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2 TEMPOS DE TENRA JUVENTUDE

2.1 A mocidade em Copacabana

Lúcia Maria Murat Vasconcellos ou apenas Lúcia Murat, nome com o qual construiu sua trajetória no cinema, viveu a infância e adolescência em Copacabana, famoso bairro da “zona sul” do Rio de Janeiro, cuja identidade, tanto para aqueles que nele moram, quanto para outros brasileiros, e mesmo para estrangeiros que dele têm notícia, está fortemente ligada ao sentido de interação humana com a natureza, especialmente com a paisagem da praia. Nessa direção, quando remonta a infância ela interliga imediatamente suas emoções ao cenário praiano; à experiência do viver ao horizonte marítimo; mostra cheiro, gosto e sentimento pela princesinha do mar67. A ideia de paisagem é de suma importância para interpretação das coisas, dos objetos e pessoas – afirma o romancista turco Orhan Pamuk: “Quando uma pessoa fictícia vagueia numa grande paisagem, habita-a, interage com ela e se torna parte dela – esses são os atos que a tornam inesquecível”. A título de exemplo, Pamuk cita o romance de Tolstói, Anna Kariênina: [...] “ao lermos o romance, vemos a paisagem pelos olhos da heroína e sabemos que a heroína faz parte da riqueza da paisagem. Mais tarde, ela será transformada num signo inesquecível, num tipo de emblema que nos lembra a paisagem da qual faz parte.”68

Lúcia se define como uma pessoa de sorte, diz que o pai, Miguel Vasconcellos, nunca teve muito dinheiro, mas a profissão de médico por ele exercida trouxe estabilidade financeira para os Vasconcellos, inclusive apresenta o

67 O bairro da infância de Lúcia ficou conhecido como a princesinha do mar após o lançamento da canção “Copacabana”, em 1947, com letra de Alberto Ribeiro e música de João de Barro, imortalizada na voz inconfundível de Dick Farney.

68 PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 56.

Edifício em Copacabana, onde residiu durante a infância e adolescência, localizado na Rua Hilário de Gouvêia, n.º 30, Apt. 202, quase no front do luxuoso Oceano hotel Copacabana e a apenas cem metros da Avenida Atlântica69 e do famoso Posto 03

da orla marítima, como uma expressão dessa condição econômica, por vezes reproduzindo a dicotomia “zona sul” e “zona norte” como espaços que demarcam a praia e o subúrbio; lugares para ricos e pobres, respectivamente. Porém, cabe ressaltar, em outra temporalidade, que a orla marítima nem sempre foi o lugar dos mais abastados. No livro Sobrado e Mocambos, Gilberto Freyre chama a atenção para o fato de que nos primeiros séculos da colonização, a aristocracia branca brasileira se abstinha de ir à praia, os frequentadores por excelência desse espaço eram as pessoas de cor, pois era lá que se depositavam os excrementos juntados nos “barris que ficavam debaixo da escada dos sobrados, acumulando matéria dos urinóis para serem então conduzidos à praia pelos negros”70.

Alain Corbin71 conta que apenas a partir do século XVIII, na Europa, e século XIX, no Brasil, a orla marítima passou a ser um lugar procurado pela aristocracia, e mesmo assim com fins terapêuticos e não de lazeres. A decisão de D. João VI, por exemplo, de tratar a doença de pele que o atingia com banhos de mar, instalando para isso uma construção na Praia do Caju, em 1817, “favoreceu a uma passagem gradativa da praia como depósito de excrementos e locus de trabalho a balneário médico a partir da chegada da família real ao Brasil em 1808”72.

O bairro de Copacabana, assim como toda a cidade do Rio de Janeiro, passou por grandes mudanças na virada do século XIX com a remodelação da malha urbana promovida pelo Prefeito Francisco Franco Pereira Passos na cidade, com o incentivo e patrocínio do então presidente Rodrigues Alves (1902-1906), que o nomeou em 30 de dezembro de 190273. Foi Pereira Passos o responsável pelo

69 No livro A invenção de Copacabana, Júlia O’ Donnel nos trás um retrato urbanístico do bairro de Copacabana: “são cem quarteirões divididos em 78 ruas, cinco avenidas, seis travessas e três ladeiras, numa área de 7,84 quilômetros quadrados. A via de maior extensão é a Avenida Atlântica, com 4.150 metros e uma média de fluxo diário de cerca de 30 mil veículos.” Cf. O’ DONNEL, Júlia. A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro (1889-1940). Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 13.

70 FREYRE, Gilberto. Mocambos e sobrados. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio/MEC, 1977, p. 197. 71 CORBIN, Alain. O território do vazio. A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.

72 FARIAS, Patrícia. “A praia carioca, da colônia aos anos 90: uma(s) história(as)”. In: Revista Contracampo. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000, p. 125-145. Citação, p. 127.

73 Importante destacar que a nomeação do engenheiro Pereira Passos para prefeito da Capital Federal foi possível apenas graças à aprovação da Lei 939, de 29 de dezembro de 1902, que criou a figura do prefeito/interventor federal. Veja-se, sobre as mudanças político-administrativas no Distrito

início das obras da Avenida Atlântica, que margeia a praia copacabanense. Ícone máximo da Copacabana residencial e aristocrática das primeiras décadas do século XX. É nesse momento também que o Hotel Copacabana Palace abre suas portas, em 1923, para abrigar a elite européia visitante.74

Após a Segunda Guerra Mundial, a então capital federal75, ganhará uma nova face, diferente da vertente francesa que presidira a urbanização a La Pereira Passos do início do século XX, os contornos e hábitos parisienses agora são substituídos pelo modelo norte-americano. Novos ideais de modernidade vão se fazer presente e o bairro de Copacabana vai ser o símbolo maior dessa nova ilação: o culto a cor bronzeada, os banhos de mar, os banhos de sol e o acesso a produtos importados vão atrair os segmentos dominantes do Rio que migram para “Copa”. Entre 1920 (com 17 mil habitantes e 1,5% da população total da cidade) e 1970 (com 250 mil habitantes e 6% da população do Rio de Janeiro), o crescimento demográfico do bairro foi de espantosos 1.500%, enquanto a cidade, no mesmo período, crescia 240%, como avalia Júlia O’ Donnel.76

Em 29 de outubro de 1948, três anos depois do fim da Guerra, nasce a pequena Lúcia, no Rio de Janeiro, passando então a conviver e, mais do que isso, a desfrutar uma experiência direta e prática com os hábitos da sociedade e cultura copacabanense. Ao lado dos dois irmãos mais jovens, Miguel e Heitor, recebe uma educação, segundo ela, primorosa e deleita dos prazeres que o bairro lhe oferece. Como ela mesma observa, sentindo-se uma pessoa privilegiada: “Minha formação de vida é, de certa maneira, diferenciada. Criei-me em Copacabana, nos anos 50, vivendo o Rio de Janeiro nos seus melhores dias de glamour e expressão cultural.”77

A memória da infância e adolescência, nos anos 1950, não se limita apenas a uma referência histórica acerca da política de desenvolvimento econômico instituída pelo então presidente Juscelino Kubitscheck; a expressão aparece cristalizada pela

Federal promovidas por essa nova legislação, FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2000, p. 26-28.

74 Ver, a respeito, FARIAS, A praia carioca, op. cit., p. 130.

75 O Rio de Janeiro foi, sucessivamente, capital da colônia portuguesa, desde 1763 até 1815, depois do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822), do Império do Brasil (1822-1889) e da República dos Estados Unidos do Brasil (1889-1968) até 1960, quando a sede do governo foi transferida para a recém construída Brasília. Ver FERREIRA, Rio de Janeiro: uma cidade na história, op. cit., p. 28.

76 O’ DONNEL, A invenção de Copacabana, op. cit., p. 13.

77 Ver entrevista de Lúcia Murat in NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002, cap. 56, p. 323.

historiografia quando se refere ao período como “os anos dourados”78. Muito além

disso, as linhas das lembranças tangenciam-se com o círculo mnemônico no momento em que faz alusão a vivência cultural no Rio, por exemplo, a cultura engendrada pela indústria cinematográfica no período, recordando aquela época como os “anos da brilhantina”, termo utilizado para fazer alusão aos penteados dos galãs e almofadinhas do cinema americano que sempre apareciam nos filmes com os cabelos molhados e moldados pelo cosmético capilar.

Lúcia teve contato com o cinema ainda muito criança, era levada por uma pessoa muito especial, sua babá, de quem se lembra apenas do primeiro nome: “chamava-se Maria”. A ama-seca leva-lhe para assistir os filmes em cartaz no Cine- Passatempo “Royal”, que ficava na Avenida Atlântica, 3806, subsolo da Galeria Alaska, com sessões diárias das 10hs às 24hs. Nos anos sessenta, costumava frequentar as Sessões do Cine-Hora Copacabana, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 680, loja H. Nesses lugares cercados de sonhos, a menina de olhos serenos e cerúleos se encantava com as fachadas e letreiros em Art-déco, estilo arquitetônico dominante nos prédios que abrigavam as salas de exibição do Rio de Janeiro nos anos 30, 40 e 50, época em que as grandes produções hollywoodianas fascinavam o público que lotava as sessões para ver seus astros e estrelas preferidos. Entretanto, na contramão da multidão que se aglomerava para ver de perto os astros de Hollywood, Lúcia gostava mesmo era do cinema popular, da chanchada: “apesar de eu pertencer a uma família de classe média mais ou menos intelectualizada, que achava de mau gosto assistir à chanchada. Adorava Grande Otelo e Oscarito, era uma relação lúdica com o cinema nacional.”79

A ênfase de Lúcia no olhar jocoso da classe média alta para com o cinema popular nacional dos anos 1950, emite signos de um estilo de vida que se afirma naquele período e que o cinema de Hollywood ajudou a consolidar. O crítico de cinema Salvyano Cavalcanti Paiva, argumenta que esse papel do cinema internacional começa a partir dos anos 1930, quando os filmes produzidos no exterior passam a entrar no Brasil sem pagar impostos.

78 Veja-se, entre outros, BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O governo Kubitscheck: desenvolvimento econômico e estabilidade política. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; GOMES, Angela de Castro. O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1991; BOJUNGA, Cláudio. JK, o artista do impossível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Em 1942, dos 409 exibidos no país, apenas um era brasileiro. Apesar do esforço dos diretores da Cinédia, Brasil Vita Filmes e Vera Cruz, com as chanchadas, musicais românticos e dramas, as imagens que alimentavam o imaginário do tecido social brasileiro eram estrangeiras, inclusive as imagens eróticas tanto do homem quanto da mulher.80

Exceção à regra eram as passistas que desfilavam nos carnavais do Rio com fantasias mínimas e transparentes, ou biquínis improvisados com lenços.81 Na

década de 1950, as passistas eram a atração maior do carnaval carioca. Não há como esquecer a dançarina e naturalista Luz del Fuego, pseudônimo de Dora Vivacqua, que escandalizou a sociedade ao aparecer desnuda, na praia de Copacabana, desfilando em cima de um carro de sorvetes.82 Não por acaso –

lembra Mônica Bastos83 –, são essas imagens que estão presentes nos filmes da terceira fase das chanchadas Os carnavalescos da Atlântida, foi também nesse momento que a dupla Oscarito e Grande Otelo tomou conta dos cinemas na época. Com uma química ímpar, a dupla arrastou multidões ao cinema, até 1954, quando filmou seu último trabalho. Nos anos 1940, os dois filmaram a maioria dos carnavalescos da Atlântida, Oscarito no primeiro papel, e o grande Grande Otelo como faxineiro, secretário, uma escada para o sucesso do amigo. Segundo Rosângela Dias84 e Domingos Demasi85, o filme mais completo dessa fase foi Este mundo é um Pandeiro (1947), dirigido por Watson Macedo.

Ainda na infância, Lúcia teve contato com outro universo cultural muito presente no seio da família materna: a literatura. O seu tio-avô era poeta, abolicionista, cadeira número 01 da Academia Brasileira de Letras. Vários poemas de Luís Morton Barreto Murat86 e livros dos seus amigos poetas contemporâneos –

80 PAIVA, Salvyano Cavalcanti. História ilustrada dos filmes brasileiros 1929-1988. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p. 93.

81 Ver, a respeito, PAIVA, Salvyano Cavalcanti. Viva o rebolado: vida e morte do teatro de revista brasileiro. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1991.

82 Sobre a dançarina capixaba Luz del Fuego, ver AGOSTINHO, Cristina; BRANCA, Paula de; BRANDÃO, Maria do Carmo. Luz del Fuego, a bailarina do povo. Ed. Best Seller, 1994.

83 BASTOS, Mônica Rugai. Tristezas não pagam dívidas – Cinema e política nos anos da Atlântida. São Paulo: Olho d'Água, 2001.

84 DIAS, Rosângela de Oliveira. Chanchada - Cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.

85 DEMASI, Domingos. Chanchadas e dramalhões. Rio de Janeiro, Funarte, 2001.

86 Luís Murat nasceu em Itaguaí (RJ), em 4 de maio de 1861, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 3 de julho de 1929. Autor de poesia romântica, liga-se acidentalmente à geração parnasiana. Sofreu influências dos românticos franceses Victor Hugo e Théophile Gautier, que se evidenciam na tendência para as imagens fulgurantes e para a exaltação verbal, e dos poetas nórdicos, ao expressar certas notas profundas, obscuridades e uma atmosfera de espiritualismo. Era um poeta culto e investigador, e fez a poesia sem parecer preocupado em filiar-se a uma escola. Para saber

Machado de Assis, Olavo Bilac (o poeta das estrelas), Vicente de Carvalho (o poeta do mar) – se encontravam na biblioteca da casa dos avós maternos, seu tio Carlos Frederico Murat era extremamente culto, cuidava com muito zelo daquela preciosidade que para sobrinha era uma grande fantasia. Lúcia descreve Luís como sendo um grande mito na família, lembra com orgulho do seu artigo Um louco no cemitério, atacando frontalmente seu antigo amigo Raul Pompeia, por seu discurso no enterro de Floriano Peixoto, texto que teria sido a causa imediata do suicídio do autor de O Ateneu, no dia de Natal de 1895.

Além da experiência literária e cinematográfica, Lúcia viveu intensamente a Bossa Nova, um tipo de música que mesclava o jazz americano com o samba de roda carioca; estilo musical cuja grande figura de referência para ela é o cantor e compositor Carlos Alberto Ferreira Braga, chamado pelos amigos de “Braguinha”, nome pelo qual tornou-se conhecido também no meio musical, embora tenha adotado o pseudônimo de João de Barro para evitar constrangimentos familiares. Compositor de carreira mais longa no Brasil é dele a letra de “Carinhoso”, em parceria com Pixinguinha. A parceria com Antônio Ribeiro no samba “Copacabana” imortalizou a praia carioca na memória coletiva, suas marchinhas de carnaval ainda hoje fazem sucesso.87

Já na adolescência, no início dos anos 1960, Lúcia lembra com alegria dos encontros com os amigos da “zona sul” no “Beco das garrafas”, uma viela entre os números 21 e 37, da Rua Duvivier em Copacabana, há apenas 750 metros do edifício onde ela morava. No local se concentravam algumas pequenas boates e night-clubs. Em livro, Marcelo Cerqueira88 esclarece que no final dos anos 1950 e

até meados dos anos 1960 o beco fervilhava durante as noites pioneiras da Bossa Nova. No local existiam três boates, Little Club, Bacará e Bottle´s, chamados popularmente de “fumaceiros” por serem locais pequenos e fechados, onde a fumaça dos cigarros se propagavam por todo o ambiente. No beco se reuniam músicos que tinham fama de boêmios e exímios peritos em esvaziar garrafas de

mais sobre o poeta Luís Murat, indico AMPARO, Flávia. Luís Murat. Coleção Série Essencial nº 58. Associação Brasileira de Letras: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.

87 Ver Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível online em: http://dicionariompb.com.br [Acesso em 17 fev. 2018].

88 Jovem chegado à boemia, e arriscando vez por outra um violão, Marcelo Cerqueira fazia parte da caravana onde despontavam para fama Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Nara Leão e Dolores Duran. No livro O Beco das garrafas, ele conta suas aventuras pela ruela, regadas de muito whisky e namoricos. Veja-se CERQUEIRA, Marcelo. O Beco das garrafas: uma lembrança. Editora Revan, 1994.

whisky, cerveja e copos de chopp. Mas o apelido de “beco das garrafas” vem do fato dos moradores de alguns prédios locais, na ânsia de dormir e ter um sono tranquilo, não se conformarem com o barulho das madrugadas, atiravam garrafas do alto de seus apartamentos como uma forma de sinalizarem o descontentamento. O fato ganhou os jornais da época, e as ameaçadoras garrafas viraram notícia, e por bem ou por mal também ficaram conhecidas. O rótulo ou apelido de “beco das garrafas” veio do jornalista e cronista Sérgio Porto por ter se referido ao beco como “beco das garrafadas”.89

Além da Bossa Nova, consonante a tendência juvenil da época, Lúcia experimentou a forte inserção do rock no Rio, um novo ritmo musical muito presente nos bares e casas de show de Copacabana, passando a ouvir famosos artistas estrangeiros. Vivenciou plenamente o desabrochar desse novo ritmo: quente, intenso e envolvente, que extasiou a juventude e induziu-lhe a experimentar toda a liberdade característica do rock in roll. Gostava de Elvis Presley e era apaixonada pelos Beatles, mas a canção que mais lhe marcou foi Summertime, na voz rasgada da cantora americana Janis Joplin.

O rock brasileiro também se fazia presente em sua vida, não só através dos botecos, mas também com as músicas escutadas nas rádios. Aos dez anos de idade presencia o estouro da Jovem Guarda, um movimento musical comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, que durou de 1958 a 1968 – aponta Ricardo Pugiali90. O grupo começou como uma versão brasileira do rock in roll de Billy Haley e seus Cometas, Elvis Presley, entre outros, e logo depois sofreu influências dos Beatles e de outros astros britânicos, das canções românticas da Itália e França, formando uma linguagem própria, brasileira, apelidada de Iê iê iê por causa do título do primeiro filme dos Beatles, A hard day’s night – Os reis do yeah, yeah, yeah, do diretor Richard Lester, lançado em 1964.91 Vivendo a juventude em

meio a uma grande curtição, Lúcia vivia em ritmo de aventura, pegava carona nas lambretas e calhambeques dos brotinhos legais da zona sul. Lembra com saudosismo do som contagiante das guitarras, das jukeboxes e dos discos de vinil

89 CERQUEIRA, O Beco das garrafas, op. cit., p. 36-37.

90 PUGIALI, Ricardo. Almanaque da Jovem Guarda. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A., 2006, p. 21.

91 Sobre as muitas histórias da Jovem Guarda, ver AGUILLAR, Antônio; AGUILLAR, Débora; RIBEIRO, Paulo Cesar. Histórias da Jovem Guarda. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2005.

que rodavam nas vitrolas e embalavam as festas de arromba com os amigos e amigas camaradas.

Do gosto pelas chanchadas ao rock in roll, Lúcia transgride aos padrões socialmente estabelecidos, suas memórias nos revelam como as contraculturas, ou melhor, como as contracondutas são constantes na sua história desde a infância. Como lembra Michel Foucault, as contracondutas são revoltas de condutas, resistência ao poder ou o governo do outro:

São movimentos que têm como objetivos outras condutas, isto é, querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores e por outros pastores, para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos.92 Em movimentos que procuram escapar da conduta dos outros, Lúcia procurou desde a infância definir sua maneira de si governar, o que muitas vezes lhe colocou em oposição ou desobediência as condutas dos pais. Embora as imagens difusas da mocidade, trazidas pela memória, evocam recordações muito afetivas, sobrecarregadas de momentos de carinho, amor e solidariedade nas relações parentais.