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3 NO ERGÁSTULO

3.3 Em Bangu

De acordo com Janaina Teles, “o quadro coercitivo do sistema carcerário ditatorial brasileiro apresentou peculiaridades locais que impedem generalizações diversas.”249 Existem casos, como do Presídio Tiradentes ou da Ilha Grande, em que

as prisões apresentaram extrema rigidez e intolerância, assemelhando-se ao modelo empregado na Argentina e no Uruguai, países onde os sistemas prisionais eram mais rígidos; em outros, foi nitidamente mais brando, como no Presídio feminino de Bangu-I, onde a leitura não era proibida, havia permissão para entradas de livros nacionais e internacionais, estimulava-se a prática de ginástica ou qualquer treinamento físico ou esportivo. Não havia proibição às reuniões políticas ou a qualquer tipo de comunicação entre as prisioneiras, o “recreio” ou o chamado banho de sol era diário e não apenas três vezes por semana como na Vila Militar – conta Lúcia. Também não havia a obrigatoriedade do uso de uniformes e a prática de trabalho manual foi amplamente incentivada.

Ao chegar a Bangu, Lúcia diz que sentiu uma imensa sensação de liberdade: “Eu podia jogar vôlei... tinha banho de sol todos os dias da semana, sendo que três vezes por semana os banhos de sol eram num pátio grande fora do pavilhão, havia mais um pátio pequeno no final do corredor, dentro do pavilhão, onde ficávamos soltas das 8h (oito horas) da manhã às 7h (sete horas) da noite... Só éramos trancadas às sete da noite e aí ficávamos sozinhas na cela das 19h (dezenove horas) às 7h (sete horas) da manhã do dia seguinte. Mas até às 19h ficávamos todas juntas, então, era uma festa para quem estava vindo da Vila Militar.”250

Em Bangu, Lúcia conta que havia muita disciplina entre as presas políticas, “acordava muito cedo”, algumas delas ao bel-prazer davam aulas de história e filosofia, enquanto ela dava aula de língua francesa e matemática. Sua mãe, a Sra. Antonina Murat, cliente habitual da Livraria Francesa – localizada à rua Garcia d'Avila, 72, bairro de Ipanema, Rio de Janeiro –, fazia questão de levar-lhe os mais novos lançamentos romanescos de literatura francesa e inglesa, bem como as edições bibliográficas mais atualizadas de livros de história, gramática e até matemática pura e aplicada. Aliás, Lúcia conta que se debruçava nos cálculos analíticos e nas abstrações algébricas buscando não apenas preencher o tempo

249 TELES, Memórias dos cárceres da ditadura, op. cit., p. 216.

ocioso, mas, sobretudo, buscando saídas para não enlouquecer. “Eu li muito, às vezes eu lia três livros por dia em Bangu, foi um período da minha vida que eu li bastante, eu sempre curti ler desde garota. Quando a barra pesava no presídio, eu fechava a porta da minha cela por dentro e ficava lendo, pensava: ‘foda-se o mundo’. Minha mãe me levava os melhores livros, não somente romances que eu sempre gostei, mas também livros com discussões históricas atuais: A Primavera de Praga, que estava estourando na Europa, uma análise crítica do socialismo real... A minha mãe gastava uma baba [fortuna], tadinha. Tínhamos uma imensa biblioteca em Bangu... cada pessoa que saia deixava seus livros.”251

Além da leitura, Lúcia fazia ginástica e participava de reuniões para discutir a situação política do país e da América Latina; a situação interna do Talavera Bruce e de outras penitenciárias onde estavam outros companheiros, verbi gratia, acerca da Ilha Grande, onde estava preso seu companheiro da época, Cláudio Torres.

A disciplina entre as presas e a certa “liberdade” não significa que a vida de Lúcia no presídio de Bangu desenvolveu-se em condições de placidez. De acordo com os documentos do DOPS, foi indiciada em mais dois inquéritos policiais em novembro de 1972 e, segundo o Ofício n.º 1172, datado de 05 de dezembro daquele ano, oriundo da 2ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª CJM, recebeu o comunicado da primeira condenação: “dois anos de reclusão como infratora do Art. 14 da Lei de Segurança Nacional, culpada da imputação que foi feita a denúncia, acusada no Processo n.º 1542, em curso por aquela Auditoria.”252 A sentença objurgatória não

transitado em julgado, ou seja, ainda cabia recurso, penalizava Lúcia por ações exercidas no interior do MR-8, durante o tempo em que esteve no comando da organização em Salvador.

Aos quinze dias de dezembro daquele ano de 1972, Lúcia se enche de esperança quando recebe a notícia de que O Superior Tribunal Militar, em julgamento de recurso criminal impetrado pelo Dr. Técio Lins e Silva, relaxou por decisão unânime sua prisão preventiva.253 No entanto, a liberdade foi estorvada através de ações exclusas dos órgãos de informação, tal como podemos observar no pedido de busca N.º 081/72 enviado pela Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado da Guanabara (SUSIPE – GB) para os chefes do Serviço de

251 Ibid.

252 O amigo de guerrilha, José Luiz de Araújo Saboya, foi absolvido no mesmo processo. Cf. DOPS/GB. Prontuário SFA N.º 4878, Histórico, fls. 6.

Buscas Ostensivas (SBO), os senhores Mário Borges e José Pereira de Vasconcellos.

DADOS CONHECIDOS: Presa, no Instituto Penal Talavera Bruce, à disposição da 3ª Auditoria do Exército da 1ª CJM, obteve Alvará de Soltura, expedido pela citada Auditoria, datado de 18.12.72, visto haver o Egrégio Superior Tribunal Militar, em sessão de 15.12.72, unanimemente, dado provimento ao Recurso criminal da acusada, para reformar a decisão recorrida, relaxando a prisão preventiva decretada contra a mesma.

DADOS SOLICITADOS: Se há algum motivo, do conhecimento dessa Agência, que impeça o cumprimento do referido Alvará de Soltura.254

No que se refere à disseminação pelos órgãos repressivos do pedido de busca, os timbres de “confidencial”, revelam haver um completo “desagrado” em relação à sua divulgação. Há dois carimbos de “confidencial”, um no alto e outro em baixo da folha, centralizado e em caixa alta na cor vermelha, o timbre da Superintendência Penitenciária do Estado da Guanabara, vem no alto, do lado esquerdo e na cor azul. Ainda no documento, na parte de baixo, à esquerda, há a expressão “Difusão” vindo a seguir datilografado: CENIMAR/ 2ª SEÇ DO Iº EX./ CISA/ PM/2/ DOPS. É também significativo observar que, no verso do pedido de busca, a data final registrada, assinalando o recebimento do pedido, é 2 de janeiro de 1973, ou seja, um dia antes de Lúcia figurar em uma relação geral de internos da SUSIPE à disposição da Justiça Militar, e três dias antes da resposta do DOPS.

Em nossos arquivos constam os inúmeros inquéritos em que Lúcia Maria Murat Vasconcellos está indiciada já bem relacionados pela informação da D.I. A acrescentar somente o mandado de prisão expedido em 28.1.71 pelo encarregado do I.P.M. do 2º Batalhão da P.E.M.E.G. expedido pelo ofício nº 306/71.255

De acordo com o “Histórico” do prontuário de Lúcia produzido pelo DOPS/GB, o mandado de prisão acrescido não apenas inibiu o relaxamento da prisão como também trouxe outra sentença condenatória a três anos de reclusão pela CPJ/CJM.256 Todo esse conjunto de informações é possível relacionar, também, com as memórias de Lúcia. “Foi hilário, porque eu fui condenada por uma coisa que eu

254 DOPS/GB. Prontuário SFA N.º 4878, Documento n.º 15. 255 Ibid., Documento n.º 18.

sequer tinha feito... era um processo tão maluco que eu nem estava aqui, estava na Bahia, só se eu tivesse poder da ubiquidade... Era a Marilene [Marilene Villas-Boas Pinto] quem tinha feito a ação, mas eles me incluíram na lista dos processados porque um suposto guarda também teria me identificado como partícipe. Condenaram-me de novo. Então, ficava nesse jogo.”

Diante de tal realidade, Lúcia intuía que teria de suportar muitos anos de confinamento em Bangu. Ademais, por vezes, o atendimento a algumas necessidades básicas também era dificultado ou negado. Portanto, qualquer conquista por mínima que fosse tornava-se extremamente significativa. Lúcia cita, por exemplo, o caso da prisioneira Jessie Jane Vieira de Sousa que chegou ao Presídio de Bangu bem antes dela. Jane chegou a outubro de 1970 e ficou um ano na solitária porque diferentemente de Solange Nogueira, outra companheira da prisão, não aceitou ir à televisão renegar a esquerda. Seu marido, Colombo Vieira de Sousa Júnior, assim como Cláudio Torres, também foi para o presídio da Ilha Grande. Jane passou cinco anos sem poder ver o esposo. Continuaram presos, cada qual no seu canto, e só tiveram permissão para encontros a partir do governo do general Ernesto Geisel, quando se mudou a direção do presídio e o pedido impetrado pelo advogado na auditoria para que pudessem se encontrar fora deferido.257

Apesar das autoridades policiais e militares tentarem subordinar e disciplinar os presos, de acordo com as entrevistas concedidas por Lúcia, predominou no Talavera Bruce o uso de um regulamento informal, não escrito, cuja aplicação dependia da direção e dos carcereiros, o que ajudava a manter certo clima de distensão. Todavia, a falta de regras precisas de funcionamento e do uso de um regimento interno poderia favorecer o “jogo desmedido totalitário” e/ou as oscilações no comportamento de determinados agentes258. Quando da prisão na Vila Militar, por exemplo, Lúcia faz menção a um suposto rádio que teria entrado clandestinamente no quartel, ademais cita um soldado da 2ª seção de inteligência do exército (S2) que lhe concedia alguns “favores”: “o cara do CIG, o S2, era bem simpático, era um militar que estava lá porque gostava do pólo e não tinha dinheiro

257 Ver entrevista de Jessie Jane in Que bom te ver viva, 1989.

258 KOUTZII, Flávio. Pedaços de morte no coração. Um depoimento de um brasileiro que passou quatro anos no inferno das prisões políticas da Argentina. Porto Alegre: LPM, 1984, p. 32.

para fazer pólo como policial civil... tínhamos um rádio escondido, ele liberava geral, e quando o general chegava: ‘O general chegou, esconde tudo’.”259

No Talavera Bruce, Lúcia reencontrou Vera Sílvia Magalhães e Maria Luiza Garcia Rosa, grandes amigas do movimento estudantil e de militância política, pode aprofundar a amizade com Francisca Abgail Paranhos, que chegou pouco tempo depois em Bangu. Também entrelaçou amizades com outras presas que dantes não conhecia, tais como Zenaide Machado de Oliveira, Rosalina Santa Cruz e as já citadas Jessie Jane e Solange Nogueira. A propósito, sobre o caso de Solange ter aceitado o alvitre dos tiranos e abjurado a esquerda na Televisão, Lúcia enfatiza:

[...] foi um caos quando ela [Solange Nogueira] chegou, todo mundo chorava, foi um desespero. Foi a primeira vez que eu briguei com todo mundo lá [...] porque a gente tinha uma posição [...] quem fosse para a televisão e fizesse qualquer coisa você gelava [...] foi uma brigalhada entre a gente – gela ou não gela? E aí eu fui histérica, porque não conseguia admitir que a gente fosse gelar a Solange [...] eu falei: “Cara, não pode, a menina teve um surto, não tem

condição”. Votamos e eu perdi. Então apelei, até hoje eu apelo, fui

para o banheiro, chorei igual uma desesperada. Eu me lembro de que uma menina do Paraná [...] chegou e falou assim: “Eu faço isso

por você”. Aí ela voltou atrás e decidiu-se que não se ia gelar a

Solange porque o caso dela era especial. Mas no final de tudo a pessoa que teve mais dificuldade de se relacionar com a Solange fui eu, engraçado, porque a Solange sempre achou que eu cobrava dela, por mais que tivesse desenvolvido uma tese de que foi um horror para a gente, um horror para ela [...] todo mundo conseguiu se relacionar bem com ela, eu nunca consegui, foi muito duro.260

De acordo com Carlos Fico, “o regime militar delineou, de maneira integrada, um sistema de propaganda política que amparava ideologicamente a repressão e buscava encobri-la”. No entanto, o historiador ressalta que os diversos setores militares tinham ideias diferentes sobre o perfil da “comunicação social” da ditadura. Assim, a pretensão de Otávio Costa e de Toledo Camargo – “coronéis que definiram as diretrizes que nortearam a maior campanha de propaganda política jamais vista no Brasil”261 – era “educar o povo”; para setores do Exército, havia que “demonstrar

259 Entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 386. 260 Ibid.

261 Segundo Carlos Fico, Otávio Costa foi convocado pelo presidente general Emílio Garrastazu Médici para chefiar a APERP (Assessoria Especial de Relações Públicas), sigla que faria fama na TV, e convidou Toledo Camargo para auxiliá-lo. Cf. FICO, “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão”, op. cit., p. 193-194. Ver também FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.

força”. Inserem-se nesse contexto de disputa os episódios das “autocríticas de ex- terroristas”, uma estratégia de desmoralização montada pelo Exército, que levava à televisão adeptos da “luta armada” para fazerem discursos de arrependimento.262

Na entrevista que concedeu à Janaina Teles, além de Solange Nogueira, Lúcia menciona outro caso, cuja decisão de excluir ou não o companheiro, romperam as fronteiras presidiárias. “Eu acho que tivemos alguns movimentos que eu tenho muito orgulho no sentido de direitos humanos, por exemplo, o caso do Manoel Henrique que foi para a televisão, ele ficou gelado durante uns dois anos, depois de dois anos ele pediu para voltar ao convívio e nós discutimos seu caso, foi uma discussão da organização, mesmo presa. Éramos nós, era a DI (Dissidência estudantil da Guanabara) encarcerada, mais ninguém, éramos nós que tínhamos que decidir, óbvio que a decisão da DI seria acatada pelas outras organizações. Foi uma discussão muito intensa e decidimos acatá-lo, ele é um grande amigo até hoje, está muito doente agora, mas foi uma coisa muito bonita. A tendência naquele caos era ficarmos violentos, pois se fica muito amargo, rancoroso, há quase uma identificação com o torturador nesse sentido. De querer punir, querer brigar, querer matar. Eu acho que foi um movimento muito bonito.”263 Lúcia ainda esclarece que a

comunicação com presos políticos de outras unidades penitenciárias acontecia no momento das auditorias, quando, por caso, os prisioneiros se encontravam ou através de recados e papeizinhos enviados pelos familiares.

Depois dessa experiência feliz, Lúcia diz que se sentiu muito triste quando a direção do Talavera Bruce decidiu de forma abrupta separar as prisioneiras em dois pavilhões: “eu vivi o início dessa história que foi horrível.” Depois de ser totalmente desestruturada na tortura, as amizades consolidadas na prisão eram os laços delgados da sobrevivência, a cada dia que se passava sentia-se mais desgastada. No entanto, considera que a situação em Bangu, objetivamente, era muito melhor do que na Vila Militar. “Eu me lembro de que, quando cheguei em Bangu eu falei: ‘Pô, eu cheguei numa colônia de férias’. Realmente eu fiquei feliz, feliz mesmo!”264

262 Os dados desse tópico foram extraídos principalmente de FICO, “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão”, op. cit., p. 198.

263 Ver entrevista de Lúcia Murat in TELES, Intolerância e resistências, op. cit., p. 388. 264 Ibid.