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O testemunho e a imagem-afecção do rosto em “Que bom te ver

4 RECONSTRUINDO-SE NO CINEMA

4.2 O testemunho e a imagem-afecção do rosto em “Que bom te ver

Em entrevista concedida em 2009, Lúcia relata que o Que bom te ver viva nasceu dos seus dramas intimistas vivenciados no processo de tortura e dos sentimentos experimentados posteriormente no divã do analista, quando buscava “uma maneira de sobreviver” com os traumas persistentes na memória. Entre o final de 1984 e meados de 1985, após quatro anos de terapia, veio a ideia de fazer o filme dentro de algumas perspectivas que de certo modo buscava aproximar as experiências do presente e do passado, sendo a principal delas que produziria um filme sobre a tortura, mas que não haveria nenhuma cena de tortura. “A violência seria vista através das palavras, através dos sentimentos, não através da ação.”311

Voltando novamente a Deleuze, a proposta cinematográfica de Lúcia tem referência nas aparências do cinema dito moderno, nas palavras do filósofo francês,

não algo mais bonito, mais profundo, nem mais verdadeiro, mas outra coisa. É que o esquema sensório-motor já não se exerce, mas também não é ultrapassado, superado. Ele se quebra por dentro. Quer dizer que as percepções e as ações não se encadeiam mais, e

310 Veja-se TEIXEIRA, André. “Sétima arte é assunto de conversas de bar”. In: O Globo, Zona Sul, 14.04.2005, p. 30.

311 Ver entrevista de Lúcia Murat in Making of do filme Que bom te ver viva. Essa gravação faz parte do material extra do filme, relançado em 2009, no formato de DVD.

que os espaços já não se coordenam nem se preenchem. Personagens, envolvidas em situações óticas e sonoras puras, encontram-se condenadas à deambulação ou à perambulação. [...] A relação situação sensório-motora/ imagem indireto do tempo é substituída por uma relação não-localizável situação ótica e sonora

pura/ imagem-tempo direta. Os oposignos e sonsignos são

apresentações diretas do tempo.312

Com uma trilha sonora às teclas de piano, prevendo a tristeza e o azedume nos fatos terríveis que serão mostrados em tela, Lúcia utiliza-se, em Que bom te ver viva, de sua experiência pessoal para impactar o público em relação à questão dos torturados no período do regime militar. As imagens-tempo configuram-se como asserções construídas através de vozes; “a voz é quem fala na asserção” – afirma Fernão Pessoa Ramos313. Essas vozes são identificadas no interior de imagens-

tempo diferenciadas em luz e/ou cor que caracterizam a estrutura narrativa e plástica do filme: a imagem sombria/ amarelada do monólogo encenado pela personagem “anônima” de Irene Ravache, cujo propósito é expressar sentimentos intimistas de uma mulher que foi presa e torturada durante o regime militar; a imagem à luz fotográfica/ azulada da memória declarativa de mulheres que relembram a condição de presas políticas, a situação de tortura e a luta pela sobrevivência física, mental e emocional durante o tempo em que estavam presas; e, por fim, a imagem à luz natural da proposição reflexiva de como o mundo (o outro) vê e se relaciona com essas mulheres (pessoas) que foram torturadas. São os relatos de pessoas próximas às mulheres depoentes – parentes, colegas, amigos e sua percepção sobre elas, principalmente no presente, embora na fala dos familiares venha à tona o processo da elaboração do sofrimento, questão nem sempre disponível para outros tipos de relação social.

Em Que bom te ver viva, os falsos raccords314 são a própria relação localizável dos enunciáveis comuns da imagem-tempo. As personagens não os saltam, mas mergulham neles. A imagem-tempo direta está nos raccords aberrantes onde Lúcia faz imergir as oito mulheres depoentes, apresenta um trecho curto e

312 DELEUZE, A imagem-tempo, op. cit., p. 55.

313 RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... O que é mesmo um documentário?, op. cit., p. 86.

314 No livro A Estética do Filme, Jacques Aumont define o raccord como a construção de uma ligação formal entre dois planos sucessivos. O autor também afirma que esse elemento da montagem fílmica reforça a ideia de continuidade, provocando um efeito de ligação ou até mesmo de disjunção. Esse último seria um caso específico, “o falso raccord”, caracterizado quando essa ligação não transmite a noção de continuidade de uma ação, e sim uma ruptura no tempo/espaço. Cf. AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.

marcante da entrevista de cada uma delas, divide a imagem em duas partes, fixando, à esquerda da tela, a imagem dos seus rostos em primeiríssimo plano, acrescentando, à direita, escritos em letras vermelhas como que borradas de sangue, o nome, a organização política da qual era integrante, o ano em que foi presa e o tempo de tortura. Maria do Carmo Brito: Comandante da organização guerrilheira VPR, foi presa em 1970 e torturada durante dois meses. Trocada pelo embaixador alemão [Von Holleben], ficou dez anos no exílio; Estrela Bohadana: Militante da organização clandestina POC, foi presa e torturada em 1969, no Rio, e em 1971, em São Paulo; Maria Luiza Garcia Rosa (Pupi): Militante ligada ao movimento estudantil, foi presa e torturada quatro vezes nos anos 70; Rosalina Santa Cruz (Rosa): Militante da esquerda armada, foi presa e torturada duas vezes. Tem um irmão desaparecido desde 1974; Anônima: Militante de organização guerrilheira, ficou quatro anos na clandestinidade e quatro na cadeia; Criméia de Almeida: Sobrevivente da guerrilha do Araguaia, foi presa grávida, em 1972, e teve um filho na cadeia. Regina Toscano: Militante da organização guerrilheira MR-8, foi torturada e ficou um ano na cadeia em 1970. Jessie Jane: Presa durante o sequestro de um avião [Caravelle PP-PDX da Cruzeiro do Sul]315, em 1970, foi

torturada três meses e ficou nove anos na cadeia.316

A montagem, nesse caso, em vez de ter por objeto as imagens-movimento, das quais ela retira uma imagem indireta do tempo, tem por objeto a imagem-tempo, extrai dessa as relações de tempo, das quais o movimento aberrante agora apenas depende. Conforme uma expressão de Lapoujade utilizada por Deleuze, “a montagem torna-se mostragem”317. Ademais, a montagem é enriquecida com

técnicas metodológicas de história oral, quando se propõe uma interação entre a diretora, as protagonistas do acontecimento (as testemunhas) e o espectador, demonstrando uma preocupação, típica do documentarista, em revelar que as memórias ali retratadas são vivas e fazem parte das histórias daqueles personagens reais. Assim, Lúcia assume sua participação ativa na construção do tema, parte intrínseca do processo de edição, transparecendo na produção do material sua marca autoral.

315 Jessie Jane, Colombo (seu marido), Eraldo Palha Freire e Fernando Palha Freire, sequestraram o Caravelle PP-PDX da Cruzeiro do Sul, na manhã do dia 1º de julho de 1970. Ver CARVALHO, Mulheres que foram à luta armada, op. cit., cap. 63, p. 320-335. Ver, especificamente, p. 324.

316 Ver Que bom te ver viva, 1989, planos-sequência – 03’54’’ – 04’20’’ – 04’38’’ – 04’59’’ – 05’55’’ – 06’14’’ – 06’40’’ – 07’05’’.

Tal como o historiador que trabalha com entrevistas gravadas, a cineasta selecionou trechos e os comparou, sincrônica e diacronicamente, no próprio fílme para desenvolver uma argumentação. “Todavia, tanto para o espectador como para as mulheres que cederam as entrevistas, não se oblitera que o que se insere das falas são fragmentos entre tudo que foi colhido, devido ao recorte temático e espaço-temporal do filme”318 De acordo com o jornalista Aramis Millarch, Lúcia aproveitou poucos minutos das entrevistas que realizou para o filme. “Embora, fosse possível gravar mais de uma hora com cada uma das depoentes.” O material que sobrou foi doado pela cineasta para o Arquivo de história oral da UNICAMP.319

Com efeito, em Que bom te ver viva enveredamos pelo universo das recordações e das experiências rememoradas, com todos os riscos que incorporam: atualizações, distorções, lapsos, pois, estamos diante de um material cujo tratamento passa pelas especificidades da história oral, como adverte Alessandro Portelli: “a história oral não mais trata de fatos que transcendem a interferência da subjetividade; a História oral trata da subjetividade, memória, discurso e diálogo.”320

No tocante à ideia de que a principal especificidade da história oral reside no fato de tornar a subjetividade apreensível, Delgado conclui que a história oral “Não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas, sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida”. E como tal procedimento metodológico

[...] busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. [...] Traz em si um duplo ensinamento: sobre a época enfocada pelo depoimento – o tempo passado, e sobre a época na qual o depoimento foi produzido – o tempo presente. Trata-se, portanto, de uma produção especializada de documentos e fontes, realizada com

318 SOUZA, Willian E. R.; CRIPPA, Giulia. “Limites e contribuições da história oral: a memória e a história nas interseções entre o individual e o coletivo”. In: Sæculum - Revista de História. João Pessoa, DH/PPGH/UFPB, n. 23, jul./dez. 2010, p. 75-89. Ver, especificamente, p. 86.

319 Ver MILLARCH, Aramis. “O hino à vida de Lúcia Murat”. In: Caderno Almanaque. Estado do Paraná, 12.12.1989.

320 PORTELLI, Alessandro. “Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História oral”. In: Projeto História. São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, n. 17, 1998, p. 13-33; ver, especificamente, p. 26. Cf., também, PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val de Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 103-130.

interferência do historiador [leia, também, do documentarista/ cineasta] e na qual se cruzam intersubjetividades.321

Ao refletir sobre o modus operandi do historiador com as fontes orais, Regina Beatriz Guimarães Neto chama a atenção para a necessidade de se perceber, desde o início da operação, os problemas que são formulados por um autor/diretor, uma obra/filme, um campo teórico ou uma prática metodológica. Diante disso, pontua que “é necessário reconhecer que a fonte oral não é o outro da fonte escrita: fazem parte, tanto uma quanto outra, do sistema escriturístico moderno, operando com os mesmos códigos de referência cultural (sem postular uma origem única).”322

Usualmente, a historiografia323 que se refere aos procedimentos relativos à historia oral identificam dois tipos de entrevistas como as mais utilizadas em pesquisas ou projetos que produzem fontes orais: “depoimentos de história de vida e entrevistas temáticas”324. Que bom te ver viva pode ser percebido a partir do âmbito das entrevistas temáticas, “que se referem a experiências ou processos específicos vividos ou testemunhados pelas entrevistadas”325, no caso em questão: “a tortura, a guerrilha e a violências dos anos 1960-1970”. A imagem-tempo, não sem efeito, é a imagem-tempo da memória, que traz em si a época e/ou o evento marco invocado pelo testemunho, tal como se pode perceber no relato oral de Rosalina Santa Cruz.

Eu me senti inteiramente amedrontada. O que eu me lembro daquele momento é, assim, inteiramente de solidão, de medo, de total desproteção daquele homem, daqueles homens. Eles me levaram para uma sessão de tortura, onde o que estava em jogo não era a informação, o que estava em jogo era a minha rebeldia, era o fato de eu ter me rebelado contra a autoridade e a prepotência deles. Então, depois deles terem me batido muito, com telefone, choque elétrico, pau de arara, choque na vagina... Sempre despida... Eu cheguei a um momento em que eu pedi: me matem, eu quero morrer, eu não estou aguentando. E, eu lembro do olhar, do riso dele, dizendo assim pra mim: “eu não te mato, não me interessa te matar. Eu vou te fazer em pedacinhos, eu vou lhe torturar o quanto eu quiser, inclusive eu lhe mato se eu quiser.” Então, esse nível, assim, de impotência

321 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 15-16.

322 GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. “Historiografia, diversidade e história oral: questões metodológicas”. In: LAVERDI, Robson et al. História Oral, desigualdades e diferenças. Florianópolis: EdUFSC; Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p.15-37. Ver, especificamente, p. 16-17.

323 Ver, por exemplo, GUIMARÃES NETO, Cidades da Mineração, op. cit.; MONTENEGRO, Antônio Torres. História, metodologia, memória. 1ed. São Paulo: Contexto, 2010; MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 6ed. São Paulo: Contexto, 2013.

324 DELGADO, História oral: memória, tempo, identidades, op. cit., p. 20. 325 Ibid., p. 22.

diante do torturador, toda impunidade, da capacidade que ele podia realmente fazer isso. Quer dizer, ele podia ficar dias e dias, meses e meses comigo fazendo todo tipo de experiência que ele quisesse fazer... E a que me interessa resistência não sabia o limite dela, sabia que ela tinha um limite, que era o limite do meu corpo, da minha dor, da minha força... Eu acho que isso é o caminho para a loucura.326

O testemunho em destaque, assim como outros com o mesmo teor e declarados no Que bom te ver viva, pode ser problematizado através daquilo que Pierre Ansart (2005) conceitua de “humilhações políticas” 327. Ansart entende esse

tipo de humilhação sob dois níveis complementares de análise. Em primeiro lugar, entende por humilhação “uma situação particular na qual se opõem, em uma relação desigual, um ator (individual ou coletivo) que exerce uma influência, e, do outro lado, um agente que sofre esta influência”328. Com relação ao segundo nível, considera que “a humilhação produz um sofrimento, pois agride a interioridade de um sujeito (vítima), ferindo seu amor próprio, desvalorizando sua auto-imagem”329.

Na tortura, Rosalina se viu excluída da relação de reciprocidade, experimentando solidão e desproteção. Por outro lado, seu sofrimento aumentou ao sentir que o torturador, o agente ativo de sua humilhação, tinha satisfação com sua dor. Desse modo, o torturador estabelecia uma situação humilhante racional, visto que realizou uma agressão que feriu, ultrajava sua vítima sem que fosse possível uma reciprocidade. Para Ansart, nas humilhações políticas a ausência de reciprocidade é essencial, fato que a diferencia de outros tipos de humilhação, trata- se de uma humilhação não reparada, essencialmente desigual e, com frequência, durável. Logo, “a humilhação é uma das experiências da impotência e da catástrofe”

330.

Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva, na apresentação do livro Catástrofe e Representação, definem como tradução possível para a palavra “catástrofe” as expressões: “desabamento”, ou “desastre”; ou mesmo o hebraico

326 Entrevista de Rosalina Santa Cruz in Que bom te ver viva, 1989.

327 Em tese, sem pretender elaborar uma lista completa das humilhações políticas, Pierre Ansart reflete sobre três formas diferentes de humilhações políticas observáveis na história do tempo presente e que denomina pelos seguintes termos: 1º) as humilhações radicalmente destrutivas; 2º) as humilhações superadas; 3º) as humilhações instrumentalizadas ANSART, Pierre. “As humilhações políticas”. In: MARSON, Isabel; NAXARA, Márcia (orgs.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia, MG: EduFU, 2005 p. 15-30.

328 ANSART, “As humilhações políticas”, op. cit., p. 15. 329 Ibid.

Shoah, especialmente adequado ao contexto do livro, por tratar dos sobreviventes do holocausto. Segundo os autores, a catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma, no sentido freudiano, cuja característica essencial é o adiamento, ou incompletude, no acesso ao conhecimento do evento traumático – num sentido, não do fato, porém do efeito – interferindo na percepção do que se sabe. “O evento não é assimilado ou experienciado de forma plena no momento imediato, mas tardiamente.” 331

Essa definição ajuda-nos a perceber os testemunhos do Que bom te ver viva que remetem aos artifícios utilizados pelos torturadores na prática da tortura. A lembrança do evento traumático desencadeia, no tempo presente, o mesmo pavor que as depoentes sentiram no passado (às vezes, até com maior intensidade) como podemos ver no depoimento de Estrela Bohadana, que sofreu torturas atípicas332.

Tem sido uma coisa terrível pra mim. Toda vez que eu vejo uma lagartixa, ou tenho uma crise de choro, ou saio correndo procurando socorro. Mesmo que racionalmente eu saiba que ela não vai virar um jacaré... O problema não é esse de virar ou não um jacaré, mas o que ela suscita. Quer dizer, quando eu olho a lagartixa volta à memória toda do que foi aquela situação; não só aquela situação, mas a situação de prisão e de tortura.333

Para Criméia de Almeida, presa nos anos 1970 por envolvimento com a guerrilha do Araguaia, o que mais marcou na tortura foi quando lhe mostraram slides com fotografias das cabeças decapitadas dos guerrilheiros. Criméia relata que isso era uma prática usada com todos os presos, os poucos sobreviventes do Araguaia. “Na época em que vi essas cenas, eu não consegui reter as imagens. Eram pessoas conhecidas e que ficou uma ausência. Vejo as cabeças decapitadas, os rostos, mas não consigo identificá-las. É como uma... É uma nuvem na frente.”334

No livro A degola, uma rotina, Fernando Portela escreve que essa prática testemunhada por Criméia era realizada, via de regra, na cidade de Brasília: “os presos eram submetidos a um novo suplício, em cores. O ‘pessoal especializado’ organizava sessões de slides, usando fotos que deveriam fazer parte de uma

331 SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). História, memória, literatura. O testemunho na era da catástrofes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 8.

332 No Brasil Nunca Mais, o tipo de tortura em que foram utilizados insetos e animais, tais como: baratas, cães, cobras, jacarés e ratazanas, aparecem qualificadas como torturas atípicas. Cf. BRASIL Nunca Mais/ Arquidiocese de São Paulo, 36ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p.73.

333 Entrevista de Estrela Bohadana in: Que bom te ver viva, 1989. 334 Entrevista de Criméia Almeida in: Que bom te ver viva, 1989.

enciclopédia de medicina legal.” O autor ainda argumenta que foi através dessas sessões de terror que o Partido Comunista do Brasil (PCB) pôde reconhecer alguns dos seus mortos, entre eles: “Francisco Chaves, Maia Lúcia Petit, Idalício e Ciro Flávio”.335

Das mulheres que testemunham no Que bom te ver viva, Jessie Jane é aquela que mais deixa transparecer a essência do trauma. Jane fala que sua emoção, no período de prisão e tortura, era bem diferente da emoção que sente no presente ao lembrar do que poderia ter acontecido com seus familiares no DOI-Codi.

[...] eu vi minha irmã sendo torturada [...] um coronel da polícia de São Paulo torturou minha irmã para me desestruturar. [...] A questão da prisão da minha mãe, da minha irmã, da minha sogra... Eu acho que só me atingiu um pouco depois [tempo depois], quando eu comecei a pensar no que poderia ter acontecido. Mas naquele momento não teve nenhuma consequência objetiva. [...] Não acredito que tenha tido assim [emoção]... Eu acho que hoje tem mais [emoção]... Naquele momento, não! 336

Em Que bom te ver viva, o trauma também aparece vinculado ao sentimento de vergonha. Pode-se citar aqui o testemunho de Maria do Carmo Brito, quando relembra sobre o não cumprimento do pacto de morte com o seu marido, Juarez Brito – “eu me sentia muito culpada de não ter morrido”337 –, e na declaração de Rosalina Santa Cruz, quando fala do seu irmão, também militante político, que foi preso nos anos 1970 e nunca foi encontrado. A morte sem corpo de Fernando marcou sua memória, até mais que a situação de tortura:

Uma das coisas que eu não me conformava na morte de Fernando, era eu estar viva [...] Ter sobrevivido pra mim era, assim, um peso. Por que eu sobrevivi e ele não? [...] Eu era mais velha do que ele, eu tinha uma militância maior do que Fernando. Por que eu vivi e ele não? Isso me fez levar a um sentimento de autodestruição enorme. [...] Me sentia culpada por qualquer sentimento de alegria. Por exemplo, se eu estava numa praia, mesmo dois anos depois de Fernando estar desaparecido, de repente me dava um sentimento de culpa terrível. Como eu podia estar me divertindo, indo à praia, se Fernando estava morto, se Fernando podia estar, ainda naquela hora, sendo torturado. E, eu estava ali em vez de estar buscando, estar procurando, ainda estar anunciando a morte dele.338

335 Ver PORTELA, Fernando. Guerra de guerrilhas no Brasil: a saga do Araguaia. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2002, p. 104.