• Nenhum resultado encontrado

– PósGraduação em Letras Neolatinas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "– PósGraduação em Letras Neolatinas"

Copied!
96
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JÉSSICA TEIXEIRA MAGALHÃES

LE PREMIER HOMME, DE ALBERT CAMUS: A MEMÓRIA DO SILÊNCIO.

(2)

LE PREMIER HOMME, DE ALBERT CAMUS: A MEMÓRIA DO SILÊNCIO

Jéssica Teixeira Magalhães

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa).

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

(3)

Magalhães, Jéssica Teixeira.

Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio./ Jéssica Teixeira Magalhães. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2015.

96f; 30cm

Orientador: Marcelo Jacques de Moraes.

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2015.

Referências Bibliográficas: f.91-96.

(4)

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio Jéssica Teixeira Magalhães

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa).

Examinada por:

____________________________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes

____________________________________________________________________ Profa. Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri

____________________________________________________________________ Profa. Doutora Euridice Figueiredo

____________________________________________________________________ Prof. Doutor Edson Rosa da Silva, Suplente

____________________________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Penna, Suplente

(5)

RESUMO

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.

Análise do romance póstumo camusiano Le Premier homme (1994) a partir das relações que nele se estabelecem entre literatura, memória e história. Para tanto, considera-se o contexto político vivido pelo autor na década de 1950, momento de produção do manuscrito, assim como o material anexado à publicação, como os rascunhos, notas e plano feito para a obra. Discute-se o vínculo estabelecido entre literatura e realidade, além das aproximações e distanciamentos entre a narrativa literária e a histórica, tendo em vista as reflexões de Paul Ricoeur e Michel De Certeau. Reflete-se sobre a escrita de si ao considerar o termo romance autobiográfico como possível classificação para o romance. Tal reflexão é desenvolvida a partir da discussão de Philippe Lejeune e dos estudos sobre a memória empreendidos principalmente por Ricoeur e Maurice Halbwachs.Considera-se a presença da memória individual e coletiva como possibilidade de fonte histórica e de conhecimento do outro.

(6)

RÉSUMÉ

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.

L’analyse du roman posthume d’Albert Camus, Le Premier homme (1994), à partir de la relation entre littérature, mémoire et histoire qui s’y établit. À cette fin, on considère le contexte politique de l’auteur dans les années 1950, période de production des manuscrits, ainsi que les paratextes annexés au roman : ses feuillets, ses notes et le plan prévu pour le roman. On discute des liens entre la littérature et la réalité, aussi bien que des rapprochements et des distinctions entre le récit littéraire et l’historique, ayant pour référence les études de Paul Ricoeur et de Michel De Certeau. On réfléchit sur l’écriture de soi en considérant le terme roman autobiographique à partir de la discussion proposée par Philippe Lejeune et des études de Ricoeur et celles de Maurice Halbwachs sur la mémoire. On prend en compte la présence de la mémoire individuelle et collective dans le roman en tant que possibilité de source historique et de connaissance d’autrui.

(7)

ABSTRACT

Magalhães, Jéssica Teixeira. Le Premier homme, de Albert Camus: a memória do silêncio. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.

This dissertation presents an analysis of Albert Camus’s posthumous novel, Le Premier homme (1994), regarding the relationship it sets between literature, memory and history. The analysis takes into account the author’s political context in the 1950s, period of production of the manuscript, as well as the paratexts appended to the book: drafts, notes and plan made by Camus for his novel. The dissertation includes a discussion about the links established between literature and reality, in addition to the similarities and differences between literary and historical narrative, based on the studies of Paul Ricoeur and Michel De Certeau. It also ponders on the literature of the self through the investigation of the term autobiographical novel, which is often applied to this book. This reflection is developed from Philippe Lejeune's argument and the studies about memory carried out by Ricoeur and Maurice Halbwachs. In this analysis of the novel, the individual and collective memories are considered as historical sources and a possibility of knowledge of the others.

(8)

AGRADECIMENTOS

Em dois anos de pesquisa no mestrado o tempo passou, por vezes, muito lentamente, mas correu depressa, em outras tantas ocasiões. Mas, ao longo de todo esse tempo, pude contar com a atenção, a paciência, os conselhos, as sugestões e a companhia de tantas pessoas queridas. Por isso, agradeço especialmente:

A Deus pelo tempo a mim concedido para a realização deste trabalho.

Ao meu amado marido, André, com quem divido todo o meu tempo, por toda a sua dedicação.

Aos meus pais, Luiz e Carla, e à minha querida irmã, Gisele, que me sustentaram por todo o tempo.

Ao meu orientador, prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes, que dedicou seu tempo, trabalho e enorme atenção ao meu projeto e a mim.

Aos tantos amigos que fizeram o tempo passar mais rápido enquanto ele caminhava lentamente.

À amiga Maria Sertã Padilha, que doou seu tempo para fazer uma leitura atenta do meu trabalho e cujos comentários foram muito importantes.

Finalmente, agradeço à Capes pela bolsa de pesquisa a mim concedida ao longo do mestrado.

(9)

Maman. La vérité est que, malgré tout mon amour, je n’avais pas pu vivre au niveau de cette patience aveugle, sans phrases, sans projets. Je n’avais pas pu vivre de sa vie ignorante. Et j’avais couru le monde, édifié, créé, brûlé les êtres. Mes jours avaient été remplis à déborder – mais rien ne m’avait rempli le coeur comme...

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 A literatura entre a ficção e a história. ... 16

1.1 Narrativa histórica e narrativa ficcional ... 16

1.2 A posição de Camus: do debate francês ao silêncio argelino ... 30

1.3 Percepções do tempo ... 39

2 Memória individual e memória coletiva. ... 47

2.1 Um romance autobiográfico? ... 48

2.2 A memória individual: a visita à infância ... 58

2.3 A descoberta de um povo ... 73

CONCLUSÃO ... 87

(11)

INTRODUÇÃO

No ano de 1960, morre o escritor Albert Camus. No momento em que ocorreu o acidente de carro que culminou em sua morte, ele carregava o manuscrito de um romance ainda não concluído, intitulado Le Premier Homme. O texto acaba por ser publicado trinta e quatro anos após o acidente, juntamente com notas, cartas pessoais e o plano do romance, que fornece ao leitor a informação de que este estaria dividido em três partes, das quais apenas uma estava completa. Logo no primeiro capítulo o leitor é introduzido em meio a uma viagem de mudança da família Cormery, durante a qual nasce Jacques, o protagonista. A segunda parte recebe o nome dado posteriormente ao próprio romance, Le Premier Homme, e nela encontramos, sobretudo, lembranças da infância da personagem principal. A última e terceira parte, não escrita, se chamaria La mère e trataria dos amores e compromissos assumidos por Cormery ao longo de sua vida.

A divisão em três seções planejada pelo escritor nos esclarece que em um primeiro momento estaríamos diante da busca, em seguida, da memória, e finalmente, do amor. A organização tripartite é também frequentemente usada para ordenar a obra de Albert Camus. Esta é conhecidamente constituída do ciclo do “absurdo”, composto pelo ensaio Le mythe de Sisyphe, os dois dramas Caligula e Le Malentendu, e o romance L’Étranger; do ciclo da “revolta”, explorado especialmente no ensaio L’Homme révolté, nos romances Les Justes e La Peste, e no drama L’état de siège; e de um terceiro, o da culpa ou o do “amor”, no qual podemos identificar La Chute, L’Exil et le royaume, Noces e o romance Le Premier Homme. Na realidade, esse último livro aborda muitos temas evocados pelo escritor ao longo de sua carreira, e Camus tinha, de fato, grande pretensão com o romance que deixara inacabado. Dizia que ele seria o seu Guerra e Paz.

(12)

como Jean-Paul Sartre, apoiavam a causa nacionalista e a revolução argelina, Camus condenou o terrorismo e não tomou qualquer partido. A escolha pelo silêncio retirou-o ainda mais da vida pública, principalmente após sua participação na cerimônia do prêmio Nobel em 1957, ocasião em que defendera a verdade e a liberdade como metas do escritor e não colocara a justiça a cima de tudo, deixando de defender a independência da Argélia em detrimento da vida de sua mãe.

A escolha pelo silêncio e pela reclusão, fruto da pressão que sofria e da tristeza pela guerra na Argélia, não significou a inatividade do escritor. O tempo era empregado na escrita do romance, que não poderia ter outro tema que não fosse o próprio país. Escritor cuja obra fora marcada pelas paisagens argelinas, Camus não poderia, naquele momento histórico, escrever sobre outra coisa. Assim, é escrevendo sobre a Argélia que “se impõe então a única esperança”1 como afirmou o biógrafo argelino Alain Vircondelet. O que não quer dizer que Le Premier Homme trouxesse uma solução política para o confronto, mas também não era um exemplar da nostalgia de um franco-argelino que já não via soluções para o país em guerra. O romance apresenta uma trama complexa política e socialmente, passando por episódios do período de conquista da Argélia pelos franceses e chegando até os conflitos de independência, já na década de cinquenta, quando se desenrola a trajetória central do protagonista. Para Camus, levar em conta tamanha complexidade, fruto da sociedade heterogênea em que nasceu, é uma tentativa de dar sentido ao confronto franco-argelino, e pode ter sido a razão pela qual ele se encontrou impossibilitado de decidir por qualquer um dos lados no conflito. De certa forma, a literatura diz aquilo que calava o homem público Albert Camus.

Le Premier Homme relaciona-se, dessa maneira, com o contexto histórico de sua própria produção e também com a história argelina. O diálogo estabelecido entre o texto ficcional e a história solidifica-se ainda mais ao tematizar a tentativa de construir uma narrativa histórica. Jacques Cormery, o protagonista franco-argelino, sai da França em direção à terra natal, a Argélia, com o objetivo de encontrar fontes que lhe possibilitassem conhecer o passado de seu pai. No entanto, as informações que encontra em solo argelino são muito escassas, faltam documentos que permitam reconstruir a vida paterna em uma narrativa cronológica. Jacques recorre às fontes orais buscando

1

(13)

relatos da época em que o pai estava vivo. Contudo, as pessoas que encontra são marcadas pelo esquecimento e não o ajudam a reconstituir a trajetória paterna. A personagem depara-se assim, com a impossibilidade de narrar sua história devido à ausência de rastros no que chamou a “terra do esquecimento”.

A primeira parte do livro – “A procura do pai” – conclui-se, justamente, com tal impossibilidade de narrar a história paterna. Porém, o reencontro com a morte do pai que, primeiramente, motiva Jacques a conhecer Henry Cormery, em seguida descortina diante dele a possibilidade de retorno às origens, à sua terra e a si mesmo. E, por isso, a segunda parte do romance – “O filho ou o primeiro homem” – é marcada pelas lembranças de sua infância. Através da memória de Jacques evocada a partir do espaço onde vivera quando criança e das histórias contadas pela família, o leitor conhece o percurso da personagem, mas também a história do povo franco-argelino pobre que vivia na colônia. Isso porque os eventos rememorados ocorrem em um bairro específico, o de Belcourt; em ambientes determinados: a escola da metrópole, a casa pobre, a loja do árabe, a praia; e dentro de uma sociedade particular, entre colonos que viviam com poucos recursos, árabes que ocupavam um espaço urbano separado, professores que vinham da metrópole para ensinar filhos de famílias ricas. Dessa maneira, pode-se dizer que a história se traça não como uma história linear e cronológica, mas como uma narrativa da memória, com movimentos de idas e vindas, entre o presente e o passado.

Assim sendo, consideramos que Le Premier Homme enquanto texto ficcional constrói uma história livre de fontes documentais e alicerçada na memória pessoal e coletiva, própria da comunidade de europeus que foram colonizar a Argélia. A memória desse grupo representa uma alternativa à história conhecida na metrópole, que era defendida por alguns e contra a qual outros se ergueram no final dos anos cinquenta. Albert Camus, sem defesa ou ataque, opta pela literatura e faz coincidir história e memória na narrativa de Jacques Cormery.

(14)

entre ficção e história e, introduz, fortemente, a dimensão memorialística. É interessante notar que nos rascunhos de Camus observamos comentários sobre sua vida na Argélia, sua infância, o relacionamento com a mãe, por exemplo. Todos esses elementos estiveram presentes para o autor no momento de produção do texto. No entanto, vale lembrar que o romance não apresenta características que o leitor esperaria encontrar em uma autobiografia, como um narrador personagem ou uma narrativa cronológica organizada em torno de eventos marcantes na vida do protagonista. A discussão em torno da autobiografia dá-se exclusivamente a partir de traços temáticos. Nas notas do escritor encontram-se referências que fizeram parte do processo de escrita do romance e que aparecem na narrativa, mas consideramos ainda mais central para a obra o papel dado ao próprio ato de rememoração. Dessa maneira, entendemos que o tema da memória é muito relevante e a ele dedicaremos parte desse trabalho.

Com o intuito de analisar a relação existente entre o romance e a história, o primeiro capítulo desta dissertação estará organizado em torno dessa temática. Primeiramente, faremos um breve histórico do vínculo estabelecido entre obra literária e experiência da realidade, tendo em vista, especialmente, o contraste entre os séculos XIX e XX. Em seguida, discutiremos as fronteiras entre narrativa de ficção e narrativa histórica, considerando, já a partir do século XX, que ambas são construções discursivas. Na sequência, traçaremos o contexto político-social no qual fora escrito Le Premier Homme, já que consideramos a hipótese de o romance encarnar uma possível explicação para a posição de Camus em sua época. E, por fim, abordaremos duas maneiras diferentes de perceber o tempo que estão relacionadas às tradições e práticas culturais e que influenciam na forma de construir uma narrativa, já que o tempo é um elemento narrativo elementar.

(15)

entre a memória individual e a memória coletiva a partir da narrativa de Jacques Cormery, destacando a relevância desse processo de rememoração como fonte de conhecimento do outro e como possibilidade de narrar uma outra e nova história.

(16)

1 A literatura entre a ficção e a história.

“Le matin, l’Algérie m’obsède. Trop tard, trop tard...Ma terre perdue, je ne vaudrais plus rien » (OC, IV, p.1284)

Neste capítulo nos interessa refletir sobre a proximidade entre os campos da história e da literatura, considerando seu conteúdo referencial e a sua forma narrativa. Por esse motivo, nos debruçaremos inicialmente sobre a reflexão cara aos estudos dos romances do século XIX, a saber, a relação que a literatura estabelece com a realidade. A comparação com o século XX permitirá entender em que sentido a obra camusiana pode ser introduzida nessa discussão. Após essa reflexão abriremos espaço para a contextualização da década de 1950 e a situação política na qual se encontrava Albert Camus quando iniciara seu trabalho escrevendo Le Premier homme em 1957.

A partir do cenário político apresentado, abordaremos o romance inacabado de Camus considerando, nesse primeiro momento, sua relevância histórica dentro do contexto franco-argelino. Trataremos da centralidade das fontes históricas e da tradição oral para a construção de uma narrativa histórica. E, nesse sentido, da forma como a literatura se propõe como possibilidade de romper o silêncio de uma comunidade que não deixara traços, por não possuir a tradição de construir uma memória documentada. A falta de registros em determinado grupo e a sua existência em outros evidenciam e fazem contrastar, de certo modo, formas diferentes de perceber o tempo, tema abordado ao final deste capítulo.

1.1 Narrativa histórica e narrativa ficcional

(17)

de arte faz parte da própria concepção artística de Camus, que considerava ser próprio da arte restituir ao leitor experiências ou fatos que pudessem ter desaparecido. É na função de preservar que ela se liga à realidade, não permitindo que uma experiência caia no esquecimento, como aponta o filósofo argentino Juan Blanco Ilari no artigo “Albert Camus: El arte como transfiguración de la experiência”: “A arte apresenta-se a Camus como o modo mais eficiente de manter viva uma experiência, de protegê-la de certo pensamento alienante, de resgatar toda a sua dimensão e torná-la sempre presente”.2 (ILARI). Dessa maneira, Camus adere à escrita romanesca de seu tempo, na qual o homem, com sua razão e seus afetos, ocupa o centro, já que ele é por excelência o sujeito que experimenta.

O elo estabelecido entre literatura e realidade se concretizou ao longo da história da literatura de diferentes maneiras, fiquemos neste momento com a diferença operada entre o século XIX e o XX. Ao considerarmos tal relação, não poderíamos deixar de pensar em Honoré de Balzac, Victor Hugo ou Émile Zola, autores que, cada um à sua maneira, fortaleceram essa ligação ao buscarem a fidelidade ao real, procurando produzir uma transparência na narração de modo que o leitor pudesse ter acesso à vida bruta. É claro que o desejo desses escritores estava muito aquém da real possibilidade de atingir uma objetividade, mas de todo modo, suas narrativas criavam o que Roland Barthes chamou de “efeito de real” (1982). Uma das estratégias que contribuíram para tal efeito foi o excesso dos detalhes que permearam os romances do século XIX, como, por exemplo, a presença das datas que, frequentemente, iniciavam o primeiro capítulo de tais obras. Para exemplificar, lembremos-nos do narrador balzaquiano em Le Père Goriot, um dos romances que compõem La Comédie Humaine, e de suas descrições minuciosas de uma pensão situada na Paris do século XIX, especificamente, na rua Neuve-Sainte-Geneviève, e de seus moradores. Não à toa o romance é dedicado ao zoologista Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, já que Balzac pretende manter a precisão de um cientista na descrição da fauna para caracterizar o ambiente onde se passa a narrativa e seus personagens.

2

(18)

Esses romances, filhos de seu tempo, refletem a importância que tinha a história enquanto ciência positiva na época e estabelecem forte vínculo com a realidade, pois, assim como essa ciência, consideram a veracidade como princípio. Partindo dessa ideia, o narrador procurará certificar os leitores de que “foi assim que aconteceu”, ou seja, de que sua história equivale à realidade. O compromisso com a realidade esteve também presente nas narrativas de caráter autobiográfico, justamente porque nelas pressupõe-se que autor e personagem são atores coincidentes e que, ao escrever sobre sua própria vida, o autor narra uma história sobre a qual tem pleno conhecimento. Os gêneros de escrita de si como as confissões, as memórias, as autobiografias e, posteriormente, os romances autobiográficos e as autoficções, tinham o compromisso com a verdade em sua concepção de princípio. Isso porque a tradição do gênero está ligada ao ato da confissão que, dentro de um contexto religioso, pressupõe a verdade. Em Confissões, Agostinho assume a postura de quem confessa dirigindo-se ao interlocutor e pedindo que ele o escute e ajude a falar de sua vida de modo que possa conhecer a si mesmo e conhecer a verdade de todas as coisas (reflete então sobre o tempo, a memória, a vida religiosa, etc). O compromisso que ele estabelece com a verdade está no diálogo com seu próprio interlocutor, Deus, quem possui a Verdade.

Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça o homem pode conjecturar de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. (AGOSTINHO, 2001, p. 35).

Assim, mesmo que Agostinho não se lembre de sua infância, ele pode narrá-la em toda a sua verdade pela graça divina, que possibilita a manutenção das histórias na memória das mães, que, por sua vez, as contarão a seus filhos.

(19)

será modificado ao longo da história, possibilitando inclusive toda a variedade de textos dentro do gênero de escritas de si, como é o caso, por exemplo, do aparecimento da autoficção, no século XX, com Serge Doubrovsky, e da complexa trama estabelecida entre autor, personagem e narrador.

Escritores contemporâneos a Camus já não tinham o critério da veracidade como preocupação, não tinham a pretensão de “fazer história”, ou de descrever a sociedade de uma época, pintando o tecido social, criticando a decadência de valores burgueses, descrevendo a urbe. Eles preferiam dizer do e para o presente, de modo a problematizar os fatos de sua época. Os escritores do século XX estavam menos convencidos de que sua narração pudesse ser neutra, já não aspiravam a “deixar a história falar por si”, ou escrever a história do presente, como o quisera o narrador balzaquiano ao descrever os tipos sociais. A ligação estabelecida por eles com a realidade histórica é de outra natureza, ocorre de uma forma mais particular, na qual o indivíduo assume uma postura mais implicada. Seja tratando de questões políticas, e, assim, vê-se, por exemplo, o movimento da literatura engajada e das vanguardas que fazem uso do manifesto, gênero textual político, no âmbito literário; seja ao apresentar narrativas que resgatam memórias, trazem testemunhos e exploram relatos de infância, valorizando o indivíduo. E aqui se observa o crescimento da publicação de diários e da literatura de testemunho, característica do momento pós Segunda Guerra Mundial. No romance La Chute, por exemplo, temos a confissão de um típico personagem do pós-guerra, Jean-Baptiste Clamence, dito culpado, sem esperança, cético, irônico. No romance, a personagem confessa seus erros em um longo monólogo.

Je suis confus de vous recevoir couché. Ce n’est rien, un peu de fièvre que je soigne au genièvre. J’ai l’habitude de ces accès. Du paludisme, je crois, que j’ai contracté du temps que j’étais pape. Non, je ne plaisante qu’à moitié. Je sais ce que vous pensez : il est bien difficile de démêler le vrai du faux dans ce que je raconte. Je confesse que vous avez raison. [...] Qu’importe après tout? Les mensonges ne mettent-ils pas finalement sur la voie de la vérité ? Et mes histoires, vraies ou fausses, ne tendent-elles pas toutes à la même fin, n’ont-elles pas le même sens ? Alors, qu’importe qu’elles soient vraies ou fausses si, dans les deux cas, elles sont significatives de ce que j’ai été et de ce que je suis. On voit parfois plus clair dans celui qui ment que dans celui qui dit vrai. La vérité, comme la lumière, aveugle. Le mensonge, au contraire, est un beau crépuscule, qui met chaque objet en valeur. Enfin, prenez-le comme vous voudrez, mais j’ai été nommé pape dans un camps de prisonniers.3 (CAMUS, 1956, p. 129).

3

(20)

Nas narrativas do século XX, constrói-se o efeito de que o sujeito que relata está inteiramente envolvido na ação de narrar, sendo percebido mais em sua própria e irredutível subjetividade do que como um indivíduo em um grupo, como participante de uma coletividade ou como produto de um meio. É claro que a noção de indivíduo está presente no romance do século XIX, aliás, como aponta Gérard Gengembre, ela é indissociável da própria concepção de romance, já que é um gênero de leitura individual, e que comumente apresenta o percurso narrativo de um indivíduo, descreve seu ambiente, realiza a individualização das personagens. Porém, no século XIX, a personagem era um “tipo” em sua sociedade, e estava mergulhada em uma história de grandes heróis e feitos:

A definição da personagem do romance se anuncia então nesta perspectiva: ele está “sozinho”, mas em uma sociedade da qual ele se quer e se sabe membro, ou ainda da qual ele deseja tornar-se membro. Ele tem uma vida interior, frequentemente em contradição com suas exigências, com as limitações e convenções da sociedade – mas o romancista sabe que essa sociedade será a mais forte: é preciso se adaptar, se resignar ou morrer.4

Assim, a interioridade da personagem, mesmo que presente, não se sobrepõe ao movimento da sociedade em que se encontra. De certa maneira, independentemente das vontades ou do lugar que o indivíduo ocupa socialmente, há um destino histórico já determinado para ele e para seu grupo. Isso porque a ordem é bem vista neste período, e mesmo que a personagem passe por conflitos e mudanças, suas características lhe conferem unidade, e esta se opõe ao ambiente social no qual se encontra.

O século XX, ao contrário, parece não predestinar ou apresentar um caminho incontornável, oferecendo personagens repletas de limites e dotadas de características múltiplas ou mesmo paradoxais. Nilson Adauto aponta tal aspecto ao resgatar a

conto. Confesso que tem razão. [...] Que importa, afinal ? As mentiras não conduzem finalmente ao caminho da verdade ? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas para o mesmo fim, não têm o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, em ambos os casos, são representativas do que fui e do que sou? Pode-se, às vezes, ver mais claro em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto. Enfim, entenda como quiser, fui escolhido para ser papa em um campo de concentração”. (CAMUS, 1996, p. 93).

4

(21)

explicação dada por Jean-Paul Sartre em uma conferência em Nova York, em 1946, posteriormente publicada pela revista americana Theatre Arts, vol. XXX:

Sartre explica então que, entre os jovens autores franceses, depois de 1940, a preocupação em pintar caracteres, demonstrar os mecanismos de uma paixão ou analisar um complexo é suplantada pela vontade de colocar os personagens em situações, confrontados com limites por todos os lados (ADAUTO, 2010, p. 250).

A compreensão de Sartre sobre as personagens posteriores aos anos 1940 vai ao encontro das personagens camusianas. Podemos citar aqui a personagem mais célebre, Meursault, de L’étranger, que é, sem dúvida, confrontada com limites por meio de situações absurdas, como o assassinato do árabe motivado pela luz solar e o posterior julgamento, no qual o principal argumento da acusação é sua insensibilidade diante da morte da mãe. Não há unidade na caracterização da personagem, que oscila entre a indiferença e o desejo. Para referir nosso objetivo de estudo, em Le Premier homme, o protagonista Jacques Cormery também se distancia da caracterização feita por Gengembre. Ele se encontra entre duas sociedades, não tem clareza quanto à sua história, antes, está mergulhado na dificuldade de conhecê-la. Não há nada previamente determinado, ele não se constitui como mais um membro do grupo e nem é determinado socialmente, mas será, justamente, o primeiro homem. O primeiro porque desconhece o passado de seu pai e, por isso, a ele é permitido (re)contar a sua história e a de seu povo. Ele deseja tirar seu grupo do anonimato do qual saiu, valorizando propriamente essa condição anônima enquanto fundadora de um povo – “Ele é o primeiro homem porque não é mais anônimo, mas também porque quer homenagear esse anonimato fundador, esse húmus”5. Assim, a personagem não é apenas mais uma em um grupo, mas marca o início de uma nova história na medida em que pretende conhecer e narrar seu passado.

A vinculação entre literatura e realidade histórica se alterou igualmente influenciada pela diferença no tratamento das referências históricas ocorrida de um século para outro. A forma literária do século XIX segue a lógica da maneira de se pensar a história na época. É o que aponta Roland Barthes ao afirmar que o realismo literário, próprio dos séculos XVIII e XIX, foi contemporâneo do “reino da história objetiva” (Cf.1982, p.81) e do desenvolvimento de técnicas e obras que buscavam

5

(22)

autenticar o “real”, como a fotografia e a reportagem, por exemplo. Da mesma forma, a mudança de ponto de vista nas obras literárias no século XX ocorreu sob grande influência do crescimento das ciências sociais, como a antropologia, por exemplo. A própria história, que no século XIX buscava se firmar no âmbito científico dando primazia às fontes escritas, à crítica de documentos, à reunião de fatos e à neutralidade do historiador, começa a ser concebida no século seguinte como uma construção discursiva. O que pode ser percebido, especialmente, com o início dos trabalhos de Lucien Febvre e Marc Bloch, que buscavam, na década de 1920, combater a influência do positivismo na prática historiográfica. E essa nova compreensão do que seria a história e o trabalho do historiador teve reflexos na produção literária, aproximando, inclusive, os dois campos do saber.

Os campos da literatura e da história voltam a se aproximar no século XX depois da separação iniciada no século XVIII entre “ciência” e “letras”, período no qual o princípio da neutralidade era almejado e a razão era muito valorizada. Essa separação se consolida, finalmente, no século XIX, com a história de cunho positivista. Porém, o processo histórico começa a ser refletido de outra maneira no século XX: bastante influenciados pelos trabalhos de antropólogos e outros cientistas sociais, os historiadores se veem impelidos a repensarem sua tarefa. O desenvolvimento de outras áreas no campo das ciências sociais contribuiu para o surgimento da Escola dos Anais (École des Annales), movimento que surge em oposição à hegemonia da história política no campo historiográfico. E que, por isso, fomentou novos campos de interesse, tais como a história local, econômica, cultural, ou a micro-história, por exemplo. Tais novidades ampliaram o entendimento do trabalho do historiador, passando este a ser compreendido como construção de um discurso portador de um sistema de significação e que, portanto, pressupõe legitimação para que circule enquanto tal. Através desse movimento de historiadores, os estudos da disciplina puderam se aproximar com maior facilidade de diversas outras áreas do conhecimento:

(23)

empreendimento comum, algumas vezes descrito como uma “antropologia literária” ou uma antropologia da “cultura visual”. (BURKE, 1990, p.134).6

O problema na história é, dessa maneira, (re)colocado, deixando de concentrar-se apenas no objeto de estudo e ampliando-se também para o sujeito que toma a palavra, para a enunciação. Como aponta Paul Ricoeur, a tese de Raymond Aron (publicada em 1938) discute a questão da objetividade histórica quando o autor proclama a dissolução do objeto:

[…] na medida em que o historiador é implicado na compreensão e na explicação dos acontecimentos passados, um acontecimento absoluto não pode ser atestado pelo discurso histórico. A compreensão nunca é uma intuição direta, mas uma reconstrução.7

E uma vez que o discurso histórico afasta-se dos critérios de veracidade e é caracterizado como uma reconstrução na qual o sujeito (historiador) está implicado, a fronteira entre história e literatura torna-se ainda mais tênue. A distância entre ambas diminui ao passarem a compartilhar as funções de produção de sentido daquilo que é humano através da linguagem e da busca pela verossimilhança. Michel de Certeau considera ainda a presença da ficção no próprio fazer histórico, o que aparece essencialmente na dimensão da enunciação. Mesmo que a história se afirme por oposição à ficção, ao se colocar na contramão do que é o falso e se autorizar a falar em nome do real, ela realiza suposições, imagina situações possíveis, estabelece recortes a partir de um interesse, seleciona personalidades e acontecimentos, ou seja, utiliza a ficção nas suas hipóteses, e lida com ela em sua construção:

(...) ao vislumbrar a relação do discurso com quem o produz – ou seja, alternadamente, com uma instituição profissional e com uma metodologia científica –, é possível considerar a historiografia como uma mistura de ciência e de ficção, ou como um lugar em que se reintroduz o tempo. (DE CERTEAU, 2012, p.68).

Nesse sentido, o historiador, entendido como construtor de uma trama a partir de documentos e testemunhos, trabalha com versões de um passado. E, portanto, ele se aproxima mais da verossimilhança do que da veracidade, tão almejada no século XIX. E

6

Fernand Braudel foi um historiador francês da segunda geração dos Annales, realizou longo estudo sobre o mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II, também desenvolveu o conceito de “longa duração”. Emmanuel Le Roy Ladurie e Philippe Ariès foram historiadores franceses da terceira geração dos Annales, influenciados pela história das mentalidades. Ariès desenvolveu estudo sobre a infância no Antigo Regime.

7

(24)

é motivado pelo conhecimento completo e pela reestruturação do passado, mesmo que isso não lhe seja possível. Ele acredita na possibilidade de reconstruí-lo, mesmo que o que faça de fato seja construí-lo, partindo do pressuposto do passado “ter sido” de alguma maneira, mesmo que no presente não exista mais. Sua atividade poderia ser caracterizada pela vontade de atingi-lo pela narrativa, depois de ter passado pelas etapas da seleção de documentos e da interpretação, na qual procura explicar e compreender os rastros coletados (Cf. RICOEUR, Temps et récit Tome. III). Dessa forma, a escrita e a construção de uma intriga fariam parte da própria epistemologia da história. E, assim, as fronteiras entre história e ficção vão se tornando mais nebulosas à medida que uma participa da construção da outra e que o subjetivo passa a ser admitido em ambas.

No romance La nausée, Sartre exemplifica a angústia do trabalho do historiador através da dificuldade que encontra sua personagem, Antoine Roquentin, em escrever a história do marquês de Rollebon de modo a concluir sua pesquisa historiográfica. O episódio ilustra muito bem a incontornável presença do sujeito historiador na construção da narrativa histórica e a exigência em seu trabalho da construção de uma intriga a partir dos rastros por ele colhidos e interpretados. A personagem passa grande parte de seus dias na biblioteca tentando escrever sobre o marquês e cercada de documentos: cartas, fragmentos de memórias, relatórios secretos, arquivos da polícia. No entanto, apenas esse material não lhe parece suficiente para traçar o passado de Rollebon. Por isso, interroga-se sobre a produção de outros historiadores que analisaram os mesmos documentos e sobre a qualidade de seu trabalho. E chega à seguinte conclusão:

il [o marquês] a pu faire tout ça, mais ce n’est pas prouvé : je commence à croire qu’on ne peut jamais rien prouver. Ce sont des hypothèses honnêtes et qui rendent compte des faits : mais je sens si bien qu’elles viennent de moi, qu’elles sont tout simplement une manière d’unifier mes connaissances. Pas une lueur ne vient du côté de Rollebon. Lents, paresseux, maussades, les faits s’accommodent à la rigueur de l’ordre que je veux leur donner mais il leur reste extérieur. J’ai l’impression de faire un travail de pure imagination. Encore suis-je bien sûr que des personnages de roman auraient l’air plus vrai, seraient, en tout cas, plus plaisants. (SARTRE, 1938, p. 28).8

8

(25)

Tal reflexão, aqui presente através da figura da tarefa de Roquentin, só é possível no contexto do século XX e exemplifica a redução da distância que ora separava a narrativa de ficção da narrativa historiográfica. Para Roquentin, aquilo que permanece de seu trabalho são a ordem e o encadeamento que ele mesmo estabelece ao analisar os fatos, que parecem ficar de fora. Dessa forma, acredita que a imaginação é um componente central em sua tarefa.

Ao considerar a querela existente entre história e ficção, Michel De Certeau diferencia ambas de início para em seguida explorar pontos em que se relacionam. A historiografia se distancia da ficção ao se colocar em oposição à “fabulação genealógica, aos mitos e lendas da memória coletiva, às derivas da circulação oral” (DE CERTEAU, 2011, p.45). Por meio dessa contraposição, ela busca sua legitimação afastando-se do discurso ordinário. A ficção, por outro lado, em todas as formas que ela pode assumir segundo De Certeau – mítica, literária ou científica –, configura o real sem qualquer pretensão de representá-lo ou de ser por ele legitimada. Para o historiador, a fronteira entre história e literatura se estabelece no trabalho de escrita e vai sendo delimitada pelas organizações institucionais às quais os escritores estão ligados e que possuem seus interesses. Quanto à escrita, que é o que nos interessa especialmente, De Certeau defende a tese da literatura como possibilidade de um novo discurso teórico a respeito dos processos históricos. Isso seria justificado pela possibilidade de criar e desenvolver uma lógica própria. Ou seja, o historiador considera a expressão literária, e mais especificamente, poderíamos dizer, a forma do romance, da narrativa em prosa, como um lugar de desenvolvimento conceitual das sequências históricas.

(26)

médica que apresenta dificuldades científicas, a forma do texto literário passa a ser uma alternativa para teorizar a análise sem desconsiderar a subjetividade dos indivíduos ali implicados. Recorda ainda que Freud citou, com frequência, em seus trabalhos, obras literárias de Shakespeare, Goethe ou Schiller, por exemplo. Ou seja, sua produção científica não deixava de considerar a literatura, afirmando a proximidade de seu discurso com o de romancistas e poetas e se posicionando em uma perspectiva contrária à positivista. Nas palavras de De Certeau:

(...) o texto literário, que é também um jogo, constitui um espaço igualmente teórico e protegido à maneira de um laboratório em que se formulam, se distinguem, se combinam e se experimentam as práticas astuciosas da relação com outrem. É o campo em que se exerce uma lógica do outro, aliás, aquela que havia sido rejeitada pelas ciências na medida em que elas praticavam uma lógica do mesmo. (DE CERTEAU, 2011, p.100).

E o texto literário pode ser esse lugar no qual se distinguem, combinam e experimentam outras relações justamente porque possibilita ambigüidades, reviravoltas, repetições, equívocos. Elementos que, para Freud, se revelavam igualmente na experiência do sujeito através da análise psicanalítica. São esses elementos, justamente, o que torna possível ao analista o conhecimento do sujeito, pois se evidenciam no indivíduo quando este evoca acontecimentos, memórias, sonhos, repetições, máscaras e representações, tornando presente o passado.

(27)

considerarmos a permanência da linguagem, mesmo que associada a diferentes ideias no decorrer do tempo.

Foucault faz ver a continuidade precisamente onde era afirmada a ruptura, do mesmo modo que ele designava uma descontinuidade que destruía a homogeneidade de um devir ciência. [...] verifica-se uma permanência de superfície: aquela que, apesar dos deslizes do subsolo, mantém uma relação de identidade entre as palavras, os conceitos ou os temas simbólicos. Um exemplo simples: nos séculos XVII, XVIII e XIX, fala-se de “louco”, mas, na realidade, nessas diferentes épocas, “não se trata da mesma doença”. [...] Os mesmos objetos mentais “funcionam” de maneira diferente. (DE CERTEAU, 1990, p. 143).

Foucault realiza seu trabalho igualmente traçando narrativas – “Suas ‘narrativas’, como ele afirmava, relatam a maneira como aparecem e se instituem novas problemáticas; muitas vezes elas têm a forma de surpresas, à semelhança dos romances policiais” (DE CERTEAU, p. 120) –, as quais procuram evocar os inúmeros percursos do pensamento humano na história, buscando refletir sobre uma arqueologia das ciências humanas.

Sem qualquer pretensão de aprofundar os trabalhos de Freud ou de Foucault, queremos aqui apenas tentar elucidar a tese defendida por De Certeau segundo a qual a relação entre ficção e história é sustentada a partir dos trabalhos científicos do psicanalista e do filósofo. Ambos valorizaram o uso de uma narrativa, que se aproxima da literária, para desenvolver suas teorias. Assim, poderíamos voltar a colocar a pergunta: o que, então, diferenciaria a narrativa de ficção de outra narrativa como a histórica? Paul Ricoeur nos dá uma resposta bastante convincente em sua obra Temps et Récit, e que poderia ser resumida na palavra liberdade: liberdade de que goza o autor de ficção ao estabelecer uma temporalidade, ao caracterizar o espaço e ao misturar personagens de seu imaginário a personagens históricos – “É preciso mesmo suspeitar que, graças à sua maior liberdade frente aos acontecimentos efetivamente ocorridos no passado, a ficção desenvolve, no que concerne à temporalidade, ferramentas de investigação proibidas ao historiador”9. A potência criadora é muito maior em um texto ficcional, pois, mesmo que considere a História, não possui os limites característicos ao trabalho do historiador como fontes, datas e esquemas.

9

(28)

Se a relação da literatura com a história não foi negada pelos escritores, quando tantas vezes referenciaram fatos históricos, através de personagens e momentos, ou até mesmo quando pretenderam “deixar que a história falasse por ela mesma” explorando o efeito realista que as descrições poderiam trazer, a história contemporânea cada vez mais reconhece sua proximidade com a literatura, sobretudo em termos discursivos. E se a literatura pode ser um discurso teórico utilizado pelas ciências humanas, tais como a psicanálise e a história, como defendeu De Certeau, poderíamos considerar que também a narrativa histórica pode contribuir com a literatura em sua forma de representar o tempo passado, assumida muitas vezes no trabalho literário para refigurar o tempo.

Identificada a aproximação e o distanciamento entre os campos da literatura e da história, voltemos ao romance em questão. Le Premier homme estabelece forte vínculo com a história, desde o contexto de produção do romance, a enunciação e a própria trama. O romance começa a ser escrito no final dos anos 1950, época em que os conflitos na Argélia tornavam-se mais intensos e a revolução era iminente. A narrativa, que tem como protagonista um argelino transeunte no eixo França-Argélia, dialoga com a época de escrita da obra ao fazer memória de um passado de guerra e da situação do povo que habita a então colônia. E ao por em destaque uma realidade silenciosa e marcada pela ignorância que já fora sinalizada pelo jovem Camus em obras anteriores, como Les voix du quartier pauvre (1934) e L’Envers et l’endroit (1937). Com estas, o escritor já anunciava que não pretendia se esquivar da existência e da vida no seu bairro em Argel e de seu povo argelino. Tantos outros textos camusianos pintaram a paisagem argelina, tinham a Argélia como cenário ou falaram do país de um ponto de vista social e político. Textos de ficção como, por exemplo, Noces, L’Étranger, L’Envers et l’endroit, L’exil et le royaume, e textos ensaísticos ou reportagens, como Actuelles III, Chroniques Algériennes ou « La misère de la Kabylie » (1937, publicado em L’Alger Républicain).

(29)

mencionar todos esses acontecimentos, o romance se estabelece em continuidade com o campo da história, da mesma maneira que o faz ao precisar datas e lugares. No entanto, dele se diferencia ao narrar a trajetória de personagens fictícios, ao transitar entre o passado e o presente através da perspectiva da personagem, ao mudar de tempo e espaço de forma sutil, na mesma passagem, sem que o narrador avise aos leitores, produzindo efeitos como o do flashback e o da rememoração. Por esses motivos podemos dizer que história e literatura dialogam fortemente em Le Premier homme.

Camus sempre manteve os olhos em seu país natal, permitindo que os leitores pudessem conhecer a Argélia, tirando-a do desconhecido. O que seria seu último romance exemplifica o elo que o escritor constituiu com essa terra e diz muito sobre a ligação de sua escrita com a realidade na qual esteve envolvido.

Mas a grandiosa estratégia, que domina toda a existência de Camus, é o recurso à alquimia da arte, no caso, à escrita: ela transfigura pela estilização o efêmero em texto e restitui, assim, a todo leitor o que, ao contrário, teria desaparecido. [...]

Logo, O Primeiro Homem é o monumento que Camus pretende erguer aos

membros de sua tribo, os Franceses pobres da Argélia, e à sua família, que embora destruída pela história, não tem acesso a ela. Ele deseja “reencontrar” o “tempo perdido” deles.10

Assim, o romance instaura um ponto de vista sobre o que, de outra forma, segundo Jeanyves Guérin, “teria desaparecido”: a história dos “franceses pobres da Argélia”. Evidentemente, Camus traz à tona essa história talvez desconhecida através da ficção, já que, mesmo que se baseie em documentos históricos para referir-se à trajetória dos colonos na Argélia, cria uma narrativa de ficção, de modo a dar um passado a esse povo. Dessa forma, deseja tirá-lo de um possível esquecimento, como é comentado no prefácio ao romance publicado na edição da Pléiade:

O projeto de Camus reivindicava a ficção, de tanto que a imaginação se encontra nele profundamente inscrita. Não se trata de contar uma vida, mas de ver nascer um “primeiro homem”, e depois de situá-lo na sucessão dos “primeiros homens” cuja existência precisa ser reinventada a partir de uma documentação, necessariamente sem rosto (...).11

10

“Mais la stratégie royale, qui domine toute l’existence de Camus, est le recours à l’alchimie de l’art, en l’occurrence l’écriture : elle transfigure par la stylisation l’éphémère en écrit et restitue ainsi pour tout lecteur ce qui sinon aurait définitivement disparu. [...] Le Premier Homme est en somme le monument que Camus entend ériger aux membres de sa tribu, les Français d’Algérie pauvres, et à sa famille, qui bien que brûlée par l’histoire n’a pas accès à elle. Il entend ‘ retrouver’ leur ‘temps perdu’”. (GUÉRIN (org.), 2006, p. 531).

11

(30)

Esse trabalho empreendido por Camus tem início em um momento delicado na história da Argélia e da França, quando principiam os conflitos pela independência na colônia e a metrópole envia tropas para conter os nacionalistas. Foram nove anos de confronto em solo argelino e de muita discussão travada entre intelectuais, políticos, soldados franceses, revolucionários, nacionalistas, argelinos muçulmanos pró-França, franceses que viviam na Argélia. A diversidade dos grupos envolvidos na guerra elucida a complexidade do confronto e a rara possibilidade de uma solução pacífica. Considerando tal contexto e sabendo que a narrativa de Le Premier homme se passa na Argélia e estabelece forte relação com a história dos colonos no país, faz-se necessário refletir sobre esse momento de escrita do romance.

1.2 A posição de Camus: do debate francês ao silêncio argelino

O confronto entre França e Argélia atingiu o escritor, que, nos anos 1950, já se encontrava em uma situação delicada no cenário intelectual francês. Na França, a independência argelina estava sendo muito discutida pelos intelectuais engajados, figura que aparece no período da Ocupação e goza então de prestígio no ambiente francês. É caracterizada por uma atuação e/ou posicionamento públicos ao nível estético, ideológico e, principalmente, político. Albert Camus e Jean-Paul Sartre eram reconhecidos não apenas como escritores de literatura, mas como homens públicos (ADAUTO, 2010) que atuavam também no campo filosófico e jornalístico. Ambos dirigiram revistas de altas tiragens, como a revista Combat, coordenada por Camus, que atuou na clandestinidade no período de ocupação da França pela Alemanha, e a publicação Les Temps Modernes, dirigida por Sartre, e que foi palco para a discussão entre os dois.

(31)

ensaio foi lido a partir de um ponto de vista político mais do que estético e recebeu duras críticas da imprensa de esquerda. O ensaio funcionou como motivo para o início da querela entre o escritor e seu companheiro Sartre. Tal discussão, somada à recusa de Camus em tomar partido em qualquer um dos lados na guerra, o “colocou em quarentena”12 no cenário intelectual da época. A polêmica foi ainda reforçada pela frase

que teria sido proferida pelo escritor em 1957, quando questionado sobre a justiça da luta pela independência: “Je crois à la justice, mais je défendrai ma mère avant la justice”13(OC, IV, p. 288). A resposta misteriosa e descontextualizada foi entendida de

maneira egoísta e contra a causa dos que defendiam a independência, aumentando ainda mais as tensões em relação ao escritor franco-argelino.

Nesse mesmo ano, o FLN (Front de Libération Nationale) atacou Argel, e o exército francês acirrou sua resposta dando origem à “bataille d’Alger” (STORA, 1997, p. 48). Camus não tomou qualquer posição no conflito e não se pronunciou publicamente sobre a questão nos anos seguintes. Em 1959, ele se retira em Lourmarin, saindo da atmosfera tumultuada das discussões de Paris e de Argel. O silêncio é em parte justificado por sua repulsa à violência exposta em tantos de seus textos: no próprio ensaio L’homme révolté, em que critica governos totalitários, ou na mais famosa de suas obras, L’étranger, na célebre cena do assassinato do árabe por Mersault. Também em Le Premier homme, o tema não ficará esquecido: o menino Jacques experimenta toda a angústia e a tristeza da vitória conquistada com violência. No episódio, ele vence uma briga com o amigo Munoz e sente o peso de o ter ferido. Nesse evento, Camus expõe a moral que talvez o tivesse impedido de ser a favor de qualquer um dos lados em uma guerra:

Il voulait être content, il l’était quelque part dans sa vanité, et cependant, (...) une morne tristesse lui serra soudain le coeur (...). Et il connut ainsi que la guerre

12

“Camus meurt incompris de sa famille intellectuelle, qui l’a tenu en quarantaine, qui ne lui a pas pardonné son entêtement”. (WINOCK, 1997, p. 538).

13

(32)

n’est pas bonne, puisque vaincre un homme est aussi amer que d’en être vaincu. 14 (CAMUS, 1994, p. 146).

O conflito provoca dor e nenhum lado sai vencedor. Essa moral nunca fora esquecida por Camus em seus posicionamentos como, por exemplo, sua posição contrária à pena de morte ou ao terrorismo. E em defesa dessa moral universal, que surge a preservação da vida, ele não aceita nenhum tipo de morte, mesmo que se deva a uma justa e legítima condenação. Assim, se ele argumenta em favor da justiça ao povo argelino (principalmente em seus artigos, reunidos em Actuelles III Chroniques Algériennes), ele também considera que “a morte do inocente”15 (encarnado na pessoa da mãe em sua declaração em 1957) não pode fazer justiça em nenhuma situação, ela é a própria injustiça. Nesse sentido, ele acusa tanto as violências cometidas pelo exército francês quanto as perpetradas pelo FLN, que chegou a receber ajuda de intelectuais franceses.

Tendo em vista o contexto no qual o escritor estava imerso durante a escrita do romance, a relação que seu projeto estabelece com a história se consolida no uso de seu texto como possível refutação ao conflito que então se acirrava. Sozinho em sua convicção sobre a situação na Argélia, Camus defendia um “régime de libre association”, fundado na reconciliação nacional e na proporcionalidade parlamentar (VIRCONDELET, 2010), que era, porém, irrealizável aos olhos dos intelectuais de esquerda e de gaullistes (que apoiavam Charles de Gaulle). Ele, ao contrário, opta por uma terceira via16, e faz da ficção sua forma de se posicionar. E essa escolha implica a volta à terra natal17, a pesquisa por documentos históricos conservados na Argélia e a rememoração de lembranças de sua infância e juventude.

14

“Queria ficar contente, e realmente estava, num certo aspecto de sua vaidade, e no entanto (...) uma morna tristeza apertou-lhe de repente o coração (...). E soube assim que a guerra não é boa, já que vencer um homem é tão amargo quanto ser vencido”. (CAMUS, p. 139).

15

“Quelles que soient les origines anciennes et profondes de la tragédie algérienne, un fait demeure : aucune cause ne justifie la mort de l’innocent”. (Cahier de l’Herne, 2013, p. 346)

16

Trecho do prefácio feito por Albert Camus em 1958 para Actuelles III Chroniques Algériennes: “Dans

l’impossibilité de me joindre à aucun des camps extrêmes, devant la disparition progressive de ce troisième camp où l’on pouvait encore garder la tête froide (...) j’ai décidé de ne plus participer aux incessantes polémiques qui n’ont eu d’autre effet que de durcir en Algérie les intransigeances aux prises et de diviser un peu plus une France déjà empoisonnée par les haines et les sectes”. (Cahier de l’Herne, 2013, p. 351).

17

(33)

Para justificar tal silêncio, era preciso que Camus retomasse a história dos antepassados, a relação complexa entre árabes, berberes e franceses, fossem estes fellaghas, a favor da nação argelina, ou partisans (em defesa de um governo aliado à França). Era preciso mostrar o passado de sua comunidade, talvez “ininteligível aos leitores da metrópole” (Cf. REY, 2008, p.121). Na terceira parte prevista pelo escritor para o romance, na qual concluiria sua obra, ele inclui a explicação por parte de seu protagonista de questões como a relação com os árabes e a civilização crioula, por exemplo. No entanto, esta parte não chegou a ser escrita: “Dans la dernière partie, Jacques explique à sa mère la question arabe, la civilisation créole, le destin de l’Occident. ‘Oui, dit-elle, oui’. Puis confession complète et fin”18 (CAMUS, 1994, p. 307). Nesse sentido, Le Premier Homme é parte de sua resposta franco-argelina diante da guerra.

A ficção é, nesse sentido, a realização de uma terceira via. Isso porque, apesar de ligada à realidade, como defende o próprio Camus, e mesmo sendo escrita a partir de pesquisa historiográfica, ela é o espaço para dizer aquilo que não pertence à lógica esperada, representada pela organização linear dos acontecimentos. Ela possibilita a abertura para a construção de outra ordem. Assim, a partir da arte propõe-se uma mudança, outro modo de olhar a experiência humana, como assinala Ilari (2013): “A arte, diz Camus, transfigura a regularidade linear, fortalece o que já havia sido enfraquecido”19. Além disso, permite que apareça o inesperado, que uma nova lógica seja possível para pensar os acontecimentos, lógica pela qual a nova história começou a se interessar. Ao contrário do que normalmente ocorre na realidade, na ficção, a pobreza e os inimigos podem ser benéficos, belos e poéticos.

As notas de Camus, anexadas ao final do romance, evidenciam a busca do escritor por documentos e textos sobre a história argelina e sua intenção de dar um destino ao povo pobre que vivia na região, incluindo sua família. Há inúmeras referências precisas sobre fatos da história, incluindo datas, cidades, funções militares, nomes próprios, quantidade de mortos, além de alusões a obras, “Histoire de la

18

Esse trecho faz parte do plano da obra publicado em anexo junto ao romance: “Na última parte, Jacques explica a sua mãe a questão árabe, a civilização crioula, o destino do Ocidente. ‘Sim, diz ela, sim’. Depois confissão completa e fim”.

19

(34)

colonisation de l’Algerie”, de historiadores como Bandicorn, a que ele se refere em suas notas. No entanto, Camus escreve: “Les mairies d’Algérie n’ont pas d’archives la plupart du temps”20 (CAMUS, 1994, p.268), o que abre espaço para seu trabalho criativo. Suas anotações em páginas de caderno permitem que o leitor tenha uma ideia de como ele pretendia organizar seu romance. Elas mostram o plano da obra, indicando todas as partes temáticas que seriam ali incluídas: o nascimento da criança e o retorno do adulto à Argélia 40 anos depois, a pesquisa pelo pai e a descoberta do primeiro homem, a infância, a adolescência, a vida política, os amores, a mãe. Porém, mais do que isso, essas notas apontam para a razão desse projeto literário: “Arracher cette famille pauvre au destin des pauvres qui est de disparaître de l’histoire sans laisser des traces. Les Muets. Ils étaient et ils sont plus grands que moi”.21 (CAMUS, 1994, p. 293).

Assim, introduz-se uma motivação histórica no princípio do processo de escrita, e que parece completamente de acordo com o momento vivido pelo escritor em meio ao conflito França-Argélia, dilema para ele nada simples de solucionar. O romance, que aborda a história dos europeus chegados à Argélia a partir dos anos 1830, justifica o silêncio público do escritor diante da questão de independência argelina na medida em que torna complexa a relação existente entre os grupos que habitam o mesmo território, escapando do dualismo entre franceses opressores versus argelinos oprimidos. Camus teme o futuro de sua terra:

Camus acredita firmemente no renascimento de seu país, e adverte seus contemporâneos dos riscos trágicos que a independência acarretaria, tanto para os franceses, que logo seriam condenados a fugir, quanto para os árabes, que não poderiam governar um país mergulhado no caos das influências. 22

E, por isso, o escritor conta o passado repleto de miséria e sofrimento vivido por colonos europeus em terra argelina, como a sua própria família, e expõe, dessa maneira, a dificuldade de posicionar-se em defesa da nação argelina. A própria ideia de nação está suspensa no romance, já que diz respeito ao compartilhamento de uma identidade e

20

“As prefeituras da Argélia não têm arquivos na maior parte das vezes”.

21

“Arrancar essa família pobre do destino dos pobres, que é desaparecer da história sem deixar traços. Os Mudos. Eles eram e são maiores do que eu”.

22

(35)

a uma organização política, o que sempre fora penoso devido à diferença entre os povos e resultou em muitas guerras nessa terra – “Ele não pode aderir aos objetivos do FLN porque nunca houve, em sua opinião, nação argelina”.23 Camus prefere a palavra pátria, pois faz alusão a terra, ao espaço físico e geográfico habitado por uma coletividade, que é diversa, heterogênea e formada por pessoas vindas de muitos outros lugares. Le Premier homme se constrói no encontro de toda essa diferença – árabes, berberes, descendentes de europeus, judeus – em meio à qual cresceu um povo.

O silêncio que foi vivido por Camus em seus últimos anos de vida aparece como um dos temas que cruzam o romance, fazendo-se presente no passado e no presente da trama. Ele está frequentemente associado à pobreza, como uma consequência dela. A pobreza caracteriza a situação em que vivia a família de Jacques Cormery e a população de seu bairro na cidade de Argel. Sobre essa temática, Bertrand Visage, em entrevista concedida a Alain Finkielkraut, juntamente com Suzanne Julliard, e publicada na seleção de entrevistas Ce que peut la littérature, afirma ser o romance uma meditação sobre a miséria, na qual o escritor pinta a pobreza em todo o seu realismo e os valores que dela podem surgir: “trata-se de uma pobreza sobre a qual não temos mais ideia, vertiginosa e abissal, que torna os homens ferozes e, ao mesmo tempo, solidários e afetuosos; uma pobreza também imóvel, rebelde a todo progresso, fora da história”.24 Essa imobilidade e o fato de produzir valores positivos absolutos, como a solidariedade e o acolhimento, tornam essa pobreza universal e, de certa forma, difícil de ser inserida no processo histórico, mesmo que dele faça parte. E, tendo em vista a concepção histórica do progresso, ela está fora da história justamente porque não é entendida como passível de desenvolvimento, como um elemento que poderia impulsionar a história para frente. Jacques se defronta com ela e a entende como parte daquela terra, chegando mesmo a produzir bons frutos como os citados acima.

Mas não foi nesse romance que o vínculo com a pobreza apareceu pela primeira vez na obra de Albert Camus. O escritor explicita essa relação que com ela estabelece no prefácio, escrito em 1958, para L’Envers et L’Endroit, anos depois da publicação

23

“Il ne peut pourtant adhérer aux objectifs du F.L.N parce qu’il n’y a jamais eu, à ses yeux, de nation algérienne”. (REY, 2008, p. 128).

24

(36)

desse que fora seu primeiro livro. A pobreza e a realidade argelina estão presentes enquanto temáticas e cenário nas breves histórias que o compõem: “La pauvreté telle que je l’ai vécue ne m’a (...) pas enseigné le ressentiment, mais une certaine fidélité, au contraire, et la ténacité muette”.25 Esta fidelidade à sua pátria demonstrada pelo escritor é evidenciada pela presença da Argélia em tantas de suas obras.

Tal lealdade se reflete igualmente no projeto de escrita do romance Le Premier homme. É o que podemos ver na estima que demonstra por sua terra, o que aparece retratada em diversos aspectos como a existência imperiosa dessa “pauvreté chaleureuse”, a importância atribuída à personagem materna na narrativa, as referências aos eventos históricos e a situação social dos habitantes da Argélia, especialmente árabes e franceses. E apesar do contexto conflituoso, Camus não escreve uma narrativa de ressentimento ou de lamúrias, ao contrário, o romance é repleto de lirismo, como se pode ver no trecho a seguir:

Et lui [Cormery] qui avait voulu échapper au pays sans nom, à la foule et à une famille sans nom, mais en qui quelqu’un obstinément n’avait cessé de réclamer l’obscurité et l’anonymat, il faisait partie aussi de la tribu, marchant aveuglément dans la nuit (...) revoyant aussi avec une douceur et un chagrin qui lui tordaient le coeur le visage d’agonisante de sa mère lors de l’explosion, cheminant dans la nuit des années sur la terre de l’oubli où chacun était le premier homme26. (CAMUS, 1994, p.180).

A personagem se reconhece como parte de sua terra natal, mesmo que pareça dividida e admita que dela tenha tentado escapar. A mistura de sentimentos evidenciada pelas oposições “tribu”/ “anonymat” e “douceur”/ “chagrin” mostra que a pobreza, ao mesmo tempo triste e doce que Jacques vislumbra, conserva uma positividade. Pierre-Louis Rey, em ensaio sobre esse romance, assinala tal aspecto da obra em oposição a outro texto camusiano, L’Envers et l’Endroit: “Enquanto Le premier homme se refere às mesmas realidades pessoais e sociais que L’Envers et l’endroit, nele não se revela nenhum traço de amargura ou de pessimismo”.27 A ausência de pessimismo se dá à medida que a narrativa retira do anonimato a tribo de Cormery, incluindo informações

25

“A pobreza tal como eu a vivi não me ensinou o ressentimento, mas uma certa fidelidade, ao contrário, e a tenacidade muda” (AUDI, 2013, p. 32)

26

“E ele [Cormery] que quisera escapar do país sem nome, da multidão e da família sem nome, mas em quem algo nunca havia deixado de reivindicar obstinadamente a obscuridade e o anonimato, ele também fazia parte da tribo, caminhando cegamente na noite (...) revendo também com uma doçura e um pesar que lhe partiam o coração o rosto agonizante de sua mãe no dia da explosão, caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem”. (CAMUS, 1994).

27

Referências

Documentos relacionados

Cabrujas é tão diretor que, sem perceber, trai a verossimilhança de sua própria obra de teatro realista quando, como fica plasmado no fragmento anterior, em lugar de

Este é o liame que utilizaremos para perpassar o trabalho, que tem fontes literárias muito maiores, compulsamos praticamente toda a poesia de Pablo Neruda e de Federico García

E segundo fui informado, o eram pela força e de pouco tempo para cá, e como por mim tiveram notícia de vossa alteza e de seu real grande poder, disseram que queriam ser vassalos

A presente dissertação tem como objetivo realizar um estudo sobre as expectativas e motivações dos estudantes do curso de graduação em Letras Português/Italiano (LPI)

Além das inúmeras considerações sobre a mulher, as quais possuíam uns caracteres peculiares por proceder de uma pessoa de seu mesmo sexo (PALACIO FERNÁNDEZ, 2002), a autora, em seus

Foi iniciada a preparação de um texto que servirá de base à apresentação do colóquio, sobre a parceria firmada entre o pintor-viajante francês François Biard, autor do

De um lado, a Teoria da Tradução, que, por meio de procedimentos técnicos de tradução e modalidades tradutórias, pretende, de certa forma, reconduzir o leitor

Trata-se, sobretudo, de uma “Veneza interior” (expressão de Proust retomada por Bizub em sua tese sobre a tradução proustiana), e que não deixa de ser uma expressão