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CAPÍTULO 2 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE: SECULARIZAÇÃO,

2.1 A Modernidade Religiosa: racionalidade presente

O conceito de modernidade46 constitui-se como um conceito de “contraste”: extrai seu significado tanto do que nega como do que afirma. (KUMAR, 1996, p. 473). Tal característica possibilita que o conceito de modernidade possa ressurgir em épocas distintas com significados variados, condicionado, portanto, ao que está sendo negado e, em contraste, igualmente ao que está sendo afirmado. Grosso modo, todavia, a modernidade costuma ser compreendida como um ideário ou visão de mundo que está arrolada no projeto de mundo moderno, empreendido em diversos períodos ao longo

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A modernidade – a moderna sociedade industrial – recebeu uma ampla análise dos principais teóricos sociais do século XIX: Hegel, Marx, Tocqueville, Weber, Simmel e Durkheim. Tais análises permaneceram relevantes em diversos aspectos para as sociedades dos dias atuais – Marx incluído, apesar do fracasso do socialismo de estado em várias partes do mundo. Entretanto, o crescimento de certos aspectos do nosso tempo – a globalização da economia, o declínio do estado-nação, as grandes migrações populacionais – levaram alguns pensadores a postular o fim da modernidade tal como esta sempre foi compreendida. (KUMAR, 1996, p. 473-474).

da Idade Moderna e materializado com a Revolução Industrial. Está normalmente relacionada com o incremento do Capitalismo.

Segundo Santo Agostinho (no séc. V d.C), a palavra latina tardia modernus promulgava a rejeição ao paganismo e a instituição da nova era cristã. Os pensadores do Renascimento, lançando mão do humanismo clássico, fundiram-na com cristandade para fazer a separação entre estados e sociedades “antigos” e “modernos”. Com efeito, a primeira tentativa de conceituação da modernidade pode descrevê-la como um estilo, um costume de vida ou organização social, surgido na Europa a partir do século XVII e que, devido à sua influência, veio a se tornar mundial.

O próprio iluminismo do século XVIII não apenas interpôs “medieval” entre “antigo” e “moderno” como fez a identificação crucial do moderno com o “aqui e agora”. Isso acrescentou nova fluidez ao conceito. (KUMAR, 1996, p.473). Dessa

forma, a modernidade circunscrita no tempo, é imediatamente relacionada a um período histórico e como tal, constitui-se complexo para ser estudado, pois é, ao mesmo tempo, passado e presente47.

Com efeito, profundas transformações sociais, econômicas e políticas aconteceram, sobretudo, entre o início do século XIX até os dias atuais. Todavia, é errado afirmar que a modernidade nega a história, na proporção em que o contraste com o passado continuar a ser um ponto de referência indispensável para a sua compreensão.

Desde o iluminismo do século XVIII a sociedade moderna passou a ser a nossa sociedade, o tipo de sociedades em que vivíamos, fosse no próprio século XVIII, ou no

século XX. Como postula Kumar: 47

Mesmo levando-se em conta a dificuldade de distanciamento do que se pertence para analisar, de forma reflexiva, os rumos do hoje e do porvir, tal empreitada é imprescindível para que possamos compreender os fenômenos sociais do nosso tempo.

A sociedade ocidental, como fortemente contrastante com sociedades anteriores ou outras sociedades – as duas coisas passaram a ser sinônimas – tornou-se o emblema da modernidade. Essa evolução determinou os contornos da modernidade. Modernizar era ocidentalizar. A sociedade moderna, portanto, carrega os marcos da sociedade ocidental desde o século XVIII. Foi industrial e foi científica. Sua forma política foi o estado-nação, legitimado por algumas espécies de soberania popular. Atribuiu um papel sem precedentes à economia e ao crescimento econômico. Suas filosofias de trabalho eram o racionalismo e o utilitarismo. (KUMAR, 1996, p. 473).

Neste contexto, a sociologia da religião, através de diversos e renomados teóricos, tem empreendido em inúmeros e consideráveis esforços analíticos para explicar a questão do lugar da religião no mundo moderno. É bem verdade que é relativamente fácil perceber que a maior parte desses autores se preocupa menos em definir a modernidade do que assinalar e arrazoar acerca das suas características. Talvez isso ocorra, principalmente porque está cada vez mais difícil a tarefa de conceituar o termo, sobretudo na medida em que o mundo diante de nós experimenta constantes e profundas transformações. Ou, em outras palavras; o mutável é igualmente indefinível. Temos que considerar portanto, que o crescimento e a inovação ininterruptos exigem que as formas existentes sejam encaradas como provisórias, sempre possibilitando o surgimento de novos aspectos.

Dessa forma, para situar a importância que tem o entendimento a respeito da modernidade para o nosso objeto de tese, achamos pertinente pontuar algumas das transformações oriundas da sociedade ocidental, os processos que as originaram e suas conseqüências, de maneira especial aquelas que dizem respeito à discussão das relações existentes entre a modernidade e a religião.

A modernidade, tal como foi abordada por Weber, e que de acordo com Rouanet (1998) se configura como um guia seguro, se constitui como fruto do processo de racionalização indicado pelo iluminismo - união do conhecimento favorecido pelas

ciências com os valores universais de progresso social e individual – o que possibilitou enormes modificações não só na sociedade como também na cultura e na religião. Com efeito, através das considerações weberianas nos é possível compreender que a modernidade produziu a distinção da economia com o aparecimento da economia capitalista, que supõe a experiência da força de trabalho formalmente livre, o aparelhamento racional do trabalho e da produção, o cálculo contábil e o emprego técnico de conhecimentos científicos, características a que se deve a expansão das nações capitalistas dos séculos XIX e XX com suas metrópoles industriais, meios de comunicação e fontes de energia, bem como a afirmação do poder da burguesia capitalista detentora dos bens.

Ainda na perspectiva de posicionamento do nosso objeto, tomamos a caracterização de modernidade na visão de Hervieu-Léger (1986), a partir de três

elementos decisivos, a saber: 1. O ideal de racionalidade48, que expressa a ambição de domínio do pensamento científico em todas as esferas explicativas do mundo e dos seus acontecimentos naturais, sociais ou psíquicos, o que provoca a sujeição dos meios aos fins; 2. A autonomia do sujeito, que na modernidade passa a construir o seu próprio mundo individual, onde articula e seleciona os significados que dão sentido à sua existência. Tal autonomia provoca um enfraquecimento da tradição e de sua influência sobre a vida das pessoas; 3. Em decorrência da racionalização, a sociedade moderna é distinguida pela diferenciação das instituições, as quais se especializam

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Os pensadores do iluminismo afirmaram que a mente e a sociedade são tão racionais quanto às outras operações da natureza e tão sujeitas quanto estas à razão científica. A história das ciências sociais pode até mesmo ser descrita como um interminável debate em torno da verdade dessa conjuntura, “racionalista”. Em primeiro lugar, envolve uma ampla asserção, a de que a natureza é um sistema racional (no sentido de ordenado) de causas e efeitos regido por leis que um método científico (Razão) pode descobrir. Seja qual for o processo exato pelo qual essa causalidade é construída, ele exclui o significado e o propósito das operações da natureza, e absolve a ciência de pensar nestes termos mais antigos acerca dos desígnios de Deus. Também exclui o acaso; mas há campo para um relutante meio- termo através da teoria da probabilidade, a qual permite um elemento limitado de imprevisibilidade. (HOLLIS, 1996, p. 640).

cada vez mais em seus espaços de atividade na sociedade, o que resulta na separação entre o político e o religioso, o econômico e o doméstico, a arte e a ciência, a moral e a cultura etc.

O fato é que em cada uma destas áreas, verifica-se uma racionalidade ou lógica peculiar. Tal processo de emancipação das várias áreas da atividade humana é facilmente percebido pela pujante separação entre ordem temporal e ordem religiosa. Constata-se, então, a partir desses processos simultâneos e coesos da racionalização, subjetivação e autonomização/especialização dos múltiplos setores da vida social, que a sociedade moderna experimenta uma intensa transformação em todos os níveis.

Some-se a isso a conjuntura anterior à modernidade, onde a ordem divina e a ordem política tinham uma mesma expressão pública. A segunda era submissa à primeira - o que é verdadeiramente alterado nos tempos modernos - e o clero não pode

mais valer-se do poder estatal para escorar o poder da Igreja. Dessa forma, uma mudança conceitual tornou-se necessária: Deus, em sua providência, emprega agora outros meios para atingir seus objetivos, e os acontecimentos históricos vividos, ao invés de serem compreendidos como milagres de Deus em favor de seu povo particular, passam a ser vistos e explicados de outra maneira. (OLIVEIRA, 2004)

Obviamente tal transformação está imbricada com a religião cristã, graças ao lugar central que a religião ocupava na sociedade européia, por conta da sua visão religiosa ou sagrada do mundo. Consequentemente, a sociedade moderna fragiliza-se em seu cerne religioso: torna-se secular49.

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A título de esclarecimento: Judaísmo, cristianismo e islamismo tendem a dicotomizar o religioso e o secular, tratando-os como domínios categoricamente distintos. Mas o hinduísmo, o budismo, o xintoísmo e numerosas culturas tribais ou populares consideram a religião uma qualidade imanente de toda a existência. Não obstante, todas as religiões simbolizam e “administram” os pontos de disjunção e continuidade entre os registros secular e religioso do significado por meio de mito, símbolo, ritual, texto sagrado e conceitos de espaço sagrado, tempo, comunidade e ser. (BECKFORD, 1996, p. 659).