita de si em que cada vez mais se misturavam as dimensões da ficção e do real. Vimos surgir a autoficção com Serge Doubrovsky no final dos anos 1970, o romance autobiográfico e, mais recentemente, a autonarração em estudos que tentaram abarcar uma diversidade de textos, diferenciando-os e aprofundando o conceito de autoficção (BURGELIN, GRELL, ROCHE, 2008). Não nos interessa aqui diferenciar teoricamente todas essas categorias, mas apontar para a complexidade do tema e para a pluralidade do gênero autobiográfico, posto que o adjetivo “autobiográfico” tem sido usado pela crítica ao se referir à Le Premier Homme, mesmo que Camus tenha nomeado o manuscrito apenas como romance. Para citar alguns exemplos: Bernard Fauconnier, em artigo publicado na revista Le Magazine littéraire, afirmou ser o romance um projeto de caráter autobiográfico com fortes referências à vida de Camus : “vasto projeto com fortes ressonâncias autobiográficas”44, “em Le Premier homme, Camus aceitava, enfim, enfrentar a realidade de sua própria vida, de sua infância, do mundo argelino confuso e brutal que era o seu”45; o adjetivo foi usado também por Yves Baudelle e Christian Morewski na apresentação da revista Roman 20-50 no27 : “Essa história autobiográfica e poética”46; e por Schoentjes em artigo da revista Europe : “Em Camus [...] lidamos com um romance autobiográfico”47.

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“Je pense que « Les Mots » n’est pas plus vrai que « La Nausée » ou « Les Chemins de la liberté ». Non pas que les faits que j’y rapporte ne soient vrais, mais Les Mots est une espèce de roman aussi, un roman auquel je crois, mais qui reste malgré tout un roman”. (IDT, 1996, p. 163).

44

“[...] vaste projet aux fortes résonances autobiographiques”. (FAUCONNIER, Magazine littéraire No 453, mai 2006).

45

“[...] dans Le Premier homme, Camus acceptait enfin de se colleter avec la réalité de sa propre vie, de son enfance, du monde algérois grouillant et brutal qui était le sien”. (FAUCONNIER, Magazine

littéraire No 453, mai 2006).

46 “Ce récit autobiographique et poétique […] ” (BAUDELLE, MOREWSKI, Roman 20-50 Revue d’étude du roman du XXe siècle. No 27 juin 1999).

47

“Chez Camus [...] nous avons affaire à un roman autobiographique”. (SCHOENTJES, Europe No 846, out. 1999).

Porém, em seu verbete “autofiction”, o Dictionnaire Albert Camus descarta a possibilidade de escrita de caráter autobiográfico na obra do escritor:

Em nenhuma parte da obra de Camus encontra-se o desejo deliberado de misturar dois gêneros, e de propor abertamente uma obra de dimensão autobiográfica sob o nome de romance, com a intenção de se beneficiar, simultaneamente, dos dois pactos. Essa atitude parece mesmo impossível no meio de uma obra que guarda o sentido agudo da responsabilidade.48 (GUÉRIN, 2009).

Guérin menciona dois pactos de leitura que podem ser estabelecidos entre narrador e leitor no texto: o autobiográfico e o ficcional. De acordo com Philippe Lejeune, no pacto autobiográfico identifica-se o eu textual ao eu autoral, deixando claro para o leitor o caráter individual e introspectivo da narrativa que se seguirá, e fortalecendo o caráter verídico da história, mesmo que seja uma narrativa ficcional. Ora, Guérin não identifica na obra camusiana a presença desse contrato de leitura, ou seja, trata-se sempre de um pacto ficcional, no qual o leitor entende que aquilo que lerá é uma criação sem qualquer compromisso com a vida de um indivíduo real. Além disso, o verbete supracitado opõe autoficção a um senso de responsabilidade justamente por se tratar de uma narrativa ficcional. Poderíamos questionar o termo “responsabilidade” já que aí aparece sem qualquer complemento. Trata-se de uma responsabilidade moral, ética, política? Em relação à veracidade dos acontecimentos, à literatura?

De qualquer maneira, se houve a preocupação de opor a obra camusiana à literatura de caráter autobiográfico, é porque tal aproximação já foi feita, como mostramos acima. Procuraremos entender aqui em que medida Le Premier Homme pode ser identificado como texto autobiográfico, já que consideramos que o texto de escrita de si permite a construção de um vínculo peculiar com a realidade histórica, estabelecido a partir de um contexto privado e de uma narrativa introspectiva direcionada pela vida de um sujeito. E, nesse sentido, tem a liberdade de tecer uma história independente de fontes e baseada em memórias.

Considerando o estudo empreendido por Philippe Lejeune sobre o gênero autobiográfico, assume-se que se trata de uma narração em prosa, sobre a história de um

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“[...] nulle part dans l’oeuvre de Camus ne se trouve le désir délibéré de mélanger deux genres, et de proposer ouvertement une oeuvre de dimension autobiographique sous l’appellation roman, avec l’intention de bénéficier à la fois des deux pactes. Ce procédé paraît même impossible au coeur d’une oeuvre habitée par un sens aigu de la responsabilité”. (GUÉRIN (dir.), 2009) .

indivíduo, sobretudo de sua infância e juventude, sobre a sua personalidade, e cujo traço fundamental é a identidade onomástica estabelecida entre autor, narrador e personagem. Daí a famosa igualdade: A=N=P. Ao instaurar tal igualdade, o autor estabelece um contrato de leitura com seu leitor, o chamado “pacto autobiográfico”, a partir do qual o autor se compromete a seguir uma narrativa verossímil. De acordo com Lejeune, o texto autobiográfico é percebido enquanto tal justamente pelo contrato de leitura estabelecido entre autor e leitor, e não por sua estrutura textual, que poderia ser semelhante à de um romance.

No entanto, o pacto autobiográfico que seria o fundamento de toda autobiografia torna-se difícil de sustentar quando Lejeune passa a analisar textos de escrita de si em terceira pessoa em sua obra Je est un autre (1980), passando assim a considerar a construção da identidade a partir da narrativa. O teórico precisa três maneiras pelas quais o texto remete ao autor, na tentativa de entender como a obra poderia ser lida de modo referencial, e que seriam: o emprego de uma perífrase adotada, sobretudo, no prefácio – “aquele que escreve essas linhas”; o uso de um “ele” sem referência explícita, o que chamou de “enunciação figurada”, e a adoção do nome próprio igual ao do autor. Assim, o autor utilizaria o paratexto para possibilitar que seu leitor lesse a obra de um ponto de vista autobiográfico: “Se o texto é escrito inteiramente em terceira pessoa, resta apenas o título (ou um prefácio) para impor uma leitura autobiográfica”49.

O manuscrito deixado por Camus não foi escrito em primeira pessoa, não apresentando a igualdade própria do pacto autobiográfico de Lejeune, e também não possui as características propostas pelo teórico na análise da autobiografia em terceira pessoa. Assim, coloca-se a questão do uso do adjetivo “autobiográfico” para o romance Le Premier Homme. Ao comparar a autobiografia com o romance autobiográfico, Philippe Lejeune afirmou que não existiria diferença interna à narrativa entre ambos, mas sim externa, já que o primeiro gênero de escrita de si estabelece o pacto autobiográfico, enquanto o segundo não o faz. O contrato de leitura firmado entre autor e leitor de um romance autobiográfico seria o que Lejeune chamou de “pacte fantasmatique” (LEJEUNE, 1975), a partir do qual o leitor é convidado a ler o texto de ficção como uma revelação da vida de um indivíduo. Nesse sentido, afirmou que o

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“Si le texte est entièrement écrit à la troisième personne, il ne reste que le titre (ou une préface) pour imposer une lecture autobiographique”. (LEJEUNE, 1980, p. 47).

romance autobiográfico “se define no nível de seu conteúdo”50. E qual seria o conteúdo que possibilitaria o uso do termo “autobiográfico” para um romance?

Para responder a essa pergunta, voltemos à definição de ordem semântica dada por Lejeune quando define a autobiografia: versa sobre a história de um indivíduo, considerando, especialmente, sua infância e juventude, e sobre a sua personalidade. Com relação à característica semântica da autobiografia, Lejeune afirmou em L’autobiographie en France (2003):

Ela [a autobiografia] não é simplesmente uma narrativa na qual predominam lembranças íntimas, ela implica um esforço para ordenar essas lembranças e delas fazer uma história da personalidade do autor. O desenvolvimento da autobiografia no final do século XVIII corresponde à descoberta do valor da pessoa, mas também a uma determinada concepção de pessoa: a pessoa se explica por sua história e, em particular, por sua gênese na infância e adolescência.51

No entanto, é evidentemente que não bastaria apenas abordar acontecimentos de uma infância, pois também é preciso que esses acontecimentos tenham alguma relação com a vida de um adulto e que o leitor possa associar a narrativa ficcional a um conteúdo referencial.

E, afinal, de onde poderia vir o caráter referencial se, no caso de Le Premier homme, não há identidade onomástica e nem uma enunciação figurativizada, mas sim um texto de ficção? Neste ponto, vale retomar o termo “paratexto”, referido acima e ainda não explorado, mas que a nosso ver, justificaria o uso do adjetivo “autobiográfico” para o romance em questão. Gérard Genette, em Seuils (1987), define a paratextualidade como aquilo que faz com que um texto se torne livro e se proponha enquanto tal ao público. Esse conceito implica a relevância do contexto de publicação do livro e sua recepção; o paratexto cerca o texto principal e mantém com ele uma relação de continuidade contribuindo para apresentá-lo. Ele constitui-se de título, subtítulos, notas, comentários, dedicatórias, epígrafes, ilustrações, etc. Genette afirma que o texto é ampliado por esses elementos que estão em suas margens e que possuem grande importância na medida em que lhe conferem sua própria existência. Eles não são em sua maioria de responsabilidade do autor, mas em grande parte do editor, dos

50

“Le roman autobiographique se définit au niveau de son contenu”. (LEJEUNE, 1975, p. 25).

51

“Elle [l’autobiographie] n’est pas simplement un récit dans lequel prédominent les souvenirs intimes, elle implique un effort pour ordonner ces souvenirs et en faire une histoire de la personnalité de l’auteur. Le développement de l’autobiographie à la fin du XVIIIe siècle correspond à la découverte de la valeur de la personne, mais aussi à une certaine conception de la personne : la personne s’explique par son histoire et en particulier par sa genèse dans l’enfance et l’adolescence”. (LEJEUNE, 2003, p. 13).

críticos, por exemplo. Entretanto, permitem descobertas, estranhamentos, e novas entradas para a leitura do texto. Na análise dos paratextos editoriais, Genette propõe uma diferenciação entre dois tipos: o peritexto e o epitexto. O primeiro encontra-se no próprio espaço da obra, tais como títulos, subdivisões, capa, ilustrações. O segundo estaria espacialmente mais distante do texto e teria uma dimensão pública, como entrevistas com o autor, debates, resenhas, mas também diários, rascunhos e correspondências publicadas.

Dessa maneira, propomos uma pequena descrição do livro Le Premier Homme tal como foi publicado pela edição Gallimard, sem perder de vista o status de manuscrito inacabado da obra. A publicação possui na capa uma foto em preto e branco na qual figura Albert Camus menino em destaque. Ela é o sétimo volume da coleção Cahiers Albert Camus. Em nota, a editora, Catherine Camus, explica o contexto em que o manuscrito fora encontrado após o acidente de carro no qual faleceu o escritor, e também justifica a publicação dos rascunhos anexos, dizendo que se encontravam junto ao manuscrito. Anuncia ainda o acréscimo de duas cartas pessoais que Camus trocara com seu professor, Louis Germain, e informa ao leitor que a pontuação foi restabelecida e que as palavras de grafia duvidosa foram substituídas por um espaço em branco entre colchetes. Após a página com o título do primeiro capítulo, há um fac-símile de uma página do manuscrito, repleto de notas e rabiscos de Albert Camus; mais dois deles aparecem em meio ao romance. Nos anexos constam os cadernos de rascunho, um plano da obra e notas, além das duas cartas pessoais.

Todos os elementos listados no parágrafo anterior fazem parte daquilo que Genette chamou de paratexto e, como tal, contribuem para a leitura do romance camusiano. Esses textos e a ilustração remetem para um conteúdo referencial determinado: a vida de Albert Camus, seja na mocidade, como aponta a foto, seja enquanto escritor, como mostram todas as notas e a explicação da editora. Contudo, será que essas escolhas editoriais justificariam a classificação do romance como autobiográfico? Provavelmente contribuem muito nessa direção ou, pelo menos, abrem essa entrada de leitura do texto. Na nota e plano da obra, observamos o seguinte trecho, no qual o escritor reflete sobre a vida de seu pai, presente que sua família teria dado à França: “Mobilisation. Quand mon père fut appelé sous les drapeaux, il n’avait jamais vu la France. Il la vit et fut tué. (Ce qu’une humble famille comme la mienne a donné à

la France)”52 (CAMUS, 1994, p. 278). A publicação das notas pessoais com os comentários do escritor juntamente com o romance guiam, de certo modo, a recepção da obra.

Ao observarmos o plano da obra, no qual Camus ordena a totalidade de seu romance e apresenta o modo como pretendia organizá-lo, identificamos as seguintes temáticas: cidades da Argélia, jogos de infância, a morte do pai, a família, a escola, a colonização, o liceu, a adolescência (Cf. CAMUS, 1994, Feuillet III, p. 270-271). Esses temas são caros às narrativas autobiográficas, como apontou Lejeune, e, na narrativa do romance, reaparecem para o protagonista enquanto memória de sua infância na Argélia. O leitor que, em 1994, terá contato com a narrativa de Jacques Cormery ao ler Le Premier Homme já conhece bem o escritor Albert Camus, ganhador do Nobel em 1957, morto em 1960, jornalista, ensaísta, romancista. Àquela altura até mesmo biografias já haviam sido publicadas sobre Camus: Roger Grenier publica a famosa biografia Albert Camus, soleil et ombre em 1987. Assim sendo, além da própria edição de Le Premier Homme, o conhecimento do leitor sobre a vida de Camus permite que este estabeleça analogias entre personagem e autor. Essa aproximação foi muito mal vista, principalmente, depois dos estudos estruturalistas, das gramáticas narrativas, nas quais a personagem interessava mais enquanto “actante”, agente de uma ação, do que em seus predicados.

Como conteúdo narrativo, ele [a personagem] não se beneficiou da expansão dos estudos narrativos. Além disso, as lógicas ou gramáticas narrativas (Greimas, Todorov, Bremond) elaboradas na linha de Propp, pouco acrescentaram ao estudo da personagem. Como o traduz sua denominação de “lógica”, de “gramática ou de “sintaxe”, essas teorias se afastaram, deliberadamente, da personagem como efeito discursivo. Seu objetivo comum é chegar a atingir uma estrutura profunda universal, formalizável em um modelo dedutivo. Mais do que as personagens efetivas, são as ações, os actantes, seus predicados e sua concatenação que constituem o objeto dessas gramáticas da narrativa. Quando a personagem não é puramente e simplesmente excluída da análise, é considerada como um suporte de ações e de actantes, não gozando de nenhuma autonomia.53

52

“Mobilização. Quando meu pai foi convocado para o exército, ele nunca tinha visto a França. Ele a viu e foi morto. (Aquilo que uma família humilde como a minha deu à França)”. (CAMUS, 1994, p.266).

53

“Comme contenu narratif, il n’a donc pas profité de l’essor des études narratives. Aussi bien, les logiques ou les grammaires narratives (Greimas, Todorov, Bremond) élaborées dans le sillage de Propp, ont peu apporté quant à l’étude du personnage. Comme le traduit leur dénomination de « logique », de « grammaire » ou de « syntaxe », ces théories se sont délibérément détournées du personnage comme effet discursif. Leur but commun est d’arriver à atteindre une structure profonde universelle, formalisable dans un modèle déductif. Plus que les personnages effectifs, ce sont les actions, les actants, leurs prédicats

Vincent Colonna, em sua tese de doutorado sobre a autoficção (1989), discute justamente a pouca relevância dada aos estudos sobre a personagem que não fossem de cunho sintático, sobre seu papel no encadeamento da narrativa. Procurando resgatar o valor dos estudos sobre a personagem, ele afirma o seguinte:

Na literatura ocidental, a personagem goza de um privilégio importante, por vezes exorbitante. Para a leitura, todas as personagens são, por assim dizer, umbilicais, a partir dos quais se elaboram a decodificação, a compreensão, a construção e a apropriação de um texto. Quando a personagem possui, além disso, a função de encarnar uma figura autoral, de representar, de alguma forma, o seu criador, sua importância “natural” na narrativa só pode ser multiplicada.54

Nesse sentido, o teórico propõe três classes de traços que envolvem a constituição da personagem: traços temáticos, actanciais e metadiegéticos. A primeira classe refere-se à relação estabelecida pelo autor entre seu personagem e ele mesmo, podendo configurar um distanciamento ou harmonia, semelhança ou dessemelhança, consonância ou dissonância. A segunda diz respeito à importância de que goza a personagem para o desenvolvimento da narrativa. E a terceira, à sua posição na narrativa, sua presença em narrativas secundárias, por exemplo.

Interessa-nos aqui especialmente o primeiro traço evocado por Colonna, comumente constituído pelas informações do paratexto. A analogia entre autor e personagem, estabelecida pelo leitor, dá-se a partir das representações que possui sobre o autor, e é, ao mesmo tempo, um efeito construído na própria leitura tanto do romance quanto dos textos que o cercam. Em Le Premier Homme, uma analogia parcial pode ser estabelecida entre Camus e Jacques Cormery, o protagonista do romance, se refletirmos sobre parâmetros da personalidade – idade, profissão, nacionalidade – e do universo do escritor – época, lugar, situação vivida – que determinam um perfil temático de relação entre ambos. Tanto o escritor quanto a personagem compartilham os predicados seguintes: são franco-argelinos, órfãos de pai, habitantes da França do início do século XX, viveram uma infância pobre em Argel, com uma avó cruel e uma mãe surda. Nesse sentido, a edição do livro acima descrita sugere a confirmação de tal analogia. Colonna

et leur concanécation qui constituent l’objet de ces grammaires du récit. Quand le personnage n’est pas purement et simplement exclu de l’analyse, il est considéré comme un support d’actions et d’actants,

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 48-58)

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