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4.1 OS DISPOSITIVOS INTERPRETATIVOS DA

4.1.5 A isotopia

4.1.5.3 Isotopia e metaforização

No nível do texto/discurso, a metaforização ocorre por meio da solidariedade entre objetos do discurso, que geram cadeias inferenciais na superfície textual e delineiam uma ou mais isotopias.

Sendo assim, a isotopia e sua manifestação figurativa ou temática aparecem como elementos fundamentais desse processo, uma vez que respondem pela semelhança entre objetos do discurso, ao reiterarem, na superfície textual, propriedades conceituais instáveis, discursivas, sobrevindas da constituição de um espaço figural instaurado pelas estratégias de cooperação e abdução.

De fato, na metaforização, a identificação de uma isotopia figurativa exige do leitor o estabelecimento da isotopia temática que a fundamenta, pois, esta, na maioria das vezes, não se encontra textualizada. Por isso, a escolha de determinados temas e figuras, durante a ação interpretativa, tanto expõe os valores socioculturais implícitos no texto para persuadir aquele que o interpreta quanto indica a estratégia adotada pelo leitor para multiplicar ou reduzir os sentidos metafóricos potencialmente contidos no texto. É o que observamos no exemplo abaixo:

Exemplo 16: Chita

Atuante e empreendedora em Trancoso, paraíso de milionários no sul da Bahia, além de politicamente mais que correta, Elba Ramalho caiu nas graças do novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal. Ela foi convidada por ele e vai comandar a organização de todos os festejos de São João no eixo Trancoso-Arraial d'Ajuda-Porto Seguro (ÉPOCA, 31/01/2005).

O exemplo 16 pode ser interpretado sob a isotopia de festas juninas. A presença da expressão festejos de São João assegura a coerência semântica do texto e a referência ao termo Chita como sendo o tecido de algodão de pouco valor, estampado em cores, típico dos festejos juninos. Nesse caso, há uma espécie de relação metonímica entre as duas expressões linguísticas, já que Chita inclui-se no mesmo conjunto de propriedades a que pertence festejos de São João.

Essa relação conduz de imediato à iconização textual, já mencionada anteriormente. Trata-se de um cenário figurativo virtual de festejos juninos, com tempo, espaço, atores, objetos e valores, no qual o termo Chita é um desses elementos constituintes, juntamente com outros como, por exemplo, o matuto nordestino, os vestidos de chita, as bandeirinhas, os fogos de artifício, as comidas típicas e a quadrilha.

Concomitante à emergência desse cenário conceitual, ocorre a tematização, em que o campo figural comum à Chita e festejos de São João projeta suas propriedades sobre outras expressões figurativas do texto, tais como Trancoso, Elba Ramalho e Jânio Natal. Ocorre, então, a reiteração de traços semânticos, que finda por enriquecer o sentido dessas expressões, imputando-lhes a referência ao contexto de festejos juninos. No entanto, essa tematização direciona a interpretação somente para a isotopia festas juninas e negligencia outras possíveis relações de sentido entre os elementos textuais.

Defendemos, entretanto, a possibilidade de outras interpretações, em que se considera a dimensão discursiva, pluri-isotópica do texto. Assim, o leitor pode realizar uma abdução mais ousada, na qual a leitura do título pode recuperar mnemonicamente da enciclopédia o campo figural de Chita, o chimpanzé, companheira de Tarzan, o rei das selvas, do cinema e das histórias em quadrinhos, dando início à metaforização.

Caso seja respaldada pela estratégia de cooperação textual, essa abdução confirmará a configuração de outra isotopia, cuja natureza é, desta feita, metafórica, relacionada ao universo das histórias de Tarzan.

Tendo em vista que há, pelo menos, duas isotopias presentes no texto, e que uma delas, de natureza metonímica, exclui a interpretação metafórica, a passagem de um universo de significação (festas juninas) para outro (história de Tarzan) deve ser realizada por um conector de isotopia, no caso, a expressão Chita. Este termo cumpre o papel de estabelecer o conflito de sentido entre os elementos textuais capaz de permitir as relações metafóricas nessa nova configuração de sentido.

A presença do conector (Chita) na superfície do texto pode desencadear uma tensão entre expressões aparentemente dessemelhantes, no caso, entre o próprio termo Chita, Elba Ramalho e novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal. Destacamos o fato de que não há garantia da formação dessa tríade tensiva. Caberá ao trabalho inferencial abdutivo do leitor, juntamente com a estratégia de cooperação textual, a tarefa de identificar qual expressão linguística funciona como conector de isotopia de natureza metafórica nesse processo, bem como com quais ela estabelece a incongruência de sentido.

É interessante notar que o conflito entre as três expressões linguísticas difere daquele observado entre tópico e veículo, necessário para criar a metáfora no nível da palavra ou sentença. No exemplo em tela, a constituição do sentido metafórico requer a participação de mais de dois objetos do plano textual, de modo que se esvaem as definições diádicas clássicas de tópico e veículo, próprias das teorias da metáfora- palavra e metáfora-sentença.

Uma vez percebida, a tensão interpretativa entre os três elementos motiva o leitor a ir além dessa aparente incompatibilidade de sentido. Significa dizer que o plano figurativo passa a recobrir, agora, um novo tema, relacionado à história de Tarzan. Essa nova cobertura temática ocorre devido ao fato de que, simultânea às abduções, estabelece-se, a estratégia de cooperação, que provoca o efeito da crença compartilhada na superfície textual: a ilusão referencial cuja aceitação por parte do leitor/enunciatário implica encontrar, nas figuras do texto, as marcas de persuasão do autor/enunciador para confrontá-las com suas crenças e convicções.

Diante desse fato, o leitor assume uma posição cognitiva socialmente situada em relação ao texto: passa a ser um elemento gerador de significação e não somente um decodificador das informações textuais. Desse modo, a leitura do texto suscita outros feixes de significação, que incluem a visão de mundo do leitor, estereótipos socioculturais, bem como a possibilidade do efeito de absurdidade ou irrealidade.

Este é um dos motivos pelos quais a metaforização atinge vários elementos textuais, sobretudo Elba Ramalho e o novo prefeito Jânio Natal, fazendo com que aquela passe a ser vista como Chita e este como Tarzan. No entanto, a metaforização não se esgota nesse momento. É preciso descobrir em que medida Elba Ramalho assemelha-se a Chita e o prefeito Jânio Natal a Tarzan.

Supomos que o leitor realize uma abdução, na qual atualiza outras expressões linguísticas do plano textual, tais como Trancoso, atuante, empreendedora, politicamente mais que correta e caiu nas graças, novo prefeito, convidada por ele e comandar a organização de todos os festejos, com o propósito de estabelecer um novo sentido para o texto. Ocorre, por conseguinte, a constituição de um campo figural em que as propriedades são selecionadas não somente de Chita, Elba Ramalho ou novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal, mas também das outras expressões mencionadas acima.

Após o estabelecimento desse campo conceitual, dá-se o encadeamento isotópico dos elementos textuais. Frisamos que esse encadeamento acontece, agora, em um nível discursivo, de natureza figurativa ou temática, que ultrapassa a esfera das relações semânticas termo a termo, já codificadas e dicionarizadas.

Assim, o jogo interpretativo magnifica e reitera, na dimensão sintagmática do texto, algumas propriedades desse campo figural discursivo, enquanto mantém outras narcotizadas. Por conta dessa saliência e reiteração de traços de significação, gera-se uma cadeia inferencial solidária entre o conector de isotopia e as pistas textuais focalizadas pela abdução, que enriquece as propriedades conceituais destes, revelando, dessa forma, a semelhança entre os objetos de discurso.

Um detalhe importante, todavia, deve ser lembrado. É a competência enciclopédica do leitor, via abduções, que irá determinar quais objetos do discurso funcionam como pistas textuais para o surgimento da metaforização. Dessa forma, para que haja o encadeamento isotópico, não necessariamente devem participar todos os elementos textuais, porém, aqueles focalizados pela inferência abdutiva. Vejamos como isso acontece no exemplo sob análise.

Suponhamos que o encadeamento inicialmente estabeleça uma relação de semelhança entre os objetos do discurso Chita e Trancoso44, em que este se metaforiza: de Chita, o leitor magnifica propriedades como chimpanzé, vive na selva e mora em cima das árvores, enquanto narcotiza, temporariamente, companheira de Tarzan, esperta, inteligente e engraçada; de Trancoso, o leitor magnifica isolamento, mata atlântica, cipós, animais selvagens e casas de madeira em cima das árvores, enquanto narcotiza outras como cidade litorânea do sul da Bahia, ponto turístico, com praias, hotéis e mansões, irrelevantes em uma isotopia relacionada a Tarzan. Essa metaforização permite que Trancoso passe a ser visto como uma selva, onde vivem chimpanzés como Chita.

Devemos observar que, para selecionar essas propriedades discursivas, o leitor deve mobilizar seu conhecimento enciclopédico de mundo, bem como o conhecimento socialmente partilhado com sua comunidade. Em outras palavras, deve possuir algum conhecimento prévio sobre a cidade de Trancoso, sob pena de achar a metaforização aberrante e quebrar a cooperação textual, ou, simplesmente, não perceber a isotopia.

Todavia, permitindo-se cooperar, o leitor, por meio de abduções, leva as propriedades discursivas de Chita e Trancoso a redundarem nas expressões seguintes, metaforizando-as. Ou seja, os objetos do discurso atuante, empreendedora, politicamente mais que correta, Elba Ramalho, caiu nas graças, novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal, convidada e comandar a organização de todos os festejos, solidarizam-se e passam a estabelecer entre si novas relações de sentido metafórico.

A redundância desses traços de significação faz com que a abdução focalize os objetos do discurso Elba Ramalho e novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal, determinando a semelhança entre ela e Chita, bem como entre ele e Tarzan. Ou seja, para suscitar a primeira relação de semelhança (entre a cantora e Chita), o leitor magnifica as propriedades do conector que estavam narcotizadas, companheira de Tarzan, esperta e inteligente, de modo a assemelhá-lo às expressões atuante, empreendedora, politicamente mais que correta, referentes a Elba Ramalho.

44 Trancoso é um povoado pertencente ao município de Porto Seguro, no sul da Bahia. Conhecido como

litoral verde, por possuir praia e mata atlântica em um mesmo cenário, foi refúgio de artistas alternativos e hippies, na década de 70, quando era somente uma pequena vila. Hoje é um cobiçado pólo turístico com hotéis de luxo, mas que, em sua maioria, preservam em sua decoração as características primitivas da natureza, como, por exemplo, casinhas de madeira em cima das árvores.

Contudo, a metaforização ainda não está completa, já que esse conjunto de propriedades nem traduz por completo a semelhança entre Elba Ramalho e Chita, nem é suficiente para alcançar a segunda relação metafórica (entre o prefeito e Tarzan), pois a redundância isotópica deve atingir também os objetos do discurso caiu nas graças, convidada e comandar a organização de todos os festejos, novo prefeito de Porto Seguro, Jânio Natal.

É a partir daí que surgem outras inferências a fim de respaldar a metaforização. Por exemplo, pode-se inferir que novo prefeito de Porto Seguro relaciona-se a Tarzan, pelo fato de que aquele comanda Trancoso, já metaforizado como um local selvagem, isolado, com vasta natureza, habitado por Chita e de onde Tarzan seria o “rei”. Assim, estabelece-se a relação metafórica de Elba Ramalho como Chita, companheira de Tarzan e de novo prefeito de Porto Seguro como Tarzan, o rei das selvas. Daí a importância das pistas textuais caiu nas graças, foi convidada e vai comandar, já que colocam Elba Ramalho na posição de parceira do objeto Tarzan, além de imporem também um traço de subordinação, pois que Chita, na isotopia construída, pelo conhecimento das histórias de Tarzan, é sua fiel companheira, mas sempre tributária do rei das selvas.

A isotopia coloca, portanto, a metaforização como um procedimento discursivo de constituição do sentido. Nesse caso, a interação entre os dispositivos interpretativos possibilita o encadeamento isotópico dos objetos textuais, e, por conseguinte, a coexistência de, pelo menos, dois planos de significação na superfície textual. Assim, o plano textual funciona como um corredor isotópico que possibilita a criação de sentidos metafóricos originais, refletores das práticas culturais de uma comunidade.

Conforme vimos no decorrer do capítulo, a metáfora inscreve-se em alguns tipos de texto apenas como possibilidade, como processo discursivo, jamais como produto da palavra ou sentença. Do mesmo modo, a identificação das estratégias e dispositivos utilizados na interpretação só se torna possível em simultaneidade. Por isso falarmos em metaforização como condição própria da metáfora, quando esta se submete ao leitor, ao texto e à cultura.

A seguir, analisamos o fenômeno em outros exemplos nos quais podemos observar a atuação simultânea dos dispositivos interpretativos descritos nas seções precedentes.