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3.2 ULTERIOR AO LITERAL E AO METAFÓRICO: A

3.3.1 Os modelos teóricos de cognição

3.3.1.5 O sócio-cognitivismo

Para os proponentes do sócio-cognitivismo, não há separação entre fenômenos mentais e realidade extramental, pois, à maneira do atuacionismo, “interpretamos e construímos nossos mundos através da interação com o entorno físico, social e cultural” (KOCH, 2003, p. 79). A cognição, nesse caso, não é exclusiva de uma mente individual, ao contrário, é resultado da interação de várias ações praticadas por indivíduos situados cultural e historicamente.

Um exemplo desse tipo de ação conjunta seria, em um restaurante, a preparação de um prato culinário até sua chegada à mesa do cliente; o desempenho e o sucesso para a realização da tarefa (preparação do prato) estão condicionados não somente às habilidades individuais de cada funcionário envolvido na atividade, mas também à forma como atuam em conjunto. Dessa forma, a ação cognitiva passa a ser dinâmica, processual, visto que a realização de determinadas tarefas mobiliza,

simultaneamente, habilidades individuais e o acúmulo de práticas e rotinas que, aos poucos, mudam a forma de realizá-las.

Ou seja, “essas tarefas constituem rotinas desenvolvidas culturalmente e organizam as atividades mentais internas dos indivíduos, que adotam estratégias para dar conta das tarefas de acordo com as demandas socialmente impostas” (KOCH E CUNHA-LIMA, 2004, p.281).

Segundo Blikstein (1985), a cognição emerge de nossas práticas culturais e, sem práxis, não há significação. Ou seja, a realidade não é nada mais do que um produto de nossa percepção cultural; o conhecimento é adquirido e regulado por uma interação contínua e dinâmica entre práxis, percepção e linguagem, na qual uma rede de estereótipos culturais, legitimados e reforçados pela linguagem, condiciona a percepção. Partindo de uma noção marxista de homem cognoscente – aquele que conhece a realidade na medida em que age sobre ela, transformando-a – , o autor tenta explicar como a práxis modela a percepção / cognição para gerar a significação do mundo. Para ele, o individuo, para mover-se no tempo e no espaço de sua comunidade, estabelece e articula traços de identificação e diferenciação, que lhe permitem reconhecer e discriminar, dentre os estímulos do universo amorfo e contínuo do real, cores, formas, funções, espaços e tempos imprescindíveis à sua sobrevivência. Inseridos em um contexto de práticas culturais, tais traços impregnam-se de valores meliorativos ou pejorativos, transformando-se em traços ideológicos. Como exemplo, o autor apresenta os traços vertical e horizontal, que em nossa cultura teriam, em princípio, respectivamente valor meliorativo e pejorativo, pois verticalidade é um índice evidente de superioridade, enquanto horizontalidade indica inferioridade. A partir disso, eclode um processo contínuo de significação (semiose), visto que os traços ideológicos configuram corredores semânticos por onde fluem as redes de significação ou isotopias17 de uma determinada cultura. Outros exemplos desses traços ou corredores isotópicos presentes em nossa cultura são “frontalidade” (melioratividade) / “posterioridade” (pejoratividade) e “branquitude” (melioratividade) e “negritude” (pejoratividade).

17 O autor emprega a palavra isotopia nos termos de Greimas (1966), ou seja, como um traço ou linha

São justamente esses corredores semânticos ou isotópicos, de acordo com Blikstein “que vão balizar a percepção /cognição, criando modelos ou padrões perceptivos”, os quais, em última análise, determinam o modo como vemos a realidade ao funcionarem como “óculos sociais” ou “estereótipos da percepção” (BLIKSTEIN, 1985, p. 61).

Aliado ao mesmo pensamento, Marcuschi explica que o mundo comunicado é resultado de uma ação cognitiva decorrente de nossa atuação linguística “sobre” o mundo e de conhecimentos culturais diversos e não “uma identificação de realidades discretas apreendidas diretamente” (MARCUSCHI, 2003, p.47). A ação de discretização do mundo comunicado, bem como a regulagem de nossos enquadres cognitivos (espaços mentais, esquemas etc.) constituem um trabalho sócio-cognitivo sistemático.

Fica evidente, na proposta sócio-cognitivista, a importância da interação e da negociação pública na atividade linguístico-cognitiva, visto que o processo de significação ocorre em contextos reais de uso. Desse modo, a cognição não pode ser vista apenas como um conjunto de operações que ocorrem ora externamente à mente dos indivíduos, ora internamente. Consoante Koch e Cunha-Lima (2004), não basta determinar onde acontecem as operações cognitivas, mas sim, explicar como interno e externo interagem e quão complexa é essa interação.

Portanto, as capacidades cognitivas humanas somente podem ser entendidas através da interação entre mecanismos neurobiológicos, responsáveis pelas operações mentais, e o contexto sócio-cultural no qual o homem está imerso. Diante disso, Mondada (2003) defende que as categorias conceituais estão submetidas às negociações locais, ao curso das quais suas fronteiras semânticas são mantidas ou transformadas pelos participantes. Por isso, a compreensão não pode ser tratada como um estado ou processo cognitivo puramente intramental, mas como uma realização coletiva, publicamente exibida no emprego da sequencialidade da interação.

É preciso, ainda, de acordo com Koch e Cunha-Lima, entender a cultura como um processo instável que está sempre se constituindo. Por esse motivo, não basta descrevê-la como eventos ou tarefas acabadas; devemos entender a natureza socialmente dinâmica e situada da cognição, que explica como soluções são

coletivamente estabelecidas e modificadas pelos indivíduos na história de suas interações. Somente adotando esse ponto de vista, acrescentam, somos capazes de entender “como indivíduos podem ter desempenhos profundamente desiguais em tarefas que seriam abstratamente descritas do mesmo modo, mas que se realizam em situações sociais diferentes” (KOCH E CUNHA-LIMA, 2004, p.280). As autoras tomam como exemplo o fato de uma criança que trabalha vendendo bombons conseguir realizar, na rua, cálculos matemáticos com velocidade e certa facilidade e na escola ter dificuldades com o raciocínio matemático.

Um ponto importante da proposta sócio-cognitivista é o papel atribuído ao conhecimento partilhado na cognição. Koch e Cunha-Lima (2004) argumentam que esse tipo de conhecimento comum a certa comunidade é fundamental para que os participantes de um ato comunicativo decidam que informações devem explicitar ou omitir, quais fatos são socialmente adequados para serem comunicados naquele momento, quais gêneros devem ser utilizados e quais os posicionamentos ideológicos implicados na comunicação.

Por conta disso, o conhecimento partilhado, em um evento comunicativo, como a interpretação de um texto, está sempre em movimento dinâmico, incluindo cada troca linguística como novo conhecimento. Além disso, funciona qual estratégia cognitiva importante para identificar o outro como membro de uma mesma comunidade, e, assim, atrair sua atenção e permitir o compartilhamento de conhecimentos.

A propósito, esse ato de identificação do outro como ente intencional semelhante a um “eu”, bem como a capacidade de manter a atenção em alguma coisa, de forma conjunta, constitui para Tomasello (1999) a base do aprendizado dos símbolos e de sua utilização na interação, além de ser um tipo de adaptação cognitiva exclusiva da espécie humana.

Esta adaptação, segundo o autor, alterou significativamente o processo de evolução cognitiva, e, por conseguinte, as interações sociais, uma vez que permite aos seres humanos identificarem-se como co-específicos possuidores de intenções e atenção próprias, e, por fim, entenderem-se entre si como agentes mentais com seus próprios desejos e crenças.

Convém citar o fato de que a concepção de cognição de Tomasello não descarta a existência de funções cognitivas básicas, como a categorização perceptual, para as quais os processos sócio-históricos desempenham um papel mínimo. Contudo, em se tratando de símbolos linguísticos, os processos sócio-interativos desempenham importante papel em sua criação e manutenção.

Falar em cognição social, portanto, é falar em ações conjuntas em que “usar a linguagem é sempre se engajar em alguma ação na qual a linguagem é o meio e o lugar onde a ação acontece necessariamente em coordenação com os outros” (KOCH E CUNHA-LIMA, 2004, p.285).

É possível estabelecermos semelhanças entre atuacionismo e sócio- cognitivismo, uma vez que ambos recusam uma mente simbólica, abstrata, que representa um mundo ou uma realidade pré-definida e defendem um conceito de cognição em que mente e mundo constroem-se mutuamente. Entretanto, enquanto as contribuições teóricas de linha sócio-cognitivista até aqui apresentadas valorizam em demasia a dimensão social, ao revelar uma espécie de conformação da mente individual à mente social, os pressupostos atuacionistas são tributários do aparato biofisiológico (a atividade sensório-motora) de um corpo em interação com seu mundo.

De fato, segundo Koch e Cunha-Lima, as abordagens sociais da cognição não se preocupam, especificamente, com aspectos cognitivos, já que a interação, principal elemento gerador da significação, nada mais é do que uma forma de organização social, que acontece publicamente. Aliás, segundo as autoras, os “aspectos mentais não são apenas secundários, mas ativamente evitados” (KOCH E CUNHA- LIMA, 2004, p.290).

A preocupação do sócio-cognitivismo com os aspectos cognitivos da linguagem como, por exemplo, processamento, compreensão, estratégias, organização conceitual, dentre outros, é levada a cabo pela Linguística Textual, mais especificamente pelos estudos sobre Referenciação18.

De acordo com Koch e Cunha-Lima (2004), o interesse pelo processamento textual foi o elemento inicial que possibilitou uma relação estreita entre Linguística Textual e Ciências Cognitivas, uma vez que permitiu o abandono de uma análise

transfrástica do texto – uma espécie de gramática do texto – em favor da investigação da construção dos sentidos no texto.

As autoras afirmam que os estudos desenvolvidos pelas Ciências Cognitivas sobre a estrutura e o funcionamento da memória, bem como sobre a natureza das representações mentais e da organização do nosso sistema conceitual, contribuíram sobremaneira para demonstrar que a produção/compreensão de um texto envolve não somente a informação textual explícita, mas, sobretudo, a mobilização de esquemas cognitivos culturalmente estabilizados, capazes de ativar na mente do leitor uma série de inferências no curso do processamento textual.

Conforme veremos, nos textos em que ocorre a metaforização, podemos ter mais de uma interpretação possível, pois os valores socioculturais estão embutidos nas expressões linguísticas. Tais expressões, ao serem ativadas no decorrer da leitura de um texto, refletem os acordos de uma determinada comunidade em relação às suas crenças, desejos e conhecimento cultural. Assim, a cultura, via expressões linguísticas, impõe ao leitor a legitimação de determinadas interpretações metafóricas em detrimento de outras.

Não obstante os esforços do sócio-cognitivismo para explicar a dimensão cognitiva do texto, ainda há uma relutância dessa proposta em realçar a atividade cognitiva do leitor durante a interpretação. Argumentamos que é preciso inserir o leitor como um participante ativo no processo. Com efeito, somente postular o conhecimento partilhado e os fatores socioculturais como os principais desencadeadores da atividade cognitiva, bem como classificar as informações linguístico-textuais a partir do conceito de “objetos do discurso”, amplia e, ao mesmo tempo, dilui em demasia a presença de um agente cognitivo no objeto ou fenômeno que se estuda. Não podemos prescindir do sujeito cognoscente, apresentando-o somente como participante do fenômeno, sem explicar de que forma atua.

Gibbs (1988) alerta para o fato de que os estudiosos adeptos de uma visão culturalista não podem tratar a significação linguística apenas como um texto sujeito a certas condições de background, sem a interferência dos aspectos cognitivos inerentes ao processo de compreensão entre falante/ouvinte ou leitor/texto.

Somos da opinião de que é possível realçar o papel do intérprete sem ontologizá-lo ou transformá-lo no elemento central do processo e, ao mesmo tempo, sem renunciar aos aspectos socioculturais potencialmente atuantes no ato interpretativo.

Para alcançar tal objetivo, faremos, no próximo capítulo, uma junção teórica de pressupostos sócio-cognitivistas e da semiótica textual de Eco (2000; 2004) e Bertrand (2003), com a finalidade de demonstrar o modo como podemos engendrar a significação metafórica em um texto, sem perder, ao mesmo tempo, a interseção e a unicidade entre indivíduo e cultura.