• Nenhum resultado encontrado

Agarrando-se as correntes nebulosas de Têmis

3 NO ERGÁSTULO

3.2 Agarrando-se as correntes nebulosas de Têmis

De acordo com os preceitos exegéticos do Decreto-Lei n.º 898/ 1969 (Lei de Segurança Nacional), os presos políticos podiam ficar incomunicáveis durante 10 (dez) dias, sendo autorizado que permanecessem 45 dias presos na fase Inquérito Policial Militar (IPM). Nesse período, o preso poderia ser torturado sem que as autoridades contitucionais fossem obrigadas a dar qualquer satisfação a respeito.210 Lúcia testemunha que ficou dois meses e meio incomunicável e sendo torturada no DOI-Codi, sem poder receber visitas dos seus familiares ou do seu defensor jurídico e, somente após ser apresentada na 2ª Auditora da Marinha, iniciou a formalização dos processos na Justiça Militar. Desde que recebeu o aviso de Marilene Villas-Boas Pinto sobre a “queda” da filha, a Sra. Antonina procurou imediatamente o advogado Técio Lins e Silva211. Na tópica Nossas “Mães de Mayo”, em seu livro de memórias profissionais, em depoimento a Fernanda Pedrosa, o Dr. Técio elege algumas figuras como paradigmas de amor, da coragem e da dedicação, sendo a primeira delas a Sra. Antonina Murat.

D. Ninah Vasconcellos [...] era uma pessoa fantástica. Com ela eu discutia os processos de Lúcia Murat, sua filha. Eram bem mais de dez processos, quase todos muito difíceis. Mas, para ela, não havia limites para a defesa. Dedicava-se com uma força que não sei de onde vinha, e estava sempre presente. Atuava comigo nas auditorias, lidava com os juízes e os promotores com igualdade e simplicidade, enfrentava os carcereiros com a coragem que só a maternidade pode dar.

Tenho certeza de que salvamos a vida de sua filha. Quando Ninah me trouxe a notícia da prisão, sabíamos que Lúcia seria muito torturada, como foi, e que poderia não resistir. Ou poderia ser assassinada e desaparecer. Precisávamos oficializar a prisão com urgência.212

210 Veja-se FICO, Como eles agiam – os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política, op. cit., p. 113.

211 No Rio, existia um pequeno grupo de advogados de presos políticos atuante, entre os quais os criminalistas mais experientes do Brasil. Heleno Fragoso lista os nomes de Augusto Sussekind de Moraes Rego, Evaristo de Moraes Filho, Modesto da Silveira, Oswaldo Mendonça, George Tavares, Marcelo Cerqueira, Lino Machado e Nilo Batista. Entre os mais jovens cita Técio Lins e Silva, Nélio Machado Eny Raimundo Moreira e Rosa Maria Cardoso da Cunha. Ver FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 147. 212 SILVA, Técio Lins e. O que é ser advogado: memórias profissionais de Técio Lins e Silva/ em depoimento a Fernanda Pedrosa. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 133.

Em 28 de maio de 1971, Lúcia figurava na lista dos elementos denunciados no Processo 27/70-C (Dissidência do Partido Comunista Brasileiro – PCB), da 2ª Auditoria da Marinha da 1ª Circunscrição da Justiça Militar (CJM)213. Quando o Dr. Técio Lins soube dessa informação comunicou imediatamente a prisão e requereu que a ré fosse requisitada para comparecer nessa Auditoria no dia e na hora marcados.

[...] O juiz-auditor mandou requisitar a presa. Pela maneira como Lúcia foi apresentada à auditoria, com uma escolta armada até os dentes e os nomes nos uniformes coberto com esparadrapo, parecia até que fora encaminhada por engano, como se requisitada pelo Cenimar, e não pela Justiça. Ainda apresentava sinais da tortura no pau de arara, com lesão visível no pé devido à ruptura de nervo ciático, que a obrigou ao uso de bota ortopédica por muito tempo.214 Lúcia sequer sabia aonde estava indo na ocasião, ao chegar na Auditoria mal conseguia andar. “Minha perna direita tava fininha, porque tinha perdido toda musculatura, o pé torto e machucado ainda estava todo cheio de crostas, os punhos também, estavam cicatrizando...”215 Quando adentrou o recinto e avistou seu causídico entre os policiais militares saiu inteiramente do controle e gritou: “Técio, me tira daqui e me leva para um hospital”216, o bacharel lhe falava apenas: “Calma”217. Naquele momento os sequestros a diplomatas estrangeiros cessaram- se, a esperança do exílio então não existia, a única possibilidade de alcançar a liberdade era a via legal. Atônita, desde o primeiro momento Lúcia queria denunciar a ditadura; o horror da tortura. O intercessor com muita prudência aconselhou-lhe a negar todas as acusações: “Lúcia, aqui você vai dizer que não participou de nada, está entendendo? Acabou a brincadeira... Denuncie o que você quiser, mas não diga que você fez porque a única chance que a gente vai ter daqui para frente vai ser a jurídica.”218 Mais do que seu jurisconsulto, Técio era um amigo discreto do

movimento estudantil, já havia lhe representado quando da sua prisão em dezembro de 1968 no 30º Congresso da UNE em Ibiúna. Lúcia hesitou diante da hipotaxe219 do

213 DOPS/GB. Prontuário SFA N.º 4878, Documento n.º 43 – Histórico, fls. 3. 214 SILVA, O que é ser advogado, op. cit., p. 133-134.

215 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 380. 216 Ibid.

217 Ibid.

218 Ibid., p. 381.

219 Hipotaxe ou subordinação, particularidade muito conhecida na tópica da estruturação gramatical. É aqui utilizada no sentido de que um texto inteiro pode funcionar como um grupo ou classe de

jurisperito, mas logo percebeu que naquele momento não havia outra possibilidade que não fosse adentrar no jogo das formalidades dos trâmites judiciais. As correntes da balança de Têmis220 lhe pareceram nebulosas, contudo, nelas se agarrou para sair do abismo em que se encontrava. “Eu olhei bem nos olhos dele [Técio] e aceitei. Engraçado ter aceitado, porque eu era a revolucionária que supostamente iria fazer um discurso pela revolução. Mas não, pensei comigo: ‘acabou’.”221

A comoção é ainda maior quando Lúcia percebe a entrada do Dr. Miguel e da Sra. Antonina no espaço. “A minha mãe parecia 150 anos mais velha. Na relação tênue entre o papai e a mamãe, ele nunca lhe deu ordens, foi a primeira vez que o vi fazer isso, de uma maneira venusta, claro. Isso porque quando ela me viu começou a chorar e falou: ‘Por favor não fala nada, por favor não fala nada’. Ele virou-se para ela e disse assim: ‘Deixa ela falar porque ela sabe o que ela está fazendo’. Nunca me esqueço, foi muito bonito.”222

Depois do encontro enternecedor com os genitores, Lúcia deu sua declaração: “foi um horror, cheguei mancando, os juízes militares não tiveram coragem de me olhar, abaixaram a cabeça, nunca me esqueço, inclinaram a cabeça para baixo sem graça. O Técio pediu para eu sentar, eu não podia ficar de pé, fui mancando até lá, sentei. Neguei a acusação de pertencer a uma organização guerrilheira e na hora que pude denunciei a tortura, fiz um depoimento sensível, falando sobre os direitos humanos, eu estava extremamente emocionada.” Nos documentos reunidos no livro Brasil Nunca Mais (BNM), encontra-se, de forma sucinta, as declarações de Lúcia nos autos de qualificação, interrogatórios das Auditorias. “[...] disse no interrogatório a que foi submetida, sofrer torturas físicas e psicológicas que, como prova, o fato de que sua perna está paralisada tendo ficado atrofiada em conseqüência das torturas.”223

palavras, no caso específico, como um verbo imperativo: “Denuncie [Lúcia] o que você quiser... mas não diga [tu] que você fez...” Ver BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. - 38ed. rev. ampl. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 49.

220 Têmis: divindade grega por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, colocado acima das paixões humanas. Por esse motivo, sendo personificada pela deusa Têmis, é representada de olhos vendados e com uma balança na mão. Ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem, protetora dos oprimidos. Na qualidade de deusa das leis eternas, era a segunda das esposas divinas de Zeus, e costumava sentar-se ao lado do seu trono para aconselhá-lo. Ver GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 435; KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. 8 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 372.

221 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 381. 222 Ibid., p. 381-382.

[...] AO OITAVO QUESITO: que por ocasião de sua prisão a interroganda foi conduzida ao CODI na Rua Barão de Mesquita, local onde foi submetida a uma série de torturas físicas e psíquicas; que sofreu espancamentos generalizados, inclusive, aplicações de choques elétricos na língua, seios e vagina; que, em seguida, foi levada à Bahia onde ficou constatado que a interroganda estava com uma paralisia na perna direita, estando a interroganda de posse de um laudo médico que comprova o aqui alegado; quer salientar, ainda, que antes da referida viagem à Bahia, sofreu a depoente torturas denominadas: “pau-de-arara” e “hidráulica” [...] retornando da Bahia, voltou ao CODI, onde foi submetida ao mesmo tipo de tratamento e mais sofrendo até violência sexual, o que obrigou a interrogada a assinar alguns inquéritos admitindo sua participação em diversas ações de natureza subversiva; que quer se retratar de qualquer confissão por ventura existente nestes autos, por não representar ela a verdade dos fatos; que, na opinião da interroganda o tratamento que teve no CODI violenta a condição de qualquer ser humano e no caso particular da interroganda, violenta a sua condição de mulher.224

Depois da declaração, o advogado de defesa solicitou que o juiz militar autorizasse o encaminhamento da ré para um hospital, o magistrado acatou examinar o pedido, porém não de imediato, Lúcia retornou para o DOI-Codi. “O Técio quase chorou. Então, eu olhei para ele e falei: ‘eles vão me matar’. Mas, na verdade, eles não podiam mais me matar porque eu tinha sido apresentada à Justiça, isso era incomum, ainda hoje é raríssimo você ter indícios da tortura, a partir dali eu tinha provas.”225

A Sra. Antonina testemunha a atmosfera do tempo que se sucedeu a 2.ª Auditoria da Marinha na carta que escreveu para outra mãe que merece todas as honras pelo desempenho que tivera na resistência à ditadura, seu nome: Zuleika de Souza Netto, conhecida como Zuzu Angel. Brava, corajosa, foi assassinada pelas forças de repressão no dia 14 de abril de 1976226.

Conheci Zuzu na 2.ª Auditoria da Marinha, em um interrogatório de um processo da Organização do MR-8. Minha filha Lúcia estava presa e respondia a este processo, no qual seu filho, Stuart [Stuart Edgart Angel Jones], também esteve indiciado. Zuzu tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, depois de seu tão

224 BNM, caixa CXII – Vol. 1, p. 387. [Apelação 39.770 – RJ – CODI/ BAHIA – CODI] 225 Ver entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 382.

226 Ver ANGEL, Zuzu. Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho. São Paulo: Villa Rica Editora, 1986; REZENDE, Sergio; BERNSTEIN, Marcos. Zuzu Angel. Roteiro do filme. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

conhecido desfile em Nova York, quando denunciou o desaparecimento de Stuart.

A partir daí ficamos muito amigas. Muitas coisas tínhamos em comum. Nossos filhos tinham estudado na mesma Faculdade – Economia da UFRJ. Além disso, eu também admirava seu dinamismo e força de viver. Passamos a nos encontrar sistematicamente em seu atelier, no Leblon, ao término do expediente comercial. Muitas vezes Zuzu fechava a loja e ficava no seu escritório, onde recebia outras mães que a procuravam. Lá discutíamos os problemas que nos arrasavam. Já nesta ocasião, ela usava praticamente todo o lucro de sua confecção em material de divulgação do desaparecimento de Stuart (fotos, cartas, documentos, etc). Foram inúmeras as vezes em que fui com Zuzu providenciar a remessa deste material para o exterior. Os parentes de Stuart residiam nos Estados Unidos, onde mantinham muitos contatos. Mas Zuzu continuava trabalhando cada vez mais. Dizia que se parasse de criar, perderia todo o respaldo que lhe permitia continuar denunciado a morte do filho no Brasil e no exterior.

Também fui eu que, numa quinta-feira santa, levei para Zuzu a carta escrita pelo Alex Polari de Alverga denunciando e explicando como se deu a trágica morte de Stuart. Ela ficou muito chocada e passou o resto da semana numa verdadeira Semana da Paixão, pois foi na Sexta-feira Santa que ela fez a versão da carta para o inglês. Fizemos também a entrega do livro “Os Governos Militares”, de Hélio Silva, volume 20, em que consta a carta de Alex, a diversas autoridades. Com um destemor sem limites, Zuzu resolveu entregar o livro ao então Comandante do 1º Exército, General Sílvio Frota. Fomos em seu carro azul até residência do General, quando fomos recebidas por policiais armados, porque se tratava de uma área militar. As armas foram encostadas nas nossas cabeças. Mesmo assim, Zuzu conseguiu chegar até Sílvio Frota, que realizava uma festa em sua residência, e entregar pessoalmente o livro. Com o mesmo destemor, fez a entrega de muitos outros livros. Zuzu dizia ter em mãos documentos que incriminavam não só torturadores como pessoas que financiavam a repressão no Brasil.

Em uma noite, cinco dias antes de sua morte, quando deixamos seu atelier, a rua estava escura (naquela ocasião não havia quase edifícios construídos no local) e um homem de terno escuro, claro, de estatura mediana, cabelos curtos, tentou segurá-la. Ela reagiu aos gritos: “Mataram meu filho, pois agora me matem. Eu não tenho medo. Vocês ainda pagarão por tudo que estão fazendo”. Conseguimos tomar o carro. Zuzu ainda me disse: “As ameaças estão aumentando, mas tenho certeza que chegarei ao fim”.

Zuzu deveria partir dentro de poucas semanas, para os Estados Unidos levando um dossiê que tinha acabado de aprontar sobre o caso de Stuart. Dias depois, no entanto, foi morta de maneira trágica. Não conseguiu realizar o que tanto aspirou: provar que seu filho, Stuart, foi morto nas dependências das forças armadas.

Antonina Murat Vasconcellos227

227 Essa carta assinada por Antonina Murat Vasconcellos, assim como a carta de Alex Polari de Alverga para Zuzu Angel e a carta manuscrita assinada por Zuzu Angel destinada ao General Silvio Frota, estão disponíveis no Acervo Instituto Zuzu Angel.

Na entrevista que concedeu à Janaina Teles, Lúcia relembra do último encontro com Stuart, em março de 1971, quando voltou de Salvador. “Nessa época ele pediu para conversar comigo porque tinha se apaixonado pela Marilene [Marilene Villas-Boas Pinto]. Ele tinha transado com ela e estava todo diferente. Conversamos muito. Foi legal a gente ter partilhado esse papo.”228 Lúcia também relata o último momento em que os militares lhe interrogaram sobre o amigo. Isso aconteceu alguns meses depois de sua prisão quando, após ser levada a Salvador para interrogatório no quartel dos Barbados, voltou para o Rio de Janeiro.

[...] Então, eu saquei que o Stuart tinha sido preso porque alguém me perguntou: “Cadê229 o Paulo?” Paulo era o nome de guerra do Stuart:

“O que você sabe do Paulo?” e eu falei: “Nada”. Nunca mais me

perguntaram do Paulo depois que eles o mataram, nunca mais me perguntaram, eu acho que foi logo depois que cheguei no Rio, quando recomeçou o interrogatório pesado mesmo de volta ao Rio eles nunca mais me perguntaram do Paulo, quer dizer, eu imagino que, quando eu cheguei no Rio o Stuart já tinha sido assassinado.

Diferentemente de Lúcia, o amigo Stuart não compareceu à 2.ª Auditoria da Marinha, assim não pôde ter sua prisão oficializada junto a Justiça Civil. Cabe ressaltar, conforme aponta Janaina Almeida Teles230, embasada em Anthony Pereira, que os militares brasileiros não retiraram por completo os julgamentos de presos políticos da alçada do Judiciário civil, não optaram por uma estratégia repressiva inteiramente extrajudicial, como a que os militares chilenos e argentinos adotaram, após os golpes de 1973 e 1976, em seus respectivos países, contra a maioria dos perseguidos políticos.231 Acerca da composição das Auditorias da Justiça Militar, argumenta que

[...] eram compostas de cinco juízes, sendo quatro oficiais militares e um juiz togado, um civil formado em Direito. Havia um promotor do Ministério Público Militar e um advogado de defesa indicado pelo tribunal, o advogado dativo232. Era possível recorrer das sentenças

no STF [Supremo Tribunal Federal], após apreciação dos recursos

228 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 371. 229 Ibid., p. 379.

230 TELES, Janaina de Almeida. Memórias dos cárceres da ditadura: os testemunhos e as lutas dos presos políticos no Brasil. 2011. 519p. Tese (Doutorado em História). FFLC/ USP.

231 Ver PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 123-141.

232 No caso de Lúcia, o advogado dativo indicado parece ter sido Bel. Arthur Lavigne, conforme aponta o Documento n.º 23 in DOPS/GB. Prontuário SFA N.º 4878.

por parte do STM [Supremo Tribunal Militar], mas ambos eram bastante controlados.233

Para Lúcia, aquela primeira Auditoria era apenas o início de várias batalhas judiciais. No regresso ao CODI-Doi, foi obrigada a encenar os ditos e feitos da auditoria, a intenção dos militares era lhe ridicularizar. “Fiz tudo o que eles mandaram: ‘Ah, agora faz mais cara de choro, não está suficiente, você fez mais cara de choro do que essa lá... Manca mais, você mancou mais lá filha da puta.’ Eles denegriram os meus sentimentos de dor, me fizeram repetir os gestos e falas várias vezes, foi horrível. Nesse momento eu estava tão desestruturada que não precisava mais ser espancada, um peteleco era igual a uma porrada.”234

Conquanto, o fato de Lúcia ser apresentada na Auditoria da Marinha foi de extrema importância, pois até então os militares negavam sua prisão, a partir do auto de qualificação a clausura foi legalizada, Lúcia então foi fichada como prisioneira no DOPS/GB, em 14 de junho de 1971, sob Chapa de n.º 11.635235 como mostra as fotos montadas pela polícia política, nas quais se apresenta bem vestida, num estilo executiva social com um suéter cacharrel branco. Na fotografia que apresenta seu corpo por inteiro é possível visualizar uma cicatriz na sua perna direita e o uso da bota ortopédica.

Ainda nos documentos do DOPS/GB consta que Lúcia foi interrogada naquela delegacia aos 30 (trinta) dias de junho de 1971, posteriormente foi citada no Relatório e Solução do Inquérito Policial Militar (IPM) referente as atividades subversivas de militantes ligados à Organização “terrorista” denominada MR-8. Em 12 de julho, a justiça de Salvador decretou sua prisão preventiva, Lúcia estava presa no quartel Becondias e a disposição da Justiça Militar, ficou histérica quando em 30 de agosto recebeu a notícia que voltaria para DOI-Codi. “Eu fiquei muito deprimida nessa época pós-tortura, dividia uma cela com a Biga [Abigail Paranhos], que eu não conhecia, era uma menina do PCBR, fazia Direito e ficamos muito amigas. Ela morreu de câncer alguns anos atrás. Nossa cela era um buraco, não tinha luz, tinha apenas uma janela, um beliche e uma daquelas privadas turcas. Eu comecei a ter visitas... Lembro-me de que a mamãe trouxe um cobertor que ela costurou para fazer como se fosse uma capa e eu não conseguia sair dele. Fiquei uns seis meses

233 TELES, Memórias dos cárceres da ditadura, op. cit., p. 328. 234 Ibid., p. 382-383.

no Becondias... Quando foram me buscar para voltar para o DOI-Codi... Tentei o suicídio. Entrei no banheiro, encontrei uma gilete e tentei me cortar. A Biga entrou, me deu dois tabefes e me salvou. Os soldados vieram e me deram uma injeção de calmante. Fui para o DOI-Codi... Estava histérica, inteiramente histérica. O Cinelle, aquele que tinha me interrogado em Salvador, veio com perguntas sobre as ações da Organização na área rural da Bahia.”236

Pouco tempo depois, Lúcia foi levada para Salvador, ao tomar ciência da situação a Sra. Antonina ficou desesperada e embarcou num avião direto para a capital baiana. Lúcia ficou na base aérea do CISA, foi interrogada pelo major Cerqueira, um ex-aluno da sua mãe, pouco tempo depois da chegada recebeu notícias da morte de Iara [Iavelberg] e da perseguição a José Campos Barreto, o Zequinha, e o ex-Capitão do Exército, Carlos Lamarca. Persuadida nas auditorias militares, contradisse qualquer conhecimento sobre as ações guerrilheiras, negou veementemente todas as acusações feitas nos inquéritos policiais e denunciou a tortura.

[...] que a interrogada quer declarar que as declarações que prestou no inquérito, reconhecendo a sua culpabilidade, foram sob coação de natureza psicológica, uma vez que aceitando a sua responsabilidade pelos fatos que lhe eram atribuídos nesta capital [Salvador], livrar-se-