• Nenhum resultado encontrado

2.4 A PRAGMÁTICA DA METÁFORA

2.4.3 A metáfora definida pela Relevância

Desenvolvida por Sperber & Wilson (1995), a Teoria da Relevância propõe um modelo de processamento de informações, de base cognitiva, que privilegia o caráter inferencial não-demonstrativo da compreensão.

Trata-se de um processo inferencial espontaneamente realizado pelos seres humanos, que difere das inferências demonstrativas, as quais sofrem restrições lógico- formais, e são julgadas como válidas ou inválidas no tratamento dos fenômenos da linguagem natural. Aqui, a base lógica está a serviço da cognição, visto que a parte

formal é utilizada apenas como instrumento para descrever os processos inferenciais e para modelar o raciocínio (SILVEIRA & FELTES, 1999).

Portanto, podemos considerar esse modelo teórico como uma interface entre modelos pragmáticos e cognitivos. A Teoria da Relevância busca, antes de tudo, ampliar o modelo inferencial de Grice (1982), ao destacar uma característica inerente à cognição humana: os indivíduos, na comunicação, são sensíveis (prestam atenção) apenas a fenômenos que lhes parecem relevantes. Por conta disso, fala-se em relevância como um conceito centrado na relação de equilíbrio entre efeitos cognitivos e o esforço de processamento, para explicar como os indivíduos interpretam informações nos contextos comunicativos. Sendo assim, quanto mais efeitos contextuais, menos esforço cognitivo e maior relevância; quanto menos efeitos contextuais, maior esforço de processamento, menor relevância (SPERBER & WILSON, 1995).

A relevância permite, segundo Sperber & Wilson (1995), que a comunicação não seja simplesmente uma descodificação da sentença; há também um elemento inferencial que possibilita a ampliação do sentido literal codificado. Por meio de dois processos inferenciais, o estreitamento e o alargamento, é possível alcançar o sentido efetivamente comunicado pela sentença. Vejamos os exemplos apresentados pelos autores para os dois processos:

a) No Natal, a ave estava deliciosa.

b) As aves circulavam por cima das ondas, à procura de peixes. c) Uma ave, no alto do céu, invisível, cantava a sua doce canção.

Em relação à noção de estreitamento, a palavra ave nos três enunciados parece transmitir algo mais específico do que o sentido codificado. Isso ocorre porque o ouvinte, motivado pela procura da relevância do enunciado, estreita o sentido até o ponto de ver satisfeitas as suas expectativas de interpretação, ou de relevância. Conforme os autores, o significado linguístico é enriquecido pelo contexto, e o significado pretendido à palavra é atingindo mediante uma ordem de acessibilidade entre os significados potenciais. No primeiro exemplo, ocorre um estreitamento referente às aves que são comidas no Natal, como o peru; no segundo, às gaivotas ou pelicanos; no terceiro, a alguma ave como a cotovia, por exemplo.

A noção de alargamento, ao contrário, amplia o sentido codificado na sentença quando este não satisfaz às suas expectativas de relevância. Vejamos os exemplos:

a) a minha tábua de passar é chata. b) o meu jardim é chato.

c) o meu bairro é chato. d) o meu país é chato.

Na opinião de Sperber & Wilson, chato significa, literalmente, uma superfície perfeitamente plana, portanto, não deveria aplicar-se, estritamente falando, a uma tábua de passar, a um jardim, a um bairro e nem a um país. Porém, o ouvinte, para atingir a máxima relevância do enunciado, ajusta o sentido da sentença. Por isso, nos exemplos, vemos o alargamento gradual do sentido do termo chato pelas sentenças a-d, visto que o grau de alargamento aumenta na medida em que passa a ser aplicado à tábua de passar até chegar ao sentido aplicado a país.

Inspirados por esse raciocínio, os autores defendem que as metáforas não fogem a normas e nem violam regras ou máximas de conversação, conforme supunha Grice (1982). Seriam simplesmente explorações criativas e evocativas, características da comunicação verbal, determinadas pelas condições de relevância. Portanto, diante de um enunciado metafórico, o ouvinte ou leitor computa, em ordem de acessibilidade, aquelas implicações contextuais – as suposições resultantes da combinação de informações velhas com informações novas – mais relevantes para ele, pois se espera que perceba justamente os aspectos mais salientes do que foi comunicado.

Uma vez que, segundo os autores, os interlocutores buscam a relevância ótima e não a verdade literal, em uma metáfora como João é um santo, a interpretação não passa pela declaração de que João é, de fato, um santo, mas sim de que João possui um número suficiente de propriedades de um santo capazes de tornar esta sentença otimamente relevante.

Sperber & Wilson (1995) destacam que a relevância, na metáfora, é atingida por meio de um amplo conjunto de implicaturas contextuais fortes ou fracas. Por esse

motivo, quanto maior for o conjunto de implicaturas potenciais, mais rica e criativa será a metáfora.

Asurpresa ou a beleza de uma metáfora criativa bem sucedida encontra-se nessa condensação, no facto de uma única expressão, ela própria utilizada descuidadamente, determinar um leque muito grande de implicaturas fracas aceitáveis (SPERBER & WILSON, 1995, p. 348).

Dessa forma, fala literal e metafórica não diferem, segundo os autores, quanto ao tipo, mas quanto ao grau de relevância, sendo entendidas essencialmente da mesma forma. Uma análise mais atenta sobre a Teoria da Relevância permite-nos, entretanto, uma constatação um pouco ousada: parece haver certa semelhança entre as noções de estreitamento e alargamento, formuladas por Sperber & Wilson; a noção de redução de desvio, de Cohen; e a focalização na palavra metafórica, presente na teoria de Black. Nos três casos, vemos um mesmo mecanismo subjacente. Ou seja, a interpretação de uma metáfora ocorre, inicialmente, pela identificação de uma quebra de expectativa, de coerência do enunciado, um estranhamento percebido em um item lexical, e, em seguida, a formulação de uma nova interpretação.

Isso incide nos três casos. Por exemplo, em uma sentença como essa criança é um peixinho, Cohen defenderia que o item lexical peixinho seria a impertinência semântica ou a redução do desvio, responsável pela interpretação figurada. Black, por outro lado, afirmaria, apoiando-se em seus últimos estudos, que peixinho seria o foco, que, ao interagir com a predicação (quadro), projetaria um sistema de associações semânticas ou lugares comuns, responsável pela perspectivação do “ver como” (ver criança como peixe). Finalmente, na Teoria da Relevância, o ouvinte/ leitor alargaria as condições de relevância da sentença, ou seja, de interpretações do contexto inferido a partir do uso de peixe, a fim de precisar qual delas satisfaz a máxima relevância. O mecanismo de estreitamento funcionaria, ao contrário, em uma sentença imperativa como todos os peixes para fora da água!, na qual o item lexical peixinho estreita as possibilidades de interpretação do contexto inferido (peixes não obedecem a ordens para sair da água), com o intuito de manter a máxima relevância e o sentido metafórico da sentença.

Com efeito, é preciso que haja esse momento inicial de identificação de um estranhamento para que se possa interpretar qualquer metáfora. Todavia, ao contrário das noções apresentadas pelos autores citados acima, na metaforização textual esse estranhamento não preexiste à leitura do texto, pois depende de inferências feitas pelo leitor no momento da interpretação. Ou seja, a focalização inicial sobre uma palavra no momento da interpretação textual não significa que o sentido metafórico se resolve sempre nesse ponto da interpretação, podendo haver desdobramentos do esforço inferencial do leitor por todo o tecido textual, o que poderá resultar em novos insights e, consequentemente, novas interpretações metafóricas do texto.

É preciso ficar claro, portanto, que identificar esse estranhamento, no nosso caso, não significa defender uma violação do sentido literal de uma palavra ou sentença, uma vez que o que é focalizado pelo leitor não é um segmento linguístico dado a priori.

Chegamos, enfim, ao ponto da nossa tese no qual se justifica a necessidade de conjugar a metáfora na palavra à metáfora na sentença, e, posteriormente, à metáfora no texto/discurso. Como vemos, algumas teorias da metáfora na palavra e da metáfora na sentença comungam, parcialmente, do mesmo mecanismo básico para explicar o fenômeno. Interessante perceber a palavra como elemento condutor desse mecanismo, tal qual o modo como o espraiamento do sentido metafórico sobre a sentença não elimina a sua participação. À medida que a metáfora se desloca, em cada nível, vemos a sua ampliação, até atingir seu grau máximo de manifestação no nível textual/discursivo.

2. 5 OS LIMITES DO SENTIDO NA SENTENÇA METAFÓRICA

A discussão apresentada neste capítulo impõe virtudes e fraquezas à teoria da metáfora-sentença. Se, por um lado, ao deslocarmos o sentido para o enunciado metafórico – por meio da tensão e interação, e não da substituição ou comparação de termos –, confirmamos a tese de que, na palavra, a metáfora não atinge plenamente sua potencialidade de criação de significados, por outro, constatamos que não será ainda no limite do enunciado que isso acontecerá.

No caso da teoria da interação, o próprio “ver como”, resultante da interação entre foco, quadro e sistema associado de lugares comuns, preexiste à interpretação. A produção de significação, nesse caso, desconsidera o aspecto dinâmico da interação leitor/configuração textual. Implica dizer que a configuração semântica formadora da metáfora, de algum modo, já está prevista na interação entre os termos do enunciado.

Já na pragmática de Grice ou Searle, o problema reside no fato de que a sentença é o critério principal para distinguir a fronteira entre o que seria sentido literal ou figurado. Embora os autores localizem a metaforicidade na intenção do falante e não na estrutura da sentença, o sentido literal, inscrito na sentença, precisa ser violado na interpretação para que se alcance o sentido figurado. Essa primazia do sentido literal, a nosso ver, não distancia muito essa proposta daquelas que remetem a metáfora à palavra.

Ademais, a interpretação metafórica limita-se aos acarretamentos lógico- semânticos da sentença. Mesmo na Teoria da Relevância, a extensão das implicaturas parte, em última instância, do contexto sentencial. Conforme defenderemos no decorrer do nosso trabalho, não nos podemos ater a um conceito de metáfora baseado apenas em sentenças, quando analisamos textos socialmente compartilhados. Há casos em que a interpretação da metáfora não depende exclusivamente da análise do enunciado, pois esta, ao contrário, pode se revelar somente à medida que a leitura prossegue, em uma determinada passagem de um trecho do texto (após o enunciado ter sido lido), como também não estar aparente na superfície textual.

Em outras palavras, as possibilidades de relações metafóricas não se esgotam na estrutura linguística canônica atributiva A é B (por exemplo, João é uma baleia); basta retomarmos o exemplo 2, já apresentado na exposição da teoria interacional de Black. No texto, o sentido humorístico da piada somente é desencadeado após haver a relação entre o sujeito ser “louco” e querer ser “Deus”. Contudo, não há, no exemplo, como identificar essa relação metafórica a partir de uma estrutura sentencial ou de uma palavra específica, pois que o sentido é alcançado mediante uma metaforização textual. Ou seja, o leitor deve apostar numa relação metafórica entre a pergunta como foi o começo para o senhor?, feita pelo psiquiatra ao paciente a respeito de sua doença, e a expressão Bem, doutor, no começo eu criei o céu...a terra...o mar... , cuja leitura gera uma quebra de expectativa, pelo fato de a expressão ser uma paráfrase da citação bíblica

de Deus, no momento da criação do mundo. Portanto, o sentido, neste caso, só se recupera pela intertextualidade.

É preciso considerar o modo como a tessitura textual manifesta, constrói a metáfora durante a leitura. Na metaforização, tanto os itens lexicais quanto as sentenças podem fornecer as pistas necessárias para que o conhecimento enciclopédico do leitor seja mobilizado na interpretação, todavia, não há metáfora materializada no texto. As relações entre palavras e sentenças dependem, antes de tudo, do uso de inferências complexas por parte do leitor.

São metáforas deste tipo que desafiam as teorias clássicas e nos interessam: construídas a partir da superfície textual, mas que exigem do leitor, na interpretação, o uso de estratégias inferenciais complexas, a consideração pela informação contextual e a mobilização de conhecimentos socioculturalmente partilhados.

Enfim, é preciso lançar a metáfora além do sentido da sentença para vê-la configurar-se como decorrência do mecanismo de interpretação textual, como encarnada no texto/discurso.

CAPÍTULO 3

PRELIMINARES A UMA TEORIA TEXTUAL-DISCURSIVA DA

METÁFORA

[...] palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.

Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.

Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar

No olho de uma garça Os perfumes do sol.

Manoel de Barros

Neste capítulo, se esperaria que constasse a passagem da metáfora do nível da sentença para o nível do texto/discurso. Isto, de fato, será feito no capítulo seguinte, contudo é necessário discutirmos antes três aspectos determinantes para a formulação de uma teoria discursiva da metáfora. São eles: o binômio sentido literal/metafórico, já superficialmente comentado nas teorias da metáfora-sentença; a formulação de um conceito de cognição aplicável à metaforização; e, por fim, as definições de texto e contexto, vinculadas ao sócio-cognitivismo e à semiótica textual.

Nas discussões referentes aos três casos, subjaz a constatação de que a interpretação metafórica deve privilegiar um leitor discursivo, ou, se preferirmos, sócio- cognitivamente situado, e não uma mente individual, livre das sujeições impostas pelo seu universo sociocultural.

Caso essas grandezas não sejam devidamente explicitadas, corremos o risco de vê-las reduzirem a metaforização a um fenômeno cuja descrição estaria sujeita às sanções impostas pela filiação a um determinado modelo de processamento ou de representação mental, que pouco a distanciaria dos modelos clássicos de compreensão metafórica. Ou o que seria pior: um fenômeno gerido por um leitor real, autônomo, livre das sujeições do texto e da cultura.

A discussão sobre o modo como é processado o sentido linguístico, seja literal ou metafórico, bem como sobre um modelo cognitivo capaz de dar conta da realidade psicológica das unidades linguísticas, é recorrente na agenda das abordagens cognitivistas da metáfora. Tais abordagens caracterizam-se por focalizarem sua atenção nas bases ontológicas da metáfora, nas questões relacionadas à sua realidade psicológica e aos modelos de processamento do raciocínio metafórico.

A metáfora conceitual de Lakoff & Johnson (1980; 1999) e a mesclagem conceitual de Fauconnier & Turner (2002) são dois exemplos representativos comentados neste capítulo. A razão pela qual foram inseridas no presente capítulo, e não nos capítulos anteriores, reside no fato de serem, a nosso ver, abordagens essencialmente cognitivistas e, portanto, inapropriadas para explicar o funcionamento da metáfora na qualidade de manifestação textual.

A metaforização, por outro lado, apesar de ser concebida como atividade imanentemente cognitiva, não se esgota nas questões relacionadas às operações efetuadas na mente do leitor no decurso da interpretação. Significa dizer que o nosso trabalho apóia-se na integração leitor, texto e conhecimento culturalmente partilhado, mediada por uma cognição dinâmica e interacionalmente situada. Dessa forma, valoriza-se, além dos aspectos cognitivos, o fenômeno metafórico manifesto no plano linguístico-textual.

Compreendemos, assim, que não há possibilidade de adotarmos um modelo hermético de cognição, nem conceitos estanques do que seria texto ou contexto, pois, na metaforização, há sempre um leitor cognitivamente incorporado, mas, ao mesmo tempo, socialmente situado, capaz de configurar novos contextos para construir o sentido de uma metáfora. Da mesma maneira, não podemos aprisionar o sentido em termos como literal ou metafórico, dado que a sua construção é possível somente na interação sócio- comunicativa. São essas posições que defenderemos a seguir.

3.1 A OPOSIÇÃO SENTIDO LITERAL/METAFÓRICO E OS MODELOS