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2 TEMPOS DE TENRA JUVENTUDE

2.2 Primeiras rachaduras

[...] Eu ia muito ao Sul quando criança, eu brinco um pouco com essa coisa de fazenda, essa relação que no fundo eu sempre admirei até porque não fazia parte de mim, essa relação com a terra, com a coisa da sobrevivência. E ao mesmo tempo, a família da mamãe era não sei quantos suicídios, sentiam muito orgulho [...]. Fomos educados assim, a minha avó [materna] falava francês. Eram os dois lados muito nítidos, duas famílias bem distintas mesmo.93

[...] Da parte da mãe tínhamos poetas, intelectuais, uma certa preguiça que justificava o não trabalho – era meio feio trabalhar para ganhar dinheiro – a licença de enlouquecer, o medo de enlouquecer. Da parte do pai, o sul, as fazendas, imigração, o trabalho.94

92 FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977- 1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 253.

93 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 353. 94 Lúcia Murat, em voz off, in Uma longa viagem, 2011.

As famílias são exemplos dos dois segmentos sociais mais representativos da infância de Lúcia Murat. Coerente com sua concepção, os parentes da mãe reproduzem um discurso histórico e filosófico que persistiu durante muito tempo no Brasil, cuja referência está na concepção coletiva presente nas sociedades aristocráticas da modernidade, em que o ócio ou “o não trabalhar” aparece como emblema de status social. A vida dedicada ao ócio é, sinônimo e condição necessária à erudição, à vida política e às ocupações nobres. O trabalho é visto como desonra e degradação, e, é relegado principalmente aos servos e escravos.

Em oposição ela apresenta a família do pai: “O meu avô, era migrante cearense, a minha avó era imigrante portuguesa e se encontraram no sul do Paraná. E a partir daí eu sempre fantasiei que eles eram mais pobres do que efetivamente eu acho que eram.”95 O Dr. Miguel Vasconcellos, pai da cineasta, é apresentado por ela como único filho do casal que estudou e se formou, provavelmente, por isso, era motivo de grande orgulho entre seus familiares.

Miguel se mudou de Palmas, no Paraná, para a cidade do Rio de Janeiro em 1930, ano em que se realiza a importante Revolução contra as oligarquias cafeeiras que dominavam a cena política brasileira desde final do Século XIX. “Papai veio junto com o Getúlio, naquela turma de libertários, tenentistas e estudantes que o acompanhou no trem que o trouxe do Sul para o Rio... era estudante de medicina e veio amarrar o cavalo no obelisco.” No Rio, em 1932, Miguel se formou médico e conheceu aquela que viria a ser sua esposa e mãe dos seus filhos, a senhorita Antonina Murat, de família intelectual e educada nos mais rígidos padrões da alta sociedade católica carioca do início do século XX, estilo de vida que ela entendia como educação possível para seus descendentes. Casaram-se em 1937, ano paradoxal para Miguel, pois aquele ano do matrimônio foi também o de implementação da ditadura varguista. Sobre a relação conjugal dos pais, Lúcia relata:

Minha mãe [...] casou-se com ele [Miguel Vasconcellos] por amor, tinha sempre esse lado, uma mulher muito bonita. [...] o meu pai era um homem que tinha várias mulheres. Então, era um típico casamento daquela época... quando eu cresci já estava assim estabelecido: ela tendo crises e ele o homem que tinha várias namoradas ou que tinha uma... o assunto era sempre brincadeira entre os filhos. E ela foi sempre o exemplo da mulher que eu não

queria ser... da mulher desperdiçada, digamos assim... como ela era uma pessoa muito dura, não muito dura, muito rebelde, ela não admitia a situação da mulher naquele momento que era a de aceitar essa condição. Ela aprontou horrores a vida inteira com ele e com todo mundo. Tentou suicídio, gritava, fazia várias confusões por causa das outras e era uma situação bem comum naqueles anos 1950, as mulheres tomavam pílulas para dormir, os homens tinham outras mulheres e as mulheres não conseguiam sair para viver outras situações [...].96

O modelo da mulher ideal dos anos 1950, que Lúcia diz não querer ser, era definido a partir dos arquétipos atribuídos “a dona de casa burguesa”, descrita por Michelle Perrot – embasada por Bonnie Smith e Anne Martin-Fugier97 – como aquela

que tem a responsabilidade de zelar pela família e de manter o lar na mais perfeita ordem: “arrumação e limpeza da casa ou do apartamento, lavagem e repassagem das roupas, elaboração dos cardápios das refeições, cuidados e educação das crianças, organização das soirées familiares.”98 Para uma burguesa, mãe de família

que tem filhas na idade de casar, é uma preocupação permanente.

Esse modelo atribui à mulher atividades circunscritas apenas aos espaços privados e características próprias da feminilidade como o instinto materno, a pureza, a resignação e a doçura. Na prática, essa moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas, tais como as do Dr. Miguel Vasconcellos, pois a infidelidade do homem era explicada pelo comportamento “naturalmente poligâmico” do varonil, enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional, punindo severamente as aventuras extraconjugais das mulheres. Como a honra do marido dependia do comportamento da esposa, se ela a manchasse era colocada de lado. Em O prazer no casamento, Margareth Rago lembra ainda que é nesse cenário que se moviam as chamadas moças de família versus melindrosas, levianas versus moças para casar, vassourinhas e maçanetas. “Dar-se ao respeito” era uma palavra de ordem. “Não casar” era sinônimo de fracasso e interromper carreira, na chegada do primeiro filho, considerado natural.99

Nesse ponto pode-se dizer que Antonina não se rendeu aos padrões socialmente estabelecidos, mesmo depois de ter a primeira filha, Vera Murat

96 Ibid.

97 SMITH, Bonnie. Les Bourgeoises du nord de la France. Paris: Perrin, 1989; MARTIN-FUGIER, Anne. La Bourgeoise. Femme au temps de Paul Bourget. Paris: Grasset, 1983.

98 PERROT, Minha história das mulheres, op. cit., p. 116.

99 Ver RAGO, Margareth. “O prazer no Casamento”. In: Revista Ideias, v. 2, n.2, 1994; Cadernos Ceru, Série 2, n.º 7, 1996, p. 97-111. Ver, ainda, PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. 2 ed. São Paulo: Planeta, 2014, p. 160-161.

Vasconcellos, em 1937, ela continuou exercendo a profissão de professora, lecionava no ensino elementar. Tal como outras mulheres, Antonina faz parte de um Brasil que vive um período de ascensão da classe média. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o país contabilizou o crescimento urbano e a industrialização sem precedentes que conduziram ao aumento das possibilidades educacionais e profissionais. As distinções entre os papéis femininos e masculinos, entretanto, continuavam nítidas; a moral sexual diferenciada permanecia forte e o trabalho da mulher, ainda que cada vez mais comum, era cercado de preconceitos e visto como subsidiário ao trabalho do “chefe da casa”, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. Apesar dessa forte concepção ser presente no lar dos Vasconcellos, Lúcia lembra com ufania que a mãe fazia questão de trabalhar.

Ela tinha um orgulho de trabalhar, nas brigas com o papai foi uma coisa que ela sempre passou para a gente, a importância de trabalhar... ela se achava independente por isso, era uma brincadeira, ela não ganhava nada, pagava três sorvetes para cada filho com o que ela ganhava. Mas o discurso era da independência, não tinha nada com a realidade econômica, mas foi importante para mim, como a questão da mulher. Talvez mais importante até foi a presença dela... da frustração dela, da decadência dela... você encarar uma pessoa que era muito inteligente e que não conseguiu escapar daquele mundo. 100

Apesar do trabalho como professora do primário, “uma profissão que se tornou uma ambição digna para as filhas da pequena burguesia e das classes populares, rurais e operárias do início do século XX”101, Antonina não conseguiu escapar dos chamados padrões moralistas da época. Tipos tonificados, nos anos 1950, pelo Jornal das moças e por revistas como Cláudia e O Cruzeiro. Carla Bassanezi Pinsky e Mary del Priore apontam que essa imprensa folhetinesca continuava a propalar a crença de que ser mãe e dona de casa era destino natural das mulheres, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. Não importava os desejos ou a vontade de agir espontaneamente, o que contava ainda eram as aparências e as regras. Durante os chamados “Anos Dourados”, as moças que permitissem liberdades “que jamais deveriam ser concedidas por alguém que se preze em sua

100 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 356. 101 PERROT, Minha história das mulheres, op. cit., p. 126.

dignidade” acabavam sendo dispensadas e esquecidas, pois “o rapaz não se lembrará da moça a não ser pelas liberdades”.102

Para Antonina não foi fácil lidar com as rachaduras dos costumes nos anos 1960, seu pensamento encontrava afago nas mesmas páginas de revistas, onde lia- se críticas às liberdades do cinema, do rock’n roll, dos bailes de carnaval e das danças que permitiam abusar das moças inexperientes.103 Via com maus olhos a preferência de Lúcia pelas chanchadas ao invés de fitas que ressaltassem os bons costumes e personagens comportados circulando em lugares bem frequentados. Prezava o que se estava em alta: “a juventude saudável que sabe se divertir – sem escandalizar – e a brotolândia que dá exemplo de amor aos estudos e à família”. Perseguia, pois, as transformações juvenis e a rebeldia dos filhos mais novos, visto que as duas filhas mais velhas não trouxeram problemas, casaram-se virgem, conforme os padrões estabelecidos na época. A preocupação de Antonina era com Miguel, Heitor e Lúcia, não queria que eles bebessem cuba-libre nem frequentassem o Snack Bar em Copacabana. Temia ao ver os meninos usarem blusa vermelha e blue jeans, vinha logo na mente a imagem difundida nas revistas, “dos rapazes que mentem para os pais, cabulam as aulas, não pensam no futuro e não têm base moral para construir um lar”104.

Tudo ficou muito difícil para minha mãe. As duas filhas mais velhas cresceram nos anos 50, quando a vida tinha regras muito definidas. Criada nos padrões mais moralistas de sua época, minha mãe teve que se debater contra si mesma para defender os filhos que vieram depois.105

Essa fala é utilizada por Lúcia Murat no filme Uma longa viagem como tom inicial para falar dos encontros libertários que teve nos 1960, encontros que se chocaram com a cultura burguesa, patriarcal e religiosa tão enraizada em sua família. Regras e advertências não foram suficientes para barrar Lúcia e os dois irmãos mais novos, eles fugiram ao padrão estabelecido. Miguel transgrediu

102 Ver PINSKY, Carla Brassanezi. “Mulheres dos Anos Dourados”. In: PINSKY, Carla Brassanezi e PRIORE, Mary del (Org.). História das mulheres no Brasil. – 10ed. – São Paulo: Contexto, 2013, p. 607-639; PRIORE, Histórias íntimas, op. cit., p. 163-164.

103 Ver os artigos “Beijos no Carnaval”, in: O Cruzeiro, 11 mar. 1950, p. 52; “Campeãs do Carnaval”, in: O Cruzeiro, 11 mar. 1950, p. 20; CARNEIRO, Luciano. “Os bonitões em desfile”, in: O Cruzeiro, 21 jan. 1950, p. 63; DAMM, Flávio. “Dança do fogo no Carlos Gomes”, in: O Cruzeiro, 10 maio 1950; PAES, Antonio Rodrigues. “Um fato em foco”, in: O Cruzeiro, 11 mar. 1950.

104 Ver, nesse sentido, PRIORE, Histórias íntimas, op. cit., p. 163-164. 105 Lúcia Murat, em voz off, in Uma longa viagem, 2011.

fumando maconha e foi preso por porte de drogas, Heitor foi preso na Índia com malotes de haxixe, Lúcia explorou sua sexualidade, abriu mão do teatro, do balé e da virgindade e leu obras que a fez discordar dos pais. A moda do “existencialismo” chega à sua biblioteca aos treze anos de idade. Lia Sartre, Boris Vian e Margareth Mead. O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, torna-se seu mistagogo.

Na leitura, Lúcia buscava saídas para seus conflitos, uma forma de se livrar de um “destino” que parecia lhe esperar somente pelo fato de ser mulher. Leitora compulsiva de filosofia, começa a desejar viver as aventuras dos livros: “Lembro-me de que a partir de algumas leituras do existencialismo de Sartre, eu não me lembro bem o que eu estava lendo, eu concluí que eu não acreditava mais em Deus e comuniquei à família num jantar de domingo, aí a minha mãe teve uma crise.”106 Era 1961, ano em que João Goulart assume a presidência, era também o começo de outras rachaduras, o rompimento com a religião foi apenas o ponto de partida da inserção política que se intensifica quando do ingresso na Universidade.