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Ullmann (1964) é outro autor clássico aliado a uma perspectiva semântico- nominalista, assim como aqueles discutidos anteriormente. Na seção sobre metáfora, de sua obra Semântica, declara que “a estrutura básica da metáfora é muito simples. Há sempre dois termos presentes. A coisa de que falamos e aquilo com que a estamos a comparar” (ULLMAN, 1964, p.442). Influenciado pela terminologia clássica de A. I. Richards (1936)7, o semanticista afirma que a semelhança resultante da comparação entre teor (coisa sobre a qual falamos) e veículo (aquilo com que a estamos comparando) pode ser de duas espécies: objetiva quando se chama, por exemplo, crista ao topo de uma montanha, por se parecer com a crista de um animal ou emotiva quando falamos amargo contratempo, por semelhança ao sabor amargo.

O autor menciona ainda que um fator importante para a eficácia de uma metáfora é a distância semântica entre os termos. Quanto maior for a distância semântica entre teor e veículo, maior será a expressividade da metáfora. Desse modo, ao comparar uma flor a uma mulher, a disparidade semântica aumenta a tensão metafórica, ao passo que a comparação de uma flor com uma rosa resulta em perda de expressividade.

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Outro ponto importante nos trabalhos de Ullmann é a relação entre metáfora e polissemia. Para estabelecer tal relação, o autor parte de uma semântica lexicalista, a qual elege a palavra, dentre as estruturas da língua (fonema, morfema, palavra e frase), como aquela portadora de sentido, a definidora do nível lexical.

Na opinião de Ricoeur (2000), Ullmann defende o ponto de vista de que as palavras possuem significado próprio, um hard core independente do contexto em que se encontram. Ao tomar como base a dicotomia saussuriana significante- significado, o semanticista define o significado de uma palavra como uma relação recíproca e reversível entre o nome e o sentido.

Como a relação nome-sentido não é uma relação termo a termo, tem-se um problema: se considerarmos fenômenos lexicais como a sinonímia, a homonímia e a polissemia, veremos que para um sentido pode haver mais de um nome, ou para um nome pode haver mais de um sentido. Para definir, então, qual tipo de fenômeno semântico se manifesta, Ullmann incorpora a essa relação um campo semântico associativo que faz atuar relações de semelhança e contiguidade entre nomes e sentidos, e, assim, pode definir as mudanças de sentido decorrentes dessas associações.

Ricoeur cita o arremate de Ullmann a favor de um sistema puramente lexical, responsável pela mudança de sentido: “quer se trate de preencher uma lacuna autêntica, de evitar uma palavra-tabu, de dar livre curso às emoções ou a uma necessidade de expressividade, os campos associativos é que forneceram a matéria primeira da inovação” (RICOEUR, 2000, p. 184).

Se observarmos atentamente o posicionamento dos outros autores apresentados anteriormente, veremos que essa idéia não é exclusiva de Ullmann, como afirma Ricoeur. Todos, ao que parece, tentam manter a informação contextual fora de suas análises sobre metáfora, pois, de modo contrário, perderiam o domínio sobre o significado lexical.

Em relação à polissemia, fica fácil defini-la sob esse aspecto, uma vez que uma palavra pode receber diferentes acepções conforme o contexto, sem perder sua identidade (à diferença da homonímia). É o caso do termo cabeça em que, a despeito dos vários contextos de uso, é possível, devido ao campo associativo, reunir traços

semânticos comuns a todas as acepções (como, por exemplo, o traço extremidade) e recuperar o sentido virginal da palavra.

Uma dificuldade surge, todavia, em relação à metáfora. Defini-la como uma mudança de sentido das palavras, legitimada por uma “semântica descritiva” fundada por relações semânticas dentro de um campo associativo, como quer Ullmann, acaba por confiná-la novamente ao espaço da pura denominação.

Da dependência de Ullmann (1964) a um sistema semântico rígido e estruturado em campos de associação de itens lexicais, resultam quatro tipos de metáfora: a) antropomórficas, em que há transferência de partes do corpo humano para nomes inanimados. São exemplos pulmão da cidade e fronte da colina8; b) metáforas animais, nas quais imagens do reino animal aplicam-se a plantas, objetos ou homens, por exemplo, barba-de-cabra (planta), cão (arma de fogo) e porco (homem); c) metáforas que traduzem experiências abstratas em termos concretos9, como, por exemplo, a expressão em inglês to hold the spotlight (estar no foco das atenções, relacionada ao termo “luz”), ou, ainda, o relojoeiro e calvo coveiro relacionadas ao tempo; por fim, d) metáforas sinestésicas, tipo comum de metáforas, muito utilizadas como recurso no estilo literário, baseiam-se na transposição de termos relacionados aos cinco sentidos. Cores berrantes, cheiro doce e dor aguda são alguns exemplos.

Ricoeur destaca que a metáfora, vista sob uma semântica da palavra, nada mais faz do que enumerar suas espécies:

O fio condutor ainda é a associação; os inumeráveis empréstimos que a metáfora põe em jogo deixam-se, com efeito, referir a grandes classes que se regram sobre as associações mais típicas, isto é, as mais usuais, não somente de um sentido a um sentido, mas de um domínio de sentido, por exemplo, o corpo humano, a outro domínio de sentido, por exemplo, as coisas físicas (RICOEUR, 2000, p. 187).

8 Giambattista Vico, filósofo italiano do século XVIII, já identificava o corpo humano como fonte de

metáforas em sua obra Scienza nuova. Vico foi talvez o primeiro filósofo a atribuir um caráter metafórico à linguagem em geral, e inclusive às próprias coisas expressas na linguagem, as quais seriam criadas a partir de relações estabelecidas pelo homem. Na Ciência Nova [1725], ele afirma que o mundo de uma dada nação é instaurado através de uma atividade criativa na qual os homens transferem características suas para as coisas.

9 Aqui, trata-se de uma transferência metafórica restrita aos nomes, à visualização de imagens,

diferentemente da perspectiva experiencialista de Lakoff & Johnson (1980), na qual a metáfora é construída não por nomes, mas por mapeamentos entre domínios conceituais concretos e abstratos.

As asserções de Ullmann a respeito da metáfora resvalam nos limites de uma teoria do signo, nos moldes saussurianos, cujo funcionamento expurga a relação com a realidade extralinguística. Não podemos descartar o mecanismo contextual quando a relação denotativa nome-coisa é posta à prova no discurso.

Uma inovação semântica é uma maneira de responder de modo criativo a uma questão posta pelas coisas; em certa situação do discurso, em dado meio social e em um momento preciso, alguma coisa demanda ser dita que exige um trabalho de fala, um trabalho de fala sobre a língua, que afronta as palavras e as coisas [...] Toda mudança implica o debate inteiro do homem falante e do mundo (RICOEUR, 2000, p. 194-195).

Convém apontarmos outras lacunas na proposta de Ullmann. De início, o tratamento dado ao fenômeno sob o viés de uma semântica lexical, taxionômica, restrita à palavra; em seguida, a afirmação de que a similitude é sempre o resultado da comparação entre dois termos. Como veremos no nosso estudo, nem sempre a relação metafórica se estabelece na presença explícita de dois itens lexicais (teor e veículo metafórico) na superfície do texto e muitas vezes, como é o caso da metaforização textual, um termo pode metaforizar não somente outro termo, mas enunciados, parágrafos ou um texto inteiro. Aliás, a relação metafórica pode, ainda, se configurar na mente do leitor, cognitivamente, sem estar necessariamente explicitada na superfície do texto.

No que diz respeito ao critério da distância entre os termos interferir na força da metáfora (quanto maior a disparidade semântica entre os termos maior a expressividade da metáfora), preferimos eliminar a existência de uma regra estável. Somos da opinião de que a expressividade ou criatividade de uma metáfora vincula-se à sua manifestação em um determinado contexto. Em outras palavras, à medida que um determinado contexto é configurado, faz-se necessário construir uma enciclopédia ad hoc, na qual os termos em jogo são enriquecidos semanticamente durante a interpretação.

Daí Eco defender a assertiva de que “não existe algoritmo para a metáfora [...] o êxito da metáfora é função do formato sociocultural da enciclopédia dos sujeitos interpretantes” (ECO, 1991, p. 191).

É esse rico tecido cultural, já organizado em redes de interpretantes, que decide as semelhanças e dessemelhanças das propriedades fundadoras de uma metáfora, ao mesmo tempo em que aproveita a produção e interpretação metafórica para reestruturar novas redes de semelhanças e dessemelhanças (Eco, 1991, p.108).

Este ponto, aliás, constitui um dos postulados basilares da metaforização textual e radica a nossa tese. Na metaforização, não há como se estabelecer a priori quais traços semânticos definem a relação metafórica, pois a semelhança em jogo é construída pontualmente, na leitura do texto, e institui um ganho semântico sempre novo, resultante uma nova descoberta dentro do universo das representações.

1.7 O LUGAR DA PALAVRA NO PROCESSO METAFÓRICO

No cômputo geral, este capítulo resume-se a duas asserções centrais: a) as teorias mantêm, no tratamento da metáfora, a palavra como unidade de análise, bem como se valem da relação semântico-lexical para limitar seu significado, e, por isso, são essencialmente nominalistas e b) as teorias manifestam um formalismo estrutural, que oprime a consideração pelos aspectos sócio-culturais no tratamento da metáfora. Com isso, ficam amputadas para fornecer uma explicação satisfatória dos mecanismos de interpretação metafórica, uma vez que somente a análise de palavras ou sentenças metafóricas não pode ser aplicada ao texto, onde tem lugar uma pluralidade de sentidos e manifestações discursivas, das quais a metáfora é parte integrante.

Vale salientar o fato de que, com o surgimento de novas teorias da metáfora, principalmente aquelas cognitivistas, muito se tem criticado a visão nominalista tradicional, pelo fato desta circunscrever o jogo metafórico a uma semântica lexical. Nas concepções elencadas neste capítulo, há, de fato, uma demasiada valorização da