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CAPÍTULO 2 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE: SECULARIZAÇÃO,

2.3 O Desencantamento do mundo

Segundo Pierucci (2003, p.07) “desencantamento” em seu sentido estrito faz alusão ao mundo da magia e quer dizer literalmente: “tirar o feitiço, desfazer um sortilégio, escapar de praga rogada, derrubar um tabu, em suma, quebrar o encantamento”. Para o autor, o resto é figuração, sentidos figurados que nem sempre ajudam na hora das significações que uma elocução científica requer:

“Desencantamento”, em alemão Entzauberung, significa literalmente “desmagificação”. Zauber quer dizer magia, sortilégio, feitiço, encantamento e por extensão encanto, enlevo, fascínio, charme, atração, sedução... Der Zauberer nomeia o mágico, o mago, o feiticeiro, o bruxo, o encantador. Enfeitiçar, embruxar ou encantar pode ser zaubern, verzaubern, bezaubern, anzauberner e encantamento se traduz o mais das vezes por Verzauberung, Berzauberung e Zauberei, que como Zauber também quer dizer magia, feitiçaria, bruxaria, encantaria e assim por diante. (PIERUCCI, 2003, p.07-08).

A defesa do desencantamento do mundo é uma herança da racionalidade moderna ancorada na autonomia do sujeito que, na contemporaneidade abandona a concepção dos “finalismos religiosos”. Como argumentou Touraine (1998, p. 18) em sua crítica à modernidade: A idéia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada. (...) ela fez da racionalização o único princípio de organização, isto é, de desvinculamento de toda a definição dos ‘fins últimos.

Para Weber (1972) a idéia de uma secularização da própria religião, ou das grandes tradições religiosas, integra o curso racionalizante da história, desfrutando de uma notável centralidade na sua obra. O autor apresenta uma Modernidade que incide numa crescente racionalização e desencantamento, como comenta:

A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar a magia do mundo. (WEBER, 1972, p. 30).

Em meio a essa concepção de despojamento da magia, uma nova tese (com a qual não concordamos) é constituída para dar conta da questão da religião revigorada na sociedade moderna secularizada. Segundo esta, o processo de desencantamento do mundo gerado pela secularização é definitivo e irreversível, equivocando-se os que professam que a ampla visibilidade midiática contemporânea da religião é mais uma amostra indiscutível do fim da secularização e do reencantamento do mundo, ao mesmo tempo em que defendem e explicam tal “retorno do sagrado”, ou “revanche de Deus” como evidência empírica do equívoco do paradigma sociológico weberiano (PIERUCCI, 1997, p. 101 e 103).

Entretanto, o que não podemos deixar de considerar é que Weber ao afirmar que o mundo moderno se desencantava, não o fez no sentido de que tal mundo perdia sua religiosidade; mas sim de que ele se desencantava uma vez que perdia sua magia. E religião e magia, definitivamente, não são a mesma coisa. Afinal, alguém que vive na modernidade pode ser consideravelmente religioso e, ainda assim, não acreditar que o botão que ele aperta para acender a luz faça qualquer mágica ao se produzir luz, mesmo que este homem não entenda de física ou eletricidade o suficiente explicar o surgimento da luz na lâmpada que foi acesa.

Intelectualização e racionalização crescentes, portanto, não significam um crescente conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra. Significam, ao contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta alguém querer para poder provar, a qualquer

hora, que em princípio não há forças misteriosas e incalculáveis interferindo; que, em vez disso, uma pessoa pode – em princípio – dominar pelo cálculo todas as coisas. Isto significa: o desencantamento do mundo. Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para coagir os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para que tais forças existam. Ao contrário, meios técnicos e cálculo se encarregam disso. Isto, antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita. (WEBER, 1972, p.30, grifos do original)

Ou seja, o homem moderno, racional e intelectualizado, convive naturalmente na contemporaneidade com a idéia de que há explicações racionais e científicas para tudo, ou quase tudo, dessa forma, pouca coisa lhe causa espanto ou lhe impõe medo. Logo, como enfatiza Weber, isso é o "desencantamento do mundo".

O fato é que em Weber a expressão "desencantamento do mundo" é apresentada como um competente conceito no seu esquema analítico. É válido esclarecer, por conseguinte, que contra as interpretações de que se trataria de um "simples termo" ou, pior ainda, de uma "visão de mundo", o desencantamento do mundo postulado por Weber apresenta basicamente dois significados associados a ele. Inclusive, tal conjuntura faz com que Pierucci (2003, p.139) fale de um "mundo duplamente desencantado": um religioso (ou ético-prático), que evidencia o processo de "desmagificação" das vias de salvação, e outro científico (ou empírico-intelectual), que assinala o processo de "deseticização" via transformação deste mundo num simples mecanismo causal.

Para que fique mais claro, é válido lembrar que é exatamente neste contexto que nenhum religioso dos dias atuais, seja no Ocidente ou no Oriente, por mais fanático que seja, é igual a qualquer pré-moderno (na acepção de Weber), que poderia dar um salto de susto se alguém, com um "clique", fizesse luz num quarto. Na contemporaneidade, nenhum oriental ou ocidental mais ou menos escolarizado, ou até mesmo analfabeto, tende a achar que os deuses comandam a luz que se faz em um

quarto. Exemplo bastante contundente fornece o doutor em Filosofia pela USP Paulo Ghiraldelli Jr (s/d): Nenhum dos fanáticos que estiveram assassinando novaiorquinos no "11 de Setembro" acreditava que os aviões iriam, sozinhos, explodir as torres - eles sabiam muito bem que eles é que tinham de fazer isso. Não há mágica. O que há, na cabeça deles, é que o inimigo é inimigo por ser inimigo da vontade de seu deus. Mas todos eles sabem que o mundo natural é natural, e sob ele, todos nós seguimos as leis da causalidade.59Portanto, estamos imersos nas relações de mundo onde um evento se liga a outro, onde um tipo de ocorrência vem a gerar outro. Trata-se, na realidade, de uma noção que desempenha um papel crucial para a explicação do mundo que nos cerca. Como postula Halfpenny (1996) ao explicar que o conceito de causalidade está, por exemplo, nas respostas que damos à perguntas com “por que?” através de frases que se iniciam com “por causa de...”, assim estaremos racionalmente identificando os

antecedentes em virtude dos quais a coisa a ser explicada ocorreu. Portanto, sem qualquer espécie de influência mágica.

Assim sendo, defendemos que desencantamento e secularização são aspectos da modernidade que andam acoplados, o que não respalda que seja sempre correto assentar secularização e religião como contrapostos. Afinal, o aumento do interesse religioso e da própria da vivência religiosa, verificada incontestavelmente no surgimento de novos movimentos religiosos na atualidade, não significa em absoluto, o reencantamento do mundo, como um retorno à magia, ou o fim da secularização, mas a aceleração dela – já que a sua essência está no desenraizamento dos indivíduos, isto é, o deslocamento dos sujeitos no que diz respeito aos vínculos tradicionais,

inclusive os religiosos. As fidelidades religiosas são abrandadas como resultado da

59

Em artigo veiculado na internet: “A Religião está de Volta?”, disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=29558, consultado em 10.01.08.

atenuação das tradições que são paulatinamente questionadas e enfraquecidas, razão pela qual a sociedade moderna tem sido concebida, ao mesmo tempo, como sociedade pós-tradicional (HERVIEU-LÉGER, 1989).

Segundo Pierucci (1997, p. 115), tal conjuntura expressa que o indivíduo religioso é levado à apostasia, ou quebra da primeira e, com ela, das consecutivas lealdades religiosas. O autor defende que o alardeado fortalecimento da religião e a paralela diversificação ou fragmentação religiosa da modernidade não fazem senão dessacralizar a cultura, ao invés de reencantá- la.